Os objetos são ,afinal, homens coisificados...
O ditador caiu duma cadeira, os árabes deixaram de vender petróleo, o morto é o melhor amigo do vivo, as coisas nunca são o que parecem, quando vires um centauro acredita nos teus olhos, se uma rã escarnecer de ti atravessa o rio. Tudo são objectos. Quase.
O que é mais real? A presença ou a ausência?
"Coisas"
A porta,alta e pesada,ao fechar-se, raspou as costas da mão direita do funcionário e deixou um arranhão fundo,vermelho,quase a sangrar.
As ruas não aparentavam grandes prejuízos, mas notava-se, na cidade, uma geral deterioração, como se alguém tivesse andado a tirar pedacinhos aqui e além, como fazem aos bolos as crianças..
Foi então que do bosque saíram todos os homens e mulheres que ali tinham se escondido desde que a revolta começara, desde o primeiro oumi desaparecido. E um deles disse:
— Agora é preciso reconstruir tudo.
E uma mulher disse:
— Não tínhamos outro remédio, quando as coisas éramos nós. Não voltarão os homens a ser postos no lugar das coisas.
Well, I've lost it all, I'm just a silouhette A lifeless face that you'll soon forget My eyes are damp from the words you left Ringing in my head when you broke my chest...
Mas como és belo, amor, de não durares,
De ser tão breve e fundo o teu engano,
E de eu te possuir sem tu te dares.
Todas as linhas humanas são tortas, tudo é labirinto.
Mas o jogo complicou-se, e agora sou um pintor que errou duas vezes, que preserva o erro porque não pode sair dele e tenta o caminho desviado de uma escrita cujos segredos ignora: mal ou bem comparado, vou procurar decifrar um enigma com um código que não conheço. Foi só hoje que decidi tentar o retrato definitivo de S. desta maneira.
Quando S. entrou no atelier,percebi que tinha de aprender tudo se queria dividir nas suas minúsculas peças aquela segurança, aquele sangue-frio,aquele modo irónico de ser belo e ter saúde,aquela insolência todos os dias estudada para ferir onde mais doesse.
Há autobiografias que não são, afinal, sobre a vida; há frases que, não sendo autobiográficas, são, afinal, a estória de uma vida...
A vida é uma impostura organizada discretamente: como não me deixo tentar por exagerações, fica-me sempre uma segunda margem de recuo, uma zona de indeterminação, onde facilmente posso parecer distraído, desatento, e, sobretudo, nada calculista.
Continuarei a pintar o segundo quadro, mas sei que nunca o acabarei.
Molho o pincel e aproximando-o da tela, dividido entre a segurança das regras aprendidas num manual e a hesitação do que hei de escolher para ser.(...) Enquanto troco o pincel e dou os dois passos atrás que me permitem enquadrar melhor. Enquanto transporto meticulosamente as proporções do modelo para a tela, dividido entre a segurança da tela, ouço um certo murmúrio meu interior a insistir que a pintura não é nada disto o que eu faço.
Observo-me a escrever como nunca me observei a pintar, e descubro o que há de mais fascinante neste acto: na pintura, vem sempre o momento em que o quadro não suporta mais nem uma pincelada (mau ou bom, ela irá torná-lo pior), ao passo que estas linhas podem prolongar-se infinitamente, alinhando parcelas de uma soma que nunca será começada, mas que é, nesse alinhamento, já trabalho feito, já obra definitiva porque conhecida.(...) É, sobretudo a ideia do prolongamento infinito que me fascina. Poderei escrever sempre, até o fim da vida, ao passo que os quadros, fechados em si mesmos, repelem, são eles próprios isolados na sua pele, autoritários, e, também eles insolentes.
Escrever não é outra tentativa de destruição mas antes a tentativa de reconstruir tudo pelo lado de dentro, medindo e pesando todas as engrenagens, todas as rodas dentadas, aferindo os eixos milimetricamente [...].
"O verdadeiro lugar de nascimento é aquele em que, pela primeira vez, se lança um olhar inteligente sobre si mesmo."
E por ventura com as vossas grandes imaginações não tereis tanto, como eu tenho, tentado na grande conformidade que têm as letras com a pintura (que a pintura com as letras, sim tereis); nem como são tão legítimas irmãs estas duas ciências que, apartada uma da outra, nenhuma delas fica perfeita, ainda que o presente tempo parece que as tem nalguma maneira separadas.
Mas eu não quis dar a volta ao mundo, nem esta caligrafia seria capaz de levar-me tão longe: só projectei (homens de um trabalho) dar ao meu trabalho uma razão para continuar a ser embora fazendo a batota de utilizar a ferramenta de outro ofício e doutras mãos.(...)Mas seria sempre uma imagem, nunca a verdade. E esse foi provavelmente o grande erro: julgar que a verdade é captável de fora, com os olhos só, supor que existe uma verdade apreensível num instante e daí para diante tranquilamente imóvel, como nem mesmo a estátua o é, ela que se contrai e se dilata à mercê de temperatura, que se corrói com o tempo e que modifica não só o espaço que a envolve, como, subtilmente, a composição do chão onde assenta, pelas ínfimas partículas de mármore que vai soltando de si, como nós os cabelos, as aparas de unhas, a saliva e as palavras que dizemos.
Mas quem escreve? Também a si se escreverá? Que é Tostói na Guerra e Paz? Que é Stendhal na Cartuxa? É a Cartuxa todo o Stendhal? Quando um e outro acabaram de escrever esses livros, encontraram-se neles? ou acreditaram ter escrito rigorosamente apenas obras de ficção? e como de ficção, se parte dos fios da trama são história?
Essas coisas que escrevo, se alguma vez as li antes, estarei agora imitando-as, mas não de propósito o que faço. Se nunca as li, estou-as inventando, e se pelo contrário li, então é porque aprendera e tenho o direito de me servir delas como se minhas fossem e inventadas agora mesmo.(...) Provavelmente, nenhuma vida pode ser contada, porque a vida são páginas de livros sobrepostas ou camadas de tintas que abertas ou descascadas para a leitura e visão logo se desfazem em poeira, logo apodrecem: falta a invisível força que a ligava, o seu próprio peso e
aglutinação, a sua continuidade. A vida são também minutos que não podem desligar-se uns dos outros, e o tempo será uma massa pastosa densa e obscura, no interior da qual nadamos dificilmente, tendo por cima de nós uma claridade indecifrada que devagar se vai apagando, como um dia que, tendo amanhecido, à noite de que saiu regressasse.
Agora o fiz para adestrar a mão, como se estivesse a copiar um quadro. Transcrevendo, copiando, aprendo a contar uma vida, de mais na primeira pessoa, e tento compreender dessa maneira, a arte de romper o véu que são as palavras e de dispor as luzes que as palavras são.
Não o sabia quando o escrevi, sei agora ao voltar a escrever (lição importante: nada se deve escrever uma vez só.)
Tantas palavras escritas desde o princípio, tantos traços, tantos sinais, tantas pinturas, tanta necessidade de explicar e entender, e ao mesmo tempo, tanta dificuldade porque ainda não acabamos de explicar e ainda não conseguimos entender.
Insisto que tudo é biografia. Tudo é vida vivida, pintada escrita: o estar vivendo, o estar pintando, o estar escrevendo: o ter vivido, o ter escrevido, o ter pintado. [...] Um enorme silêncio entre as montanhas e as planícies. E depois, muito mais tarde o mesmo silêncio, sobre
montanhas e planícies já diferentes, e também sobre as cidades vazias...
Muito mais tarde, já de volta a casa, o postal ilustrado terá o seu valor de confirmação: por aqueles caminhos andou realmente o viajante, não foi dormindo o sonho.
Fazer voltar tudo atrás, não para repetir tudo, mas para escolher e algumas vezes parar. Levar pela arreata o cavalo de S. Jorge que Vitale da Bologna pintou, levá-lo, de Lisboa ido ou de Bolonha vindo, por Espanha e França, a Paris, ao Bairro Latino, à Rue de Grands-Augustins, e dizer a Picasso: “Homem, eis teu modelo.” Nesse tempo, em Lisboa, uma criança sem saber de Guernica, e de Espanha quase nada, a não ser Aljubarrota, segurava nas mãos uns húmidos pedaços de papel, transmitia sem saber o apelo político de uma Frente Popular Portuguesa que foi esse nome que teve, mais o que fez ou tentou, como tanto mais feito e tentado, até um dia.
Não tem a pintura destas ambiguidades (menos ambíguo seria dizer: “estas ambiguidades”), mas outras tem que me levarem a escrever, e impossibilidades também: falta, para que fique definitivamente provada a justiça deste mundo, que as ambiguidades da escrita, e as suas por sua vez impossibilidades, me venham a fazer pintar ou alguma coisa intermédia. Inventei já o centissegundo, que não sei como explicar. Faltar-me-ia agora descobrir o escre-pintar, esse novo e universal esperanto que a todos nós transformaria em escrepintores, então talvez dignos práticos de bentas artemages. Procuro no sono: artemages, bartemages, barthes mage, cartemades, karl marx, dartemages, dar-te mais, eartemages, e arte? Mais
Sei de pintura o bastante, e agora o suficiente de caligrafia, para perceber e tentar praticar que poucas coisas exigem tanto organização como a expressão da incoerência.
Uma porta é, ao mesmo tempo, uma abertura e aquilo que a fecha. [...]
Que eu me lembre só o mais literário dos pintores (Magritte) observou a porta e a passagem por ela com olhos surpreendidos e talvez inquietos. As portas de Magritte, abertas ou entreabertas, não garantem que do outro lado esteja ainda o que lá tínhamos deixado.
Mas escrever (aí está o que eu já aprendi) é uma escolha, tal como pintar. Escolhem-se palavras, frases, partes de um diálogo como se escolhem cores ou se determina a extensão e a direcção das linhas.
" Segredos?" ... " Não. Papéis. Coisas escritas."
Perdido No labirinto de mim mesmo, já Não sei qual o caminho que me leva...
Dormi, sonhei. No informe labirinto
Que há entre o mundo e o nada me perdi.
Em bosques de mim mesmo me embebi,
Misto indeciso do que vejo e sinto.
Estagno incorpóreo. No infiel recinto
Leio o transtorno do que nunca li,
E o labirinto nunca está em si,
Nem há mundo no incerto e abstracto plinto.
Minha alma é um ser que a verdade engana,
Memória da partida dos navios
Na praia que de espuma se engalana.
Não voltaram dos longes os sombrios
Barcos, e o luar mole deixa ver
A praia com a espuma a escurecer.
Esse lugar activo de sensações, a minha alma, passeia às vezes comigo conscientemente pelas ruas nocturnas da cidade, nas horas tedientas em que me sinto um sonho entre sonhos de outra espécie, à luz (...) do gás, pelo ruído transitório dos veículos (...) Ao mesmo tempo que em corpo me embrenho por vielas e subruas, torna-se-me complexa a alma em labirintos de sensação. Tudo quanto de aflitivamente pode dar a noção de irrealidade e de existência fingida, tudo quanto soletra, sem ser ao raciocínio, mas concreta e (...)mente, o quanto é mais do que oco o lugar do universo, desenrola-se-me então objectivamente no espírito apartado. Angustia-me, não sei porquê, essa extensão objectiva de ruas estreitas, e largas, essa consecução (...) de candeeiros, árvores, janelas iluminadas e escuras, portões fechados e abertos, vultos heterogeneamente nocturnos que a minha vista curta, no que de maior imprecisão lhes dá, ajuda a tornar subjectivamente monstruosos, incompreensíveis e irreais. Fragmentos verbais de inveja, de luxúria, de trivialidade vão de embate ao meu sentido de ouvir. Sussurrados murmúrios (...) ondulam para a minha consciência. Pouco a pouco vou perdendo a consciência nítida de que existo coextensamente com isto tudo, de que realmente me movo, ouvindo e pouco vendo, entre sombras que representam entes e lugares onde entes o são. Torna-se-me gradualmente, escuramente, indistintamente incompreensível como é que isto tudo pode ser em face do tempo eterno e do espaço infinito. Passo daqui, por passiva associação de ideias, a pensar nos homens que desse espaço e desse tempo tiveram a consciência analisadora e compreendedoramente perdida. Sente-se-me grotesco a ideia de que entre homens como estes, em noites sem dúvida como esta, em cidades de certo não essencialmente diversas da em que penso, os Platões, os Scotus Erigenas, os Kants, os Hegels como que se esqueceram disto tudo, como que se tornaram diversos desta gente (...). E eram da mesma humanidade, (...). Eu mesmo que passeio aqui com estes pensamentos, com que horrorosa nitidez, ao pensá-los, me sinto distante, alheio, confuso e (…). Acabo a minha solitária peregrinação. Um vasto silêncio, que sons miúdos não alteram no como é sentido, como que me assalta e subjuga. Um cansaço imenso das meras coisas, do simples estar aqui, do (...) encontrar-me deste modo pesa-me do espírito ao corpo (...). Quase que me surpreendo a querer gritar, de afundando-me que me sinto em um oceano de (...) de uma imensidão que nada tem com a infinidade do espaço nem com a eternidade do tempo, nem com qualquer coisa susceptível de medida e nome. Nestes momentos de terror supremamente silencioso não sei o que sou materialmente, o que costumo fazer, o que me é usual querer, sentir e pensar. Sinto-me perdido de mim mesmo, fora do meu alcance. A ânsia moral de lutar, o esforço intelectual para sistematizar e compreender, a irrequieta aspiração artista a produzir uma coisa que ora não compreendo, mas que me lembro de compreender, e a que chamo beleza, tudo isto se me some do instinto do real, tudo isto se me afigura nem digno de ser pensado inútil, vazio e longínquo. Sinto-me apenas um vácuo, uma ilusão de uma alma, um lugar de um ser, uma escuridão de consciência onde estranho insecto (...) procurasse em vão sequer a cálida lembrança de uma luz.
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