As correntes unem ou aprisionam? As exclusões libertam ou amarram?
O cansaço de todas as ilusões e de tudo o que há nas ilusões — a perda delas, a inutilidade de as ter, o antecansaço de ter que as ter para perdê-las, a mágoa de as ter tido, a vergonha intelectual de as ter tido sabendo que teriam tal fim. A consciência da inconsciência da vida é o mais antigo imposto à inteligência. Há inteligências inconscientes, brilhos do espírito, correntes do entendimento, mistérios e filosofias que têm o mesmo automatismo que os reflexos corpóreos, que a gestão que o fígado e os rins fazem de suas secreções.
Não nos adaptamos, porque os sãos se não adaptam a meio mórbido. Não nos adaptando, somos mórbidos. Neste paradoxo, nós, os pagãos, vivemos. Não temos outra esperança, nem outro remédio. Aceito como tal esta atitude nossa, mas não aceito o modo como a aceita Ricardo Reis. Quero que sejamos indiferentes para com uma época que nada pode querer de nós, e sobre a qual em nada podemos agir. Mas não quero que se cante essa indiferença como coisa boa de per si. É isso que faz Ricardo Reis. Por esse ponto, longe de tornar-se indiferente às correntes da época, integra-se em uma delas, que é a decadente. Essa indiferença, é já uma adaptação ao meio. É já uma concessão.
Ele é um cidadão livre e protegido da terra, pois está preso a uma corrente suficientemente longa para lhe permitir aceder a todos os espaços da terra, mas não tão longa que permita que ele seja arrancado para além dos limites da terra. Ao mesmo tempo, é também um cidadão livre e protegido do céu,pois está preso ao céu por uma corrente semelhante. Se quer ir para a terra, é estrangulado pela corrente do céu, se quer ir para o céu, pela da terra. No entanto, tem todas as possibilidades, e sente-o; recusa-se mesmo a remontar toda esta situação a um erro aquando da primeira vez que foi acorrentado.
Esta sensação:" não vou ancorar por aqui" - e logo sentir à sua volta a corrente ondulante que nos leva!
Com todo o gesso
dos campos maus,
eras junco de amor, jasmim molhado.
Com o sol e chama
dos céus malvados,
eras rumor de neve por meu peito.
Céus e campos
prendiam correntes em minhas mãos.
Campos e céus
açoitavam as chagas do meu corpo.
Tenho medo de perder a maravilha dos teus olhos de estátua ... Tenho pena de ser nesta ribeira tronco sem ramos; e o que mais eu sinto é não ter a flor, polpa, ou argila para o gusano do meu sofrimento. Se és o meu tesouro que tenho oculto se és a minha cruz e a minha dor molhada, se do teu senhorio sou o cão, não me deixes perder o que ganhei e decora as águas do teu rio com as folhas do meu outono esquivo.
O meu coração sem privilégio!
Minha sensibilidade da exclusão!
Minha mágoa extrema de ser eu! (...)
Sempre, sempre, sempre...
Voltei sempre à cidade,
Voltei sempre à cidade, depois de especulações e desvios,
Voltei sempre com vontade de jantar.
Mas nunca jantei o jantar que soa atrás de persianas
Das casas felizes dos arredores por onde se volta ao eléctrico,
Das casas conjugais da normalidade da vida!
Pago o bilhete através dos interstícios,
E o condutor passa por mim como se eu fosse a Crítica da Razão Pura...
Paguei o bilhete. Cumpri o dever. Sou vulgar.
E tudo isto são coisas que nem o suicídio cura.
Tenho medo ser excluída. Não sei bem de quê, mas tenho medo ser excluída...
A Estante Fnac convidou um júri de cinco elementos, composto pela jornalista Clara Ferreira Alves, o crítico Pedro Mexia, o professor catedrático Carlos Reis, o editor Manuel Alberto Valente e a jornalista Isabel Lucas, para eleger os 12 melhores livros portugueses. O júri restringiu a escolha a obras de ficção narrativa publicadas entre 1 de janeiro de 1916 e 1 de janeiro de 2016, tendo a eleição recaído sobre os 12 livros que se apresentam abaixo, sem qualquer ordem a não ser a alfabética.
Este é o resultado...bem discutível, direi eu: alguns deles estão mesmo na minha estante e lá permanecerão porque não merecem ser relidos...Esquecer o Gonçalo M. Tavares é quase ofensivo. Colocar Finisterra ou Para sempre, a par com o Livro do desassossego é inqualificável...não há subjetividade que o justifique!!
1- Nasci em um tempo em que a maioria dos jovens haviam perdido a crença em Deus, pela mesma razão que os seus maiores a haviam tido – sem saber porquê.
2- Se eu quisesse, enlouquecia. Sei uma quantidade de histórias terríveis. Vi muita coisa, contaram-me casos extraordinários, eu próprio… Enfim, às vezes já não consigo arrumar tudo isso.
3-Aqui o mar acaba e a terra principia. Chove sobre a cidade pálida, as águas do rio correm turvas do barro, há cheia nas lezírias.
5- Há uma data na varanda desta sala – disse Germana – que lembra a época em que a casa se reconstruiu. Um incêndio, por alturas de 1870, reduziu a ruínas toda a estrutura primitiva.
6-Ramon Berenguer de Cabanellas y Puigmal já era célebre, quando, por fusão de duas turmas, passou a ser meu colega no 6.° ano dos liceus.
10-Do pinhão, que um pé-de-vento arrancou ao dormitório da pinha-mãe, e da bolota, que a ave deixou cair no solo, repetido o acto mil vezes gerou-se a floresta.
11- 13 de Novembro. Ouço sempre o mesmo ruído de morte que devagar rói e persiste…
Seria bom que todas as exclusões fossem tão fáceis como apagar livros de uma lista ... Exluir pode ser ,ainda, mais difícil do que ser excluído...
Mas a exclusão, que me impus, dos fins e dos movimentos da vida; a ruptura, que procurei, do meu contacto com as coisas — levou-me precisamente àquilo a que eu procurava fugir. Eu não queria sentir a vida, nem tocar nas coisas, sabendo, pela experiência do meu temperamento em contágio do mundo, que a sensação da vida era sempre dolorosa para mim. Mas ao evitar esse contacto, isolei-me, e, isolando-me, exacerbei a minha sensibilidade já excessiva. Se fosse possível cortar de todo o contacto com as coisas, bem iria à minha sensibilidade. Mas esse isolamento total não pode realizar-se. Por menos que eu faça, respiro, por menos que aja, movo-me. E, assim, conseguindo exacerbar a minha sensibilidade pelo isolamento, consegui que os factos mínimos, que antes mesmo a mim nada fariam, me ferissem como catástrofes. Errei o método de fuga. Fugi, por um rodeio incómodo, para o mesmo lugar onde estava, com o cansaço da viagem sobre o horror de viver ali.(...) Matei a vontade a analisá-la. Quem me tornara a infância antes da análise, ainda que antes da vontade! Nos meus parques, sono morto, a sonolência dos tanques ao sol-alto, quando os rumores dos insectos chusmam na hora e me pesa viver, não como uma mágoa, mas como uma dor física por concluir. Palácios, muito longe, parques absortos, a estreiteza das áleas ao longe, a graça morta dos bancos de pedra para os que foram — pompas mortas, graça desfeita, ouropel perdido. Meu anseio que esqueço, quem me dera recuperar a mágoa com que te sonhei.
Talvez pudesse ouvir passos junto à porta do quarto, passos leves que estacariam enquanto a minha vida, toda a vida, ficaria suspensa. Eu existiria então vagamente, alimentado pela violência de uma esperança, preso à obscura respiração dessa pessoa parada. Os comboios passariam sempre. E eu estaria a pensar nas palavras do amor, naquilo que se pode dizer quando a extrema solidão nos dá um talento inconcebível. O meu talento seria o máximo talento de um homem e devia reter, apenas pela sua força silenciosa, essa pessoa defronte da porta, a poucos metros, à distância de um simples movimento caloroso. Mas nesse instante ser-me-ia revelada a essencial crueldade do espírito. Penso que desejaria somente a presença incógnita e solitária dessa pessoa atrás da porta.
E as pessoas nem sonham que quem acaba uma coisa nunca é aquele que a começou, mesmo que ambos tenham um nome igual, que isso só é que se mantém constante, nada mais.
certas perguntas são feitas apenas para tornar mais explícita a ausência de resposta
é quase sempre assim, um homem rala-se, preocupa-se, teme o pior, julga que o mundo lhe vai pedir contas e prova real, e o mundo já lá vai adiante, a pensar noutros episódios.
o ridículo é como uma queimadura por dentro, um ácido em cada momento reavivado pela memória, uma ferida infatigável.
Que estranha corrente me fez associar saramago a esta imagem de hitchcock? Talvez saiba a resposta...
Não é Ricardo Reis quem pensa estes pensamentos nem um daqueles inúmeros que dentro de si moram, é talvez o próprio pensamento que se vai pensando, ou apenas pensando, enquanto ele assiste, surpreendido, ao desenrolar de um fio que o leva por caminhos e corredores ignotos
por que será que as palavras se servem tantas vezes de nós, vemo-las a aproximarem-se, a ameaçarem, e não somos capazes de afastá-las, de calá-las, e assim acabamos por dizer o que não queríamos, é como o abismo irresistível, vamos cair e avançamos.
sentiu na casa uma presença, talvez não fosse ainda a solidão, era o silêncio, meio-irmão dela
- Se alguém a ofendesse muito, perdoava, retribuía ou esquecia?
- Perdoava a uma criança, retribuía a uma mulher; tratando-se de um homem, esquecia.
Onde não há inocência, pode haver pecado; mas onde não há sabedoria, há sempre desgraça.
A infelicidade também cria raízes.
Quina abriu os olhos, e disse em voz audível algumas palavras que não eram delírio, nem oração, porque o tempo de oração estava no fim, e toda a sua alma se projectava num abismo inefável, se dispersava para entrar na composição magnífica do cosmos.
Correntes e exclusões são, afinal, equivalentes simbólicos: ambas condicionam. Ambas impossibilitam que se pertença...
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