Não é neccessário vivermos ao lado de alguém para nos sentirmos ligados a esse alguém mais do que a qualquer outra pessoa...

terça-feira, 25 de outubro de 2016

Perfumes, pausas e paragens ...

Uma pausa. Um intervalo. Uma viragem.


Foi então que Grenouille sentiu que o olhar lhe fugia e o mundo exterior se transformava em trevas. O nevoeiro prisioneiro condensou-se num líquido ardente, à semelhança do leito que ferve e vem por fora. Inundou-o e esmagou-o com uma insuportável pressao de encontro à parede interior do seu corpo, sem encontrar saída. Ele queria fugir, fugir por qualquer meio, mas fugir para onde? ... Queria desfazer-se, explodir, para não ser asfixiado por si próprio. Finalmente, caiu prostrado e sem sentidos.

Tinha-o na cova da mão. Um poder superior ao poder do dinheiro ou ao poder do terror ou ao poder da morte: o poder invencível de suscitar amor nos homens. Só havia uma coisa que este poder não abrangia: não conseguia que Grenouille emanasse odor. E, embora o seu perfume o fizesse aparecer como um deus aos olhos do mundo, se ele não podia cheirar-se, jamais saberia quem era: sentia um desprezo total pelo mundo, por ele próprio e pelo seu perfume.



Nunca amei ninguém. O mais que tenho amado são sensações minhas - estados da visualidade consciente, impressões da audição desperta, perfumes que são uma maneira de a humildade do mundo externo falar comigo, dizer-me coisas do passado (tão fácil de lembrar pelos cheiros) isto é, de me darem mais realidade, mais emoção, que o simples pão a cozer lá dentro na padaria funda, como naquela tarde longínqua em que vinha do enterro do meu tio que me amara tanto e havia em mim vagamente a ternura de um alívio, não sei bem de quê.

Agora que sinto amor
Tenho interesse no que cheira.
Nunca antes me interessou que uma flor tivesse cheiro.
Agora sinto o perfume das flores como se visse uma coisa nova.


Quem te diz que eu não sou uma roseira branca e este corpo que pelos olhos conheces, o meu mero perfume... És cego realmente, e só apreendes o meu perfume irreal sob a forma real de visão...

O meu amar-te é uma catedral de silêncios eleitos,
E os meus sonhos uma escada sem princípio mas com fim...

Ah, o teu tédio é uma estátua de uma mulher que há-de vir,
O perfume que os crisântemos teriam, se o tivessem...

E o meu saber-te a sorrir uma flor murcha a meu peito...
Ah, se fôssemos duas figuras num longínquo vitral!...

O que é que me tortura?... Se até a tua face calma
Só me enche de tédios e de ópios de ócios medonhos...
Não sei... Eu sou um doido que estranha a sua própria alma...
Eu fui amado em efígie num país para além dos sonhos..


Sobreviva apenas ao que tem que morrer O luar e a hora e o vago perfume indolente E as palavras por dizer...

Não sei que lhe diga do seu livro, que seja bem um ajuste entre a minha sensibilidade e a minha inteligência. Ele é deveras a obra de um Poeta, mas não ainda de um Poeta que se encontrasse, se é que um Poeta não é, fundamentalmente, alguém que nunca se encontra. Há imperfeições e inacabamentos nos seus versos. Vêem-se ainda entre as flores as marcas das suas passadas. Não se deveriam ver. Do poeta deve ser o ter passado sem outro vestígio que a presença das rosas. Para quê os ramos quebrados, ainda, e partido o caule das violetas?(...) O seu livro é dos mais belos que recentemente tenho lido. Digo-lhe isto para que, não me conhecendo, me não julgue posto sobre a severidade sem atenção às belezas do seu livro. Há em si o com que os grandes poetas se fazem. De vez em quando a mão do escultor faz falar as curvas nuas da sua Matéria.(...) Há um grande prazer estético às vezes em deixar passar sem exprimir uma emoção cuja passagem nos exige palavras. Dos nossos jardins interiores só devemos colher as rosas mais afastadas e as melhores horas e fixar só aquelas ocasiões do crepúsculo quando dói demasiado sentirmo-nos. Nenhum poeta tem o direito de fazer versos porque sinta a necessidade de os fazer. Há só a fazer aqueles versos cuja inspiração é perfumada de imortalidade. Escrevo e paro. Pergunto a mim-próprio se poderá julgar tudo isto, porque não é transbordante de elogios, uma crítica adversa. Não o conheço e não sei. Mas repare que só a quem muito aprecio eu escrevo destas coisas. Decerto me faça justiça de crer que a quem não tem nenhum valor eu digo imediatamente que tem muito. Só vale a pena notar os erros dos que são na verdade Poetas, daqueles em quem os erros são erros. Para que notar os erros daqueles que não têm em si senão o jeito de errar? Com tudo isto, que parece hesitante no elogio, repito-lhe que o seu livro é dos mais belos que ultimamente tenho lido. A sua imaginação, doentia e delicada, é uma princesa que olha das janelas o luxo longínquo dos tanques. Vejo que sente os repuxos. Eles são com efeito as melhores horas da água, e decerto que os mais belos são aqueles, em jardins ainda do século dezoito (e que nós nunca poderemos ver) .
A sua sensibilidade dói-me. Por certo que outrora nos encontrámos e entre sombras de alamedas dissemos um ao outro em segredo o nosso comum horror à Realidade. Lembra-se? (...) A hora (não se recorda?) essa era demasiado certa e humana. As flores tinham a sua cor e o seu perfume de soslaio para a nossa atenção. O espaço todo estava levemente inclinado(...) e nós sofríamos a instabilidade do jogo divino como crianças que apreciam as partidas que lhes fazem, porque são mostras de afeição. Foram belas essas horas que vivemos juntos. Nunca tornaremos a ter essas horas, nem esse jardim, nem os nossos soldados e os nossos barcos. Ficou tudo embrulhado no papel da seda da nossa recordação de tudo aquilo. Os soldados, pobres deles, furam quase o papel com as espingardas eternamente ao ombro. As proas dos barcos estão sempre para romper o invólucro. E sem dúvida que todo o sentido do nosso exílio é este — o terem-nos embrulhado os brinquedos de antes da Vida, terem-nos posto na prateleira que está exactamente fora do nosso gesto e do nosso jeito. Haverá uma justiça para as crianças que nós somos? Ser-nos-ão restituídos por mãos que cheguem aonde não chegamos os nossos companheiros de sonho, os soldados e os barcos? Sim, e mesmo nós próprios, porque nós não éramos isto que somos... Éramos duma artificialidade mais divina...
Escrevo e divago, e tudo isto parece-me que foi uma realidade. Tenho a sensibilidade tão à flor da imaginação que quase choro com isto, e sou outra vez a criança feliz que nunca fui, e as alamedas e os brinquedos, e apenas, no fim de tudo, a supérflua realidade da Vida...Perdoe-me que lhe escreva assim... A Vida, afinal, vale a pena que se lhe diga isto.(...) A tragédia foi esta, mas não houve dramaturgo que a escrevesse.

No silêncio mais fundo desta pausa,
Em que a vida se fez perenidade,
Procuro a tua mão, decifro a causa
De querer e não crer, final, intimidade.


Aqui a meu lado o bom cidadão escolheu Sagres que é tudo tudo cerveja a pausa que refresca a longa pausa de um longo cigarro King Size. atenção ao marketing. Eu não gosto de cerveja mas tenho de gostar que os outros gostem de cerveja sobretudo da Sagres para não contrariar os fabricantes de cerveja. atenção ao marketing. ninguém contraria os fabricantes da Opel e da Super Silver nem os fabricantes de alcatifas para panaceias nem as panaceias nem os códigos e os édredons macios nem as mensagens de natal dos estadistas nem os negociantes de armas da Suiça nem o homem da capa negra que virou costas ao Palmolive. [...]
Sagres é uma boa cerveja e eu acabarei por gostar da Sagres como gosto do Rexina. Sagres é a pausa que refresca e tem vitaminas todas as bebidas da televisão têm vitaminas mesmo as do programa literário que é detergente e eu uso-as e sou um cidadão perfeito e até já consigo adormecer sem hipnóticos depois de tomar o Tofa descafeínado [...]



Regresso ao tempo perdido: "A mulher terá Gomorra e o homem terá Sodoma."

Robert de Montesquiou - “uma mistura de idealismo e devassidão”.
André Gide - “aquilo tudo [é ] uma ofensa à verdade”.
Jean Cocteau - “Proust é um desalmado, não tem coração”.
Lucien Daudet - “Proust é um inseto atroz”.
Paul Claudel - “ Prost é uma velha judia sem escrúpulos”.
George Bataille - “Mais hábil do que Sade, Proust, ávido pelo gozo e pelo prazer, legou ao vício a cor detestável do vício, a condenação da virtude. Se dissermos que não há virtudes na obra, não é porque ela não alcançou o prazer, mas porque, alcançando o prazer, pretendeu-se também alcançar a virtude”.
Proust cometeu o mais indecoroso de todos os crimes: desrespeitou as normas proibitivas de fantasias sexuais e destruiu a crença numa única raça sexual...

Ora, as aberrações são como os amores em que a tara doentia recobriu tudo, a tudo contaminou. Mesmo na mais louca, o amor ainda se reconhece. A insistência do Sr. de Charlus em pedir que lhe atassem aos pés e às mãos anéis de solidez comprovada, em exigir a barra de justiça e, pelo que me disse Julien, ferozes acessórios muito difíceis de obter, mesmo com o auxílio de marinheiros; pois seriam para infligir suplícios cujo emprego já está abolido até a bordo do navios, onde a disciplina é mais rigorosa -, revelava, no fundo, o seu sonho a virilidade atestada, se preciso, por atos brutais, e toda a iluminura interior, invisível para nós, mas da qual projetava alguns reflexos, com insígnia de justiça e tortura feudais, decorados pela sua imaginação medieval.

E desde algum tempo, desde que sem dúvida me adivinhara o pensamento, nenhum pedido para convidar ninguém, nenhuma palavra, nem mesmo um desvio de olhar, que se tornara silencioso e sem finalidade, e com a fisionomia distraída e vaga de que eram acompanhados, tão revelador como outrora a sua magnetização. Pois bem, não me era possível censurá-la ou fazer perguntas a propósito de coisas que ela teria declarado serem tão ínfimas, tão insignificantes, que eu conservara na memória só pelo prazer de “esmiuçar”. Já é difícil dizer “porue olhou para aquela rapariga?” e mais ainda “porque não olhou para ela?” E no entanto eu bem sabia, ou pelo menos teria sabido, se tivesse desejado acreditar, não nas afirmações de Albertine, mas em todos os nadas incluídos num olhar, provados por ele e por tal ou qual contradição nas palavras, contradição da qual muitas vezes só me dava conta muito tempo depois de tê-la deixado, que me fazia sofrer a noite inteira, na qual não tinha mais coragem de voltar a falar, mas que nem por isso deixava de honrar minha memória de vez em quando com as suas visitas periódicas. Muitas vezes, naqueles simples olhares furtivos ou desviados na praia de Balbec, ou nas ruas de Paris, eu podia indagar-me se a pessoa que os provocava não era somente um objeto de desejos no momento em que passava, mas uma conhecida antiga, ou então uma rapariga de quem lhe haviam falado e da qual, quando eu vinha a sabê-lo, ficava estupefato de que lhe houvessem falado, de tão fora que a julgava de todos os conhecimentos possíveis de Albertine. Mas a Gomorra é um puzzle feito de pedaços que vêm de onde menos se espera. Foi assim que, em Rivebelle, compareci a um grande jantar, onde por acaso conhecia, ao menos de nome, as dez convidadas, tão dissemelhantes quanto possível, e todavia perfeitamente ajustadas, de forma que jamais vi um jantar tão homogéneo, muito embora tão composto.

Outras pausas...

O que verdadeiramente Campos faz, quando escreve em verso, é escrever prosa ritmada com pausas maiores marcadas em certos pontos, para fins rítmicos, e esses pontos de pausa maior determina-os ele pelos fins dos versos. Campos é um grande prosador, um prosador com uma grande ciência do ritmo; mas o ritmo de que tem ciência é o ritmo da prosa, e a prosa de que se serve é aquela em que se introduziu, além dos vulgares sinais de pontuação, uma pausa maior e especial, que Campos, como os seus pares anteriores e semelhantes, determinou representar graficamente pela linha quebrada no fim, pela linha disposta como o que se chama um verso. Se Campos, em vez de fazer tal, inventasse um sinal novo de pontuação — digamos o traço vertical (|) — para determinar esta ordem de pausa, ficando nós sabendo que ali se pausava com o mesmo género de pausa com que se pausa no fim de um verso, não faria obra diferente, nem estabeleceria a confusão que estabeleceu.

Nós não falamos em prosa. Falamos em verso. Falamos em verso sem rima nem ritmo. Fazemos pausas na conversa que na leitura da prosa se não podem fazer. Falamos, sim, em verso, em verso natural - isto é, em verso sem rima nem ritmo, com as pausas do nosso fôlego e sentimento.

( É deprimente: estavam meia dúzia de pessoas... O Woody,apesar de tudo, não merece tal desconsideração...)


Paragens...

Conduz-me o teu perfume às paragens mais belas;
Vejo um porto ideal cheio de caravelas
Vindas de percorrer países estrangeiros;


Creio que irei morrer. Mas o sentido de morrer não me ocorre, Lembra-me que morrer não deve ter sentido. Isto de viver e morrer são classificações como as das plantas. Que folhas ou que flores tem uma classificação? Que vida tem a vida ou que morte a morte? Tudo são termos nada se define. A única diferença é um contorno, uma paragem, uma cor que destinge, uma (...) mas o Universo existe mesmo sem o Universo. Esta verdade capital é falsa só quando é dita.

O dinâmico é a paragem do estático. O que se desloca é o que não se desloca. O sujeito é objecto de si-próprio e isto não é verdade.

E, hoje, pensando no que tem sido a minha vida, sinto-me qualquer bicho vivo, transportado num cesto de encurvar o braço, entre duas estações suburbanas. A imagem é estúpida, porém a vida que defini é mais estúpida ainda do que ela. Esses cestos costumam ter duas tampas, como meias ovais, que se levantam um pouco em um ou outro dos extremos curvos se o bicho estrebucha. Mas o braço de quem transporta, apoiado um pouco ao longo dos dobramentos centrais, não deixa coisa tão débil erguer frustemente mais do que as extremidades inúteis, como asas de borboleta que enfraquece. Esqueci-me que falava de mim com a descrição do cesto. Vejo-o nitidamente, e ao braço gordo e branco queimado da criada que o transporta. Não consigo ver a criada para além do braço e a sua penugem. Não consigo sentir-me bem senão — de repente — uma grande frescura daqueles varais brancos e nastros com que se tecem os cestos e onde estrebucho, bicho, entre duas paragens que sinto. Entre elas repouso no que parece ser um banco e falam lá fora do meu cesto. Durmo porque sossego, até que me ergam de novo na paragem...

Deixei atrás os erros do que fui,
Deixei atrás os erros do que quis
E que não pude haver porque a hora flui
E ninguém é exacto nem feliz.
Tudo isso como o lixo da viagem
Deixei nas circunstâncias do caminho,
No episódio que fui e na paragem,
No desvio que foi cada vizinho.


Eu o prolixo até de continências e paragens...

PARAGEM. ZONA
Tragam-me esquecimento em travessas!
Quero comer o abandono da vida!
Quero perder o hábito de gritar para dentro.
Arre, já basta! Não sei o quê. mas já basta...
Então viver amanhã, hein?... E o que se faz de hoje?
Viver amanhã por ter adiado hoje?
Comprei por acaso um bilhete para esse espectáculo?
Que gargalhadas daria quem pudesse rir!
E agora aparece o eléctrico — o de que eu estou à espera —
Antes fosse outro... Ter de subir já!
Ninguém me obriga, mas deixai-o passar, porquê?
Só deixando passar todos, e a mim mesmo, e à vida...
Que náusea no estômago real que é a alma consciente!
Que sono bom o ser outra pessoa qualquer...
Já compreendo porque é que as crianças querem ser guarda-freios...
Não, não compreendo nada...
Tarde de azul e ouro, alegria das gentes, olhos claros da vida...



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