Não é neccessário vivermos ao lado de alguém para nos sentirmos ligados a esse alguém mais do que a qualquer outra pessoa...

quinta-feira, 27 de outubro de 2016

Processos...Nuvens ...Falhanços...

Ninguém podia passar dias e noites inteiros a vigiar o artista da fome,ninguém podia assim ver, com os próprios olhos, que ele jejuara sem interrupção nem falhas; só o próprio artista da fome o podia saber,ele era assim o único espectador da sua fome inteiramente satisfeito.

Um trapezista ordenara a sua vida, primeiro apenas por um desejo de perfeição, mais tarde também por um hábito que se tornara tirano,de modo a ficar dia e noite sobre o trapézio...

Como símio,Via aqueles homens que subiam e desciam,sempre os mesmos rostos,os mesmos movimentos,muitas vezes pareciam-me ser apenas um.(...) Ninguém me prometeu que me deixariam sair da jaula se eu me tornasse como eles.(...) Fosse eu adepto daquela liberdade já mencionada e teria seguramente preferido o oceano à saída que se me mostrava no olhar turvo daqueles homens.



Aguém devia ter caluniado Josef K., porque foi preso uma manhã ,sem que ele houvesse feito alguma coisa de mal.

No entanto, o que se estava agora a passar não lhe parecia correcto, embora, na verdade, pudesse ser tomado por uma partida de mau gosto que, por motivos desconhecidos, talvez por ele fazer 30 anos nesse dia, os colegas do banco tivessem preparado. Possivelmente bastaria que ele achasse forma de se rir na cara dos guardas para que estes correspondessem ao seu riso, Quem sabe se eles não eram simplesmente os moços de fretes da esquina? Realmente eram parecidos.

É assim a Lei. Como poderá haver enganos?

O que me aconteceu não passa de um caso isolado e, como tal, pouco importante, visto que não o tomo muito a sério. É, porém, o símbolo dum procedimento judicial tal qual é exercido contra muitos. E por esses que eu falo, não por mim.

Quem era? Um amigo? Uma boa alma? Um participante? Alguém que queria ajudar? Era um só? Eram todos? Havia ainda auxílio? Havia ainda objecções por levantar? Havia-as com certeza. A lógica é na verdade inabalável, mas não resiste a um homem que quer viver. Onde estava o juiz que ele nunca tinha visto? Onde estava o alto tribunal que ele nunca alcançara? Levantou a mão e estendeu os dedos. Mas um dos homens pôs-lhe as mãos no pescoço, enquanto o outro lhe espetava profundamente a faca no coração e aí a rodava duas vezes. Moribundo, K. viu ainda os dois homens muito perto do seu rosto, com as faces quase coladas, a observarem o desfecho.

Tenta fazer esta experiência, construindo um palácio. Equipa-o com mármore, quadros, ouro, pássaros do paraíso, jardins suspensos, todo o tipo de coisas... e entra lá para dentro. Bem, pode ser que nunca mais desejasses sair daí. Talvez, de facto, nunca mais saisses de lá. Está lá tudo! "Estou muito bem aqui sozinho!". Mas, de repente - uma ninharia! O teu castelo é rodeado por muros, e é-te dito: 'Tudo isto é teu! Desfruta-o! Apenas não podes sair daqui!". Então, acredita-me, nesse mesmo instante, quererás deixar esse teu paraíso e pular por cima do muro. Mais! Tudo esse luxo, toda essa plenitude, aumentará o teu sofrimento. Sentir-te-ás insultado como resultado de todo esse luxo... Sim, apenas uma coisa te falta... um pouco de liberdade.

Shanamte vrumte sempora ... Cum blas me ...shanam und codete recumbans me mum...cum andros kai gunê also bisverdas chãs .Pusci quwho shana metcum m , sedbu no esis pocan...M scipu bimagn drereson...on shana, on friami that m cribel be fortousem...Sosdurmasos ou tchanvale, shana ofmbio?Ninemais du liabanlai, ninemais, sut...Shanam vrumte sempora ... Cum blas me ...shanam code te recumbans me mum...cum andros kai gunê also bisverdas chãs Shaneite sol carnamensis vrumte kaloskaiagatos also andros meta underall. Shana simblas sed timtamtum,timtamtum... o shana ofbio!!sokalos und string, shananamte. Wasdu,wasdu??Cum vrumte, cum blasme,gmoigresiul, guneorbihapiersum!! Ringrim, ringrimsum?? Wasus,wasus, shana ofmbio?? Us nitatani:shanamiest... Uposinetiquetadu, shanam nonverid. Trr shanascatola to blaste ridendo, tmoigresarin, prunusia ofbiom. Oh... verbatuaegraf, ohverbatuaegraf...Blaspää, shana ofmbio. Blaspää... Tchanvale, tchanvale...

Os significantes transitam de uma inexistência total para um conjunto de sons com significado, embora não se saiba exatamente o que significam...É libertador! Dizer, palavrar, diretamente para o papel, numa escrita totalmente autotélica e automática que atinge uma significação plena no universo discursivo de um único ser, mas que, não inocentemente, fornece pistas indeléveis, encriptadas, que podem ser reveladas, como se de um enigma se tratasse... É aliciante, sou a criadora de significantes e significados…Sinto-me um deus, irrelevante e efémero, mas um deus que derruba as grades da mudez que me aprisiona, tornando-me livre como uma nuvem...

In the quiet of the shadow In the corner of a room Darkness moves upon you Like a cloud across the moon...



Sim, é como isto: pelo céu
Vai uma nuvem destroçada
Que é véu, mau véu, ou quase véu,
E, como tudo, não é nada.


Devia morrer-se de outra maneira. Transformarmo-nos em fumo, por exemplo. Ou em nuvens. Quando nos sentíssemos cansados, fartos do mesmo sol a fingir de novo todas as manhãs, convocaríamos os amigos mais íntimos com um cartão de convite para o ritual do Grande Desfazer: "Fulano de tal comunica a V. Exa. que vai transformar-se em nuvem hoje às 9 horas. Traje de passeio". E então, solenemente, com passos de reter tempo, fatos escuros, olhos de lua de cerimónia, viríamos todos assistir à despedida. Apertos de mãos quentes. Ternura de calafrio. "Adeus! Adeus!" E, pouco a pouco, devagarinho, sem sofrimento, numa lassidão de arrancar raízes... (primeiro, os olhos... em seguida, os lábios... depois os cabelos... ) a carne, em vez de apodrecer, começaria a transfigurar-se em fumo... tão leve... tão sutil... tão pólen... como aquela nuvem além (vêem?) — nesta tarde de outono ainda tocada por um vento de lábios azuis

Nuvem alta, nuvem alta,
Porque é que tão alta vais?
Se tens o amor que me falta,
Desce um pouco, desce mais.


NUVENS - No dia triste o meu coração mais triste que o dia...Obrigações morais e civis? Complexidade de deveres, de consequências?Não, nada...O dia triste, a pouca vontade para tudo...Nada...No dia triste o meu coração mais triste que o dia...No dia triste todos os dias...No dia tão triste..

Uma após uma as nuvens vagarosas
Rasgam o seu redondo movimento
E o sol aquece o espaço
Do ar entre as nuvens escassas.
Indiferente a mim e eu a ela,
A natureza deste dia calmo
Furta pouco ao meu senso
De se esvair o tempo.
Só uma vaga pena inconsequente
Pára um momento à porta da minha alma
E após fitar-me um pouco
Passa, a sorrir de nada
.

Nuvens... Hoje tenho consciência do céu, pois há dias em que o não olho mas sinto, vivendo na cidade e não na natureza que a inclui. Nuvens... São elas hoje a principal realidade, e preocupam-me como se o velar do céu fosse um dos grandes perigos do meu destino. Nuvens... Passam... num tumulto disperso e despido, branco às vezes, se vão esfarrapadas na vanguarda de não sei quê; meio-negro outras, se, mais lentas, tardam em ser varridas pelo vento audível; negras de um branco sujo, se, como se quisessem ficar, enegrecem mais da vinda que da sombra o que as ruas abrem de falso espaço entre as linhas fechadoras da casaria. Nuvens... Existo sem que o saiba e morrerei sem que o queira. Sou o intervalo entre o que sou e o que não sou, entre o que sonho e o que a vida fez de mim, a média abstracta e carnal entre coisas que não são nada, sendo eu nada também. Nuvens... Que desassossego se sinto, que desconforto se penso, que inutilidade se quero! Nuvens... Estão passando sempre, umas muito grandes, parecendo, porque as casas não deixam ver se são menos grandes que parecem, que vão a tomar todo o céu; outras de tamanho incerto, podendo ser duas juntas ou uma que se vai partir em duas, sem sentido no ar alto contra o céu fatigado; outras ainda, pequenas, parecendo brinquedos de poderosas coisas, bolas irregulares de um jogo absurdo, só para um lado, num grande isolamento, frias. Nuvens... Interrogo-me e desconheço-me. Nada tenho feito de útil nem farei de justificável. Tenho gasto a parte da vida que não perdi em interpretar confusamente coisa nenhuma, fazendo versos em prosa às sensações intransmissíveis com que torno meu o universo incógnito. Estou farto de mim, objectiva e subjectivamente. Estou farto de tudo, e do tudo de tudo. Nuvens... São tudo, desmanchamentos do alto, coisas hoje só elas reais entre a terra nula e o céu que não existe; farrapos indescritíveis do tédio que lhes imponho; névoa condensada em ameaças de cor ausente; algodões de rama sujos de um hospital sem paredes. Nuvens... São como eu, uma passagem desfeita entre o céu e a terra, ao sabor de um impulso invisível, trovejando ou não trovejando, alegrando brancas ou escurecendo negras, ficções do intervalo e do descaminho, longe do ruído da terra e sem ter o silêncio do céu. Nuvens... Continuam passando, continuam sempre passando, passarão sempre continuando, num enrolamento descontínuo de meadas baças, num alongamento difuso de falso céu desfeito.

Como um grande borrão de fogo sujo O sol-posto demora-se nas nuvens que ficam. Vem um silvo vago de longe na tarde muito calma. Deve ser dum comboio longínquo. Neste momento vem-me uma vaga saudade E um vago desejo plácido Que aparece e desaparece.

Um muro de nuvens densas
Põe na base do ocidente
Negras roxuras pretensas.
Com a noite tudo acaba.
O céu frio é transparente.
Nada de chuva desaba.
E não sei se tenho pena
Ou alegria da ausente
Chuva e da noite serena
De resto, nunca sei nada,
Minha alma é a sombra presente
De uma presença passada.


Há sensações que são sonos, que ocupam como uma névoa toda a extensão do espírito, que não deixam pensar que não deixam agir, que não deixam claramente ser. Como se não tivessemos dormido, sobrevive em nós qualquer coisa de sonho, e há um torpor do sol do dia a aquecer a superfície estagnada dos sentidos. É uma bebedeira de não ser nada, e a vontade é um balde despejado para o quintal por um movimento indolente do pé à passagem. Olha-se mas não se vê.(...) Não é tédio o que se sente. Não é mágoa o que se sente. É uma vontade de dormir com outra personalidade, e esquecer com melhoria de vencimento. Não se sente nada, a não ser um automatismo cá em baixo, a fazer umas pernas que nos pertencem levar a bater no chão, na marcha involuntária, uns pés que se sentem dentro dos sapatos. Nem isto se sente talvez. À roda dos olhos e como dedos nos ouvidos há um aperto de dentro da cabeça. Parece uma constipação na alma. E com a imagem literária de se estar doente nasce um desejo de que a vida fosse uma convalescença, sem andar; e a ideia de convalescença evoca as quintas dos arredores, mas lá para dentro, onde são lares, longe da rua e das rodas. Sim, não se sente nada.(...) Pobres das esperanças que tenho tido, saídas da vida que tenho tido de ter! São como esta hora e este ar, névoas sem névoa, alinhavos rotos de tormenta falsa. Tenho vontade de gritar, para acabar com a paisagem e a meditação. Mas há maresia no meu propósito, e a baixa-mar em mim deixou descoberto o negrume lodoso que está ali fora e não vejo senão pelo cheiro. Tanta inconsequência em querer bastar-me! Tanta consciência sarcástica das sensações supostas! Tanto enredo da alma com as sensações, dos pensamentos com o ar e o rio, para dizer que me dói a vida no olfacto e na consciência, para não saber dizer, como na frase simples e ampla do Livro de Job «Minha alma está cansada de minha vida!»

As lentas nuvens fazem sono,
O céu azul faz bom dormir.
Bóio, num íntimo abandono,
À tona de me não sentir.
E é suave, como um correr de água,
O sentir que não sou alguém.
Não sou capaz de peso ou mágoa.
Minha alma é aquilo que não tem


Nunca pude convencer-me de que podia, ou de que alguém seguramente poderia, dar alívio certo ou profundo, e muito menos cura, aos males humanos. Mas nunca, também, pude tirar deles o pensamento; a mais pequena angústia humana - mais, a mais leve imaginação dela - sempre me angustiou, me transtornou, me tirou do poder de me concentrar e de me egoizar.(...) Tudo, quanto penso ou sinto, inevitavelmente se me volve em modos de inércia. O pensamento, que em outros é uma bússola da acção, é para mim um microscópio dela, que me faz ver universos a atravessar onde um passo bastara para transpor - como se o argumento de Zenão, da intransponibilidade de cada espaço, que, por ser infinitamente divisível, é pois infinito, fosse uma droga estranha com que me houvessem intoxicado o organismo espiritual.(...) Toda a minha vida tem sido uma batalha perdida no mapa; a cobardia nem sequer foi no campo, onde talvez a não houvesse, mas no gabinete do chefe do Estado Maior, e de ele a sós com a sua convicção da derrota. Não se ousou o plano porque haveria de ser imperfeito; não se ousou torná-lo perfeito, ainda que não pudesse realmente sê-lo, porque a convicção de que não seria perfeito quebrou a vontade com que ele, ainda que imperfeito, sempre se poderia tentar. Nem me ocorreu nunca que o plano, embora imperfeito, poderia ser mais perfeito que o do inimigo. É que o meu vero inimigo... era aquela mesma ideia de perfeição, que me saía à frente antes que todas as hostes do mundo, na vanguarda trágica de todos os comandos do mundo.

Passa uma nuvem pelo sol
Passa uma pena por quem vê.
A alma é como um girassol:
Vira-se ao que não está ao pé.
Passou a nuvem; o sol volta.
A alegria girassolou.
Pendão latente de revolta,
Que hora maligna te enrolou?


Sabendo como as coisas mais pequenas têm com facilidade a arte de me torturar, de propósito me esquivo ao toque das coisas mais pequenas. Quem, como eu, sofre porque uma nuvem passa diante do sol, como não há-de sofrer no escuro do dia sempre encoberto da sua vida? O meu isolamento não é uma busca de felicidade, que não tenho alma para conseguir; nem de tranquilidade, que ninguém obtém senão quando nunca a perder, mas de sono, de apagamento, de renúncia pequena.

Se há uma nuvem que passa
Passa uma sombra também.
Ninguém diz que é desgraça
Não ter o que se não tem.




A noite era cheia daquelas pequenas nuvens muito brancas, que se destacam umas das outras. Vista através de uma ou outra delas, a Lua tinha em seu torno um halo azul, castanho e amarelo, com uns tons supostos de verde-vivo. Entre as árvores o céu era dum azul-negro profundíssimo, longínquo, irrevogável. As estrelas viam-se ora através das nuvens, ora, muito longe, mas entre elas. Uma saudade de coisas idas, de grandes passados da alma...

( teve saudades do professor que um dia lhe disse: " Nunca ninguém sistematizou tão bem,como a senhora, o pensamento de Pascoaes. É estranho, quase que o faz melhor que o autor... Felicito-a." Mentira. Não tem saudades do professor , tem saudades da recordação desse momento; tem saudades de si quando, pela primeira vez, escreveu sobre o Saudosismo; tem saudades de nunca mais poder pensar e escrever, pela primeira vez, sobre o tema...Tem saudade de nunca mais me sentir fascinada , pela primeira vez, com a prosa digna e solene de pascoaes...)

Nuvens: A metafísica será talvez uma indisposição que se quer passageira. Porém, eu continuo a inquietar-me com as nuvens que são arrastadas, violentamente arrastadas, na direcção sudeste, filtrando a luz do sol em obsessiva correria.

E se as nuvens no céu, brancas e altas,
Se movem, mais parecem
Que gira a terra rápida e elas passam,
Por muito altas, lentas.
Aqui neste sossego dilatado
Me esquecerei de tudo,
Nem hóspede será do que conheço
A vida que deslembro.


Um "clássico" do falhanço: "Quase"...

Um pouco mais de sol - eu era brasa,
Um pouco mais de azul - eu era além.
Para atingir, faltou-me um golpe de asa...
Se ao menos eu permanecesse aquém.

Assombro ou paz? Em vão... Tudo esvaído
Num grande mar enganador de espuma;
E o grande sonho despertado em bruma,
O grande sonho - ó dor! - quase vivido...


Quase o amor, quase o triunfo e a chama,
Quase o princípio e o fim - quase a expansão...
Mas na minh'alma tudo se derrama...
Entanto nada foi só ilusão!

De tudo houve um começo ... e tudo errou...
- Ai a dor de ser - quase, dor sem fim...
Eu falhei-me entre os mais, falhei em mim,
Asa que se elançou mas não voou...

Momentos de alma que,desbaratei...
Templos aonde nunca pus um altar...
Rios que perdi sem os levar ao mar...
Ânsias que foram mas que não fixei...

Se me vagueio, encontro só indícios...
Ogivas para o sol - vejo-as cerradas;
E mãos de herói, sem fé, acobardadas,
Puseram grades sobre os precipícios...

Num ímpeto difuso de quebranto,
Tudo encetei e nada possuí...
Hoje, de mim, só resta o desencanto
Das coisas que beijei mas não vivi...

Um pouco mais de sol - e fora brasa,
Um pouco mais de azul - e fora além.
Para atingir faltou-me um golpe de asa...
Se ao menos eu permanecesse aquém...


Reconheço hoje que falhei, só pasmo, às vezes, de não ter previsto que falharia. Que havia em mim que prognosticasse um triunfo? Eu não tinha a força cega dos vencedores ou a visão certa dos loucos... Era lúcido e triste como um dia frio.
Tenho elementos espirituais de boémio, desses que deixam a vida ir como uma coisa que se escapa das mãos e a tal hora em que o gesto de a obter dorme na mera ideia de fazê-lo. Mas não tive a compensação exterior do espírito boémio — o descuidado fácil das emoções imediatas e abandonadas. Nunca fui mais que um boémio isolado, o que é um absurdo; ou um boémio místico, o que é uma coisa impossível.
Certas horas-intervalos que tenho vivido, horas perante a natureza, esculpidas na ternura do isolamento, ficar-me-ão para sempre como medalhas. Nesses momentos esqueci todos os meus propósitos de vida, todas as minhas direcções desejadas. Gozei não ser nada com uma plenitude de bonança espiritual, caindo no regaço azul das minhas aspirações. Não gozei nunca, talvez, uma hora indelével, isenta de um fundo espiritual de falência e de desânimo. Em todas as minhas horas libertas uma dor dormia, floria vagamente, por detrás dos muros da minha consciência, em outros quintais, mas o aroma e a própria cor dessas flores tristes atravessavam intuitivamente os muros, e o lado de lá deles, onde floriam as rosas, nunca deixaram de ser, no mistério confuso do meu ser, um lado de cá — esbatido na minha sonolência de viver.
Foi num mar interior que o rio da minha vida findou. À roda do meu solar sonhado todas as árvores estavam no outono. Esta paisagem circular é a coroa-de-espinhos da minha alma. Os momentos mais felizes da minha vida foram sonhos, e sonhos de tristeza, e eu via-me nos lagos deles como um Narciso cego que gozou a frescura próximo da água, sentindo-se debruçado nela, por uma visão anterior e nocturna, segredada às emoções abstractas, vivida nos recantos da imaginação com um cuidado materno em preferir-se. Sei que falhei. Gozo a volúpia indeterminada da falência como quem dá um apreço exausto a uma febre que o enclausura.



Criei para mim, fausto de um opróbio, uma pompa de dor e de apagamento. Não fiz da minha dor um poema, fiz dela, porém, um cortejo. E da janela para mim contemplo, espantado, os [...] os crepúsculos vagos de dores sem razão, onde passam, nos cerimoniais do meu descaminho, os perigos, os fardos, os falhanços da minha incompetência de existir. A criança, que nada matou em mim, assiste ainda, de febre e fitas, ao circo que me dou. Ri dos palhaços, sem haver cá fora do circo; põe nos habilidosos e nos acrobatas olhos de quem vê ali toda a vida. E assim, sem alegria, sem contacto, entre as quatro paredes do meu quarto durmo, por [...], o seu pobre papel para o [...] toda a angústia insuspeita da mera alma humana que transborda, todo o desespero sem remédio de um coração a quem Deus abandonou.
Caminho, não pelas ruas, mas através da minha dor. As casas alinhadas são os incompreendedores que me cercam na alma.
Os meus passos soam no passeio como um dobre ridículo a finados, um ruído de espanto na noite final como um recibo ou uma janela.
Separo-me de mim e vejo que sou um fundo dum poço.
Morreu quem eu nunca fui. Esqueceu a Deus quem eu havia de ser. Só o interlúdio vazio.
Se eu fosse músico escreveria a minha marcha fúnebre, e com que razão a escreveria!


Não são as pessoas que são responsáveis pelo falhanço do casamento, é a própria instituição que é pervertida desde a origem.

Em horas inda louras, lindas
Clorindas e Belindas, brandas,
Brincam no tempo das berlindas,
As vindas vendo das varandas.
De onde ouvem vir a rir as vindas
Fitam a fio as frias bandas.

Mas em torno à tarde se entorna
A atordoar o ar que arde
Que a eterna tarde já não torna!
E em tom de atoarda todo o alarde
Do adornado ardor transtorna
No ar de torpor da tarda tarde.
E há nevoentos desencantos
Dos encantos dos pensamentos
Nos santos lentos dos recantos
Dos bentos cantos dos conventos...
Prantos de intentos, lentos, tantos
Que encantam os atentos ventos.



Nada me encanta já; tudo me aborrece, me nauseia. Os meus próprios raros entusiasmos, se me lembro deles, logo se me esvaem - pois, ao medi-los, encontro os tão mesquinhos, tão de pacotilha… Quer saber? Outrora, à noite, no meu leito, antes de dormir, eu punha-me a divagar. E era feliz por momentos, entressonhando a glória, o amor, os êxtases… Mas hoje já não sei com que sonhos me robustecer. Acastelei os maiores… eles próprios me fartaram: são sempre os mesmos - e é impossível achar outros… Depois, não me saciam apenas as coisas que possuo - aborrecem-me também as que não tenho, porque, na vida como nos sonhos, são sempre as mesmas. De resto, se às vezes posso sofrer por não possuir certas coisas que ainda não conheço inteiramente, a verdade é que, descendo-me melhor, logo averiguo isto: Meu Deus, se as tivera, ainda maior seria a minha dor, o meu tédio.


Fazer tanta esperança,
Pra hoje ver lembrança, tudo enfim
Nâo passou
De um triste desencanto...
E desde então eu canto a dor
Que eu não soube chorar...

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