"O jogo tem este fascínio pelo inútil. Triste é irmos abandonado o jogo, qualquer que ele seja. O jogo tem um prazer que não é diferido. A pessoa não joga para mais tarde ter qualquer coisa. É quase o inverso da lógica económica que existe. É ter como centro o prazer e não a vantagem económica. Isso é revolucionário. Hoje, se quisermos fazer micro revoluções, é fazermos um jogo." - Gonçalo M Tavares
Aos pés do trono do Grande Khan estendia-se um pavimento de azulejo. Marco Polo, informante mudo, espalhava o mostruário de mercadorias trazidas das suas viagens aos confins do império: um elmo, uma concha, um coco, um leque. Dispondo os objetos numa certa ordem sobre os azulejos brancos e pretos e, a partir daí, deslocando-os com movimentos estudados, o embaixador tentava representar aos olhos do monarca as vicissitudes da sua viagem, o estado do império, as prerrogativas de remotas capitais.
Kublai era um atento jogador de xadrez; seguindo os gestos de Marco, observava que certas peças implicavam ou excluíam a proximidade de outras peças e deslocavam-se de acordo com certas linhas. Descurando a variedade de formas, ele definia a disposição de um objeto em relação ao outro sobre o pavimento de azulejo. Pensou: "se cada cidade é como uma partida de xadrez, o dia em que eu conhecer as suas regras finalmente possuirei o meu império, apesar de que jamais conseguirei conhecer todas as cidades que este contém".
No fundo, era inútil que para falar de suas cidades Marco utilizasse tantas quinquilharias: bastava um tabuleiro de xadrez com peças classificáveis com exatidão. A cada peça podia atribuir-se alternadamente um significado apropriado: um cavalo podia representar tanto um cavalo real quanto um cortejo de carruagens, um exército em marcha, um monumento equestre; e uma rainha podia ser uma dama debruçada no balcão, uma fonte, uma igreja com a cúpula cuspidada, uma romãzeira.
Ao voltar da sua última missão, Marco Polo encontrou o Khan à sua espera, sentado diante de um tabuleiro de xadrez. Com um gesto, convidou-o a sentar à sua frente e descrever-lhe as cidades que visitara apenas com o auxílio do xadrez. O veneziano não se desesperou. O xadrez do Grande Khan era composto de grandes peças de marfim polido: dispondo sobre o tabuleiro torres ameaçadoras e cavalos sombrios, condensando uma grande quantidade de peças, traçando avenidas retas ou oblíquas como os movimentos da rainha, Marco recriava as perspectivas e os espaços de cidades brancas-e-pretas em noites de lua.
Ao contemplar essas paisagens essenciais, Kublai refletia sobre a ordem invisível que governava a cidade, sobre as regras a que respondiam o seu surgir e formar-se e prosperar e adaptar-se às estações e definhar e cair em decadência. Às vezes, parecia-lhe estar prestes a descobrir um sistema coerente e harmónico que estava por trás das infinitas deformidades e desarmonias, mas nenhum modelo resistia à comparação com o jogo de xadrez. Pode ser que, em vez de insistir em evocar com o magro auxílio de peças de marfim visões de qualquer modo destinadas ao esquecimento, bastasse jogar uma partida segundo as regras e contemplar cada um dos estados sucessivos do tabuleiro como uma das inúmeras formas em que o sistema de formas se organiza e se destrói.
Kublai Khan já não precisava mandar Marco Polo em expedições distantes: detinha-o para jogar intermináveis partidas de xadrez. O conhecimento do império escondia-se no desenho traçado pelos angulosos saltos do cavalo, pelos espaços diagonais que se abrem nas incursões do bispo, pelo paço arrastado e prudente do rei e do humilde peão, pelas alternativas inexoráveis de cada partida.
O Grande Khan tentava identificar-se com o jogo: mas agora era o motivo do jogo que lhe escapava. O objetivo de cada partida é um ganho ou uma perda: mas do quê? Qual era a verdadeira aposta? No xeque-mate, sob os pés do rei derrubado pelas mãos do vencedor, resta um quadrado preto ou branco.
Com o propósito de desmembrar as suas conquistas para as reduzir à essência, Kublai atingira o extremo da operação: a conquista definitiva, diante da qual os multiformes tesouros do império não passavam de invólucros ilusórios, reduzia-se a um pedaço de madeira polida: o nada...
Não vê que demos xeque-mate um ao outro? -Eu não posso dizer à polícia que você é anarquista.Você não pode dizer aos anarquistas que eu sou polícia.(...) Em resumo,é um duelo intelectual dos dois a sós: a minha cabeça contra a sua.
Sou Alekhine, Campeão Mundial de Xadrez; não preciso de passaporte.
Para o jogo do xadrez, tal como para qualquer relação afetiva, é imprescindível um parceiro que sinta prazer em jogar, só pela emoção intelectual de dominar um rei feito de marfim, de madeira ou até de plástico...Pode haver tática,tem de existir dissimulação, podem ocorrer truques mentais e mentiras inteligentes,ardilosas. As mentiras demasiado óbvias ofendem a inteligência do parceiro e redundam em jogadas ineficazes. Até gosta que Me mintam, desde que a mentira seja subtil ,oculta numa qualquer forma de verdade, dificilmente descodificável...
Saber jogar xadrez só serve para uma única coisa ... jogar xadrez! O público precisa compreender que o xadrez é um desporto violento, é verdadeira tortura mental.
Há sempre algo de obsessivo num bom jogador de xadrez. Será que não há algo de obsessivo em todos os processos que exigem inteligência e implicam paixão? Nenhum bom jogador de xadrez o é sem uma paixão doentia pela perfeição daquela engenharia mental.
O xadrez é um jogo elitista, das classes econômicas e culturais superiores. Por isso mesmo é que seus personagens principais são o rei, a rainha, o bispo, o cavalo e a torre (símbolos de uma estrutura de poder muito particular). Os peões, que são a maioria, não passam de, para usar uma terminologia, digamos, mais engajada, massa de manobra. Do ponto de vista político, peões, assim como o povo, são as primeiras vítimas, são os que devem ser sacrificadas. E, claro, ninguém chora por ti, Argentina...
Não gosta de madonna, mas este tema provoca um qualquer impacto lacrimejante ...
Por trás (epa!) de um joguinho inocente como o xadrez se escondem muitas sujeiras. Por enquanto, encontramos a alienação, a deficiência mental, a misoginia e a homofobia. É pouco? É pouco! E sabem por que? Porque tem mais, muito mais. Tenham paciência que eu já conto mais umas coisinhas sobre o assunto... Há um protocolo mental e sociológico que relaciona a falta de agilidade física dos enxadristas com a hospedagem permanente em algum hospício. Quando alguém fala em xadrez está, por extensão, falando em pessoas excêntricas, cheias de tiques nervosos e capazes de fazer coisas que até Deus duvida – e tudo isso formatado em um estereótipo: homem, jovem, magro, feio, óculos fundo-de-garrafa, quilos de espinhas na cara e um quociente de inteligência acima de três dígitos. Ou seja, alguém que não podendo ter uma vida sexual mediana, se decide pelo onanismo incessante. Ou vai me dizer que essas frescuras de mover as peças, com a ponta dos dedos, um monte de delicadeza desproposital, como se o destino do mundo estivesse ao alcance da mão ou da mente, significam outra coisa além de masturbação? Por maiores que sejam os artifícios na construção das fantasias eróticas, quem é que quer enganar quem?
(Foi omitida referência ,por ser de uma deselegância em nada esclaredora, à exploração do verbo "comer", particularmente ofensiva da dignidade da rainha... As formas de antropofagia, típicas da linguagm sexual brejeira, desagradam-lhe profundamente....Só é digna de apreço a polissemia deste verbo no sermão de santo antónio aos peixes...)
Entendo que o sentimento dominante que o jogo de xadrez desperta, nas pessoas consideradas “normais”, é o tédio. E não poderia ser diferente, pois , como é de conhecimento geral, enquanto jogam, teias de aranha se formam na cabeça dos enxadristas. É isso: o xadrez é um jogo chato, onde não acontece nada, os jogadores ficam ali, durante horas, esperando Godot e olhando para aqueles pedaços de madeira ou plástico, enquanto fazem pose de meninos inteligentes. Uma hora, quando ninguém espera, um dos dois jogadores, ladinamente, move um peão, lá do outro lado do tabuleiro, e isso obriga o seu adversário a mergulhar em pensamentos profundos e, claro, sem o mínimo sentido. É isso: o xadrez é o jogo da inércia. Não acontece nada... quem é que consegue suportar a inquietude, o desconforto do silêncio? Só se admite, neste jogo, o tic-tac dos relógios. E isso é chato, muito chato. Além disso, não podemos esquecer que, na modernidade, o silêncio é associado com a morte. É preciso agilidade, quando se quer ser moderno, quando se quer mostrar vida, e o xadrez não oferece isso.
O imaginário contemporâneo está convicto de que jogar xadrez transforma instantaneamente o jogador em uma pessoa muito, muito, muito, muito inteligente. Particularmente, tenho minhas dúvidas.
Feitas essas considerações preliminares, vamos em frente, e através da literatura. Pois bem, iniciemos com um exemplo canônico: Fernando Pessoa. Nas Odes de Ricardo Reis, encontro um longo poema, de onde retiro dois fragmentos...
Ardiam casas, saqueadas eram As arcas e as paredes, Violadas, as mulheres eram postas Contra os muros caídos, Trespassadas de lanças, as crianças Eram sangue nas ruas... Mas onde estavam, perto da cidade, E longe do seu ruído, Os jogadores de xadrez jogavam O jogo de xadrez. (...) Quando o rei de marfim está em perigo Que importa a carne e o osso Das irmãs e das mães e das crianças? Quando a torre não cobre A retirada da rainha branca O saque pouco importa. E quando a mão confiada leva o xeque Ao rei adversário,Pouco pesa na alma que lá longe Estejam morrendo filhos.
Morrem filhos, mulheres são estupradas, o mundo desaba e os dois jogadores do poema de Fernando Pessoa continuam a jogar, como se nada estivesse acontecendo, exceto o lento e aborrecido deslizar das peças sobre o tabuleiro. Essa imagem, apesar de estereotipada, encontra confirmação nos, digamos, lances de linguagem de um dos dois poemas que Jorge Luis Borges denominou Ajedrez:
Tenue rey, sesgo alfil, encarnizada Reina, torre directa y peón ladino Sobre lo negro y blanco del camiño Buscam y libran su batalla armada. No saben que la mano señalada Del jugador gobierna su destino. No saben que un rigor adamantino Sujeta su albedrio y su jornada. También el jugador es prisionero (La sentencia es de Omar) de outro tablero De negras noches y blancos dias. Dios mueve el jugador y éste, la pieza. Que dios detrás de Dios la trama empieza De polvo y tiempo y sueño y agonia?
Entre os escritores que tiveram intimidade com o xadrez, Vladimir Nabokov, o autor de Lolita, é uma referência especial.Em vários de seus livros, o jogo está presente...Em A defesa, Nabokov conta a estória de Luzhin, um jogador que acredita ter criado um sistema estratégico que o impede de perder.Infelizmente, se o sistema é perfeito, o jogador não o é... Deus move o jogador e o jogador move as peças. Resta saber: existe um outro deus por trás de Deus e que seja capaz de corrigir os desatinos divinos?
George Steiner escreveu um ensaio clássico sobre o xadrez: Uma morte de reis. Neste texto, escrito em tom romântico, lembra que apenas três manifestações da genialidade humana ocorrem na infância: a música, a matemática e o xadrez.
Mirko Czentovic,personagem de sweig, é campeão de xadrez,mas incapaz de escrever uma frase sem erros ortográficos . Como dizia ,com raiva e desdém um dos seus colegas, “ a sua falta de cultura em todos os domínios era igualmente universal”. Adotado por um pároco de aldeia, que tentou alfabetizá-lo, Mirko olhava para as letras como se fossem coisas estranhas e, quando precisava de fazer uma simples soma, contava pelos dedos.Era ótimo a rachar lenha, a trabalhar no campo, a arrumar a cozinha e a ... jogar xadrez!
Na vida real, como dizem aquelas pessoas que conseguem separar os atores das personagens que são interpretadas nas novelas da televisão, muitos exemplos similares podem ser mencionados. É o caso de Robert James Fischer, um dos maiores jogadores de todos os tempos. Fischer praticamente não freqüentou a escola. Dizia que lá não havia o que aprender. Aparentemente ele tinha razão, tanto que triunfou na única coisa que fez na vida: jogar xadrez! O divertido disso tudo é que, lá pelos anos 60, Fischer fez questão de voltar a estudar. Sim senhor, ele voltou para a escola. Mas, claro, era uma escola especial. Antes que alguém fique pensando que o cara enlouqueceu de vez e ingressou em uma desses manicômios da vida, esclareço o mistério: Fischer queria aprender a língua russa. Para que? Simples, para ler revistas de xadrez! As russas eram as melhores do mundo, na época!
Ainda falando sobre os “ignorantes”, podemos incluir pessoas como o brasileiro Henrique da Costa Mecking, o Mequinho, cuja vida tem sido marcada pelo seu constante fracasso em se adaptar ao mundo que o cerca, e o norte-americano Samuel Rechevsky, que aos 9 anos de idade já realizava partidas simultâneas (modalidade em que um jogador joga contra vários adversários ao mesmo tempo). Nenhum dos dois fez outra coisa na vida além de jogar xadrez!
Em oposição, há aquelas exceções que confirmam a regra: o grande-mestre alemão Robert Hübner é doutor em arqueologia, com especialidade em egiptologia; o grande-mestre inglês John Nunn, além de professor da Universidade de Oxford, é doutor em matemática. Por último, uma doce surpresa: o ex-campeão mundial Mikhail Thal era mestre em literatura!! Sim senhor, com diploma na parede, alunos e tudo o mais que caracteriza esse interessante e instrutivo papel que desempenhamos no teatro da literatura. Claro, não preciso reiterar que todos esses jogadores possuíam Q.I. na faixa dos três dígitos...
O que pensar desta dissertação de raul arruda filho?
A partir do momento em que tentei jogar contra mim próprio...cada um dos meus dois eus, o meu eu-pretas e o meu-eu brancas tinham de competir entre si...Cada um dos meus dois eus triunfava quando o outro cometia um erro e irritava-se simultaneamente com a sua própria inabilidade... Então crescia em mim uma espécie de excitação maníaca durante o jogo... A alegria de jogar convertera-se em ânsia de jogar, a ânsia de jogar convertera-se em compulsão de jogar, uma mania, uma raiva frenética, que invadia não apenas as minhas horas de vigília, mas também lentamente o meu sono. Só conseguia pensar no xadrez, nos movimentos do jogo de xadrez, nos problemas do xadrez...Com que ansiedade regressava à cela para poder continuar o meu jogo...
Ouvi contar que outrora, quando a Pérsia Tinha não sei qual guerra,(...) E longe do seu ruído, Os jogadores de xadrez jogavam O jogo do xadrez.(...) Quando o rei de marfim está em perigo, Que importa a carne e o osso Das irmãs e das mães e das crianças?(...) Esteja o rei sem xeque, E o de marfim peão mais avançado Pronto a comprar a torre. Meus irmãos em amarmos Epicuro E o entendermos mais De acordo com nós-próprios que com ele, Aprendamos na história Dos calmos jogadores de xadrez Como passar a vida. Tudo o que é sério pouco nos importe, O grave pouco pese, O natural impulso dos instintos Que ceda ao inútil gozo (Sob a sombra tranquila do arvoredo) De jogar um bom jogo. O que levamos desta vida inútil Tanto vale se é A glória; a fama, o amor, a ciência, a vida, Como se fosse apenas A memória de um jogo bem jogado E uma partida ganha A um jogador melhor.(...) O jogo do xadrez Prende a alma toda, mas, perdido, pouco Pesa, pois não é nada. Ah! sob as sombras que sem querer nos amam, Com um púcaro de vinho Ao lado, e atentos só à inútil faina Do jogo do xadrez, Mesmo que o jogo seja apenas sonho E não haja parceiro...
Mesmo que o jogo seja apenas sonho E não haja parceiro... A matéria desta aula ela aprendeu... consegue imaginar qualquer jogo , mesmo com um parceiro que só exista na sua imaginação, o que é totalmente diferente de inexistente. São existências materialmente inexistentes , mas reais no espaço incolor do sonho...
A descrição do "combate",que caracteriza a partida de xadrez, é excelente.
Todo o conto se centra num tabuleiro de xadrez: defrontam-se um conceituado e experiente jogador, o ídolo local,e um desconhecido, um galã, com aparência de ser genial ,que se acredita vai derrotar o adversário. O jovem arrogante movimenta as peças sem sequer pensar nas jogadas, enrolando cigarros com pose teatral. Esta atitude desabrida chega a confundir o velho campeão. No fim do jogo, quanda se torna evidente que o suposto génio é uma fraude, um mero imbecil, o velho, saturado da mediocridade dos seus oponentes, humilhado por ganhar a tal adversário, considera que o único triunfo digno de si é assumir uma derrota definitiva. Perde o jogo e decide que nunca mais voltará a jogar xadrez. Foi o último combate...
A narração é feita a duas vozes, um peão e o rei.Iniciou-se um novo ano letivo, roy straitley, professor de latim, excêntrico e já veterano na escola, sente-se excluído e, ainda que de forma relutante,admite a hipótese de se reformar...
Ele escreve ficção de modo a expressar coisas que não seria capaz de expressar de outra forma e isso significa que ele tem a alma de escritor!
Audere,agere,auferre... Foi por isso que ela fez o que fez? Quase acredito que sim.Talhou um lugar para si no coração de St Osvald.No espaço de três meses tornou-se uma lenda. E agora? Vai voltar à invisibilidade - a uma vida insignificante,a um simples emprego,ou talvez uma família? É o que fazem os monstros quando os heróis envelhecem?
Assim longos o dia fraccionavam pelas casas do Xadrez dois jogadores. Era pela tarde, quando o Sol oblíquo e fulvo se opõe já ao ponto primeiro do seu arco. Altas heras p’lo pátio desenhavam de sombra e luz cavalos diminutos – e tão assim era, tão assim, tão, que logo as palavras saqueadas no salto morriam dos Cavalos. A caminho de Agosto abelhas raras doçuras buscavam nos peões – sílabas inseridas em minutos, outro era, porém, ali o néctar; ora, o Rei uma casa aventurando, ora o diagonal perfil dos Bispos, ora as Torres tomando posições, ora a branca Dama o véu do gesto de quem pela mão a deslocava ao longo do tabuleiro desdobrando… Assim tudo era – e ‘té a métrica no lapso das sombras e da luz um apóstrofo ao ritmo breve dava para que uma letra só não ferisse o medido gesto de quem longo ao longo das casas o finito no silêncio inseria do infinito. Ao longo do tabuleiro os jogadores assim pelas heras desenhadas, como quem subtil desdobra rédeas e o instante sopesa do equilíbrio, apóstrofos colocavam nos Cavalos – e a tarde, assim sustida, era e não era o galope disparado que habita o passo do dia demorado
..Já os Cavalos pelo pátio se quedaram em sua pedra última. As folhas suspenderam as verdes sombras pêlos ombros de tudo — e os cotovelos não são o início já do movimento da mão pelo Xadrez. «Sessenta e quatro casas» — conta um jogador. «Oito a raiz quadrada» — busca o outro ainda. Numa esquina algures Agosto acena ao voo das abelhas ora ido — e as uvas de Setembro sê-lo-ão em seu maduro tempo uma a uma. Entram os jogadores a porta intima no fundo do pátio tão parada — e eis passo a passo o corredor, as paredes, os quadros, os armários. Tudo agora está e se não vai, tudo ora se conta como hábito: eis a lâmina da barba, as [contas na cozinha, a botija do gás, a lâmpada sobre a mesa, os livros, os jornais, a mosca pela cal — e súbito o ruído do autoclismo. Ah, um copo de água! «Penélope, eis-nos chegados!» — e no ritmo dos corpos eis nos ficamos assim pêlos lençóis tão descobertos. Quase, e só quase, é a nossa condição, e quase como nós o foram outros, e sempre nós e outrem, outrem e nós, nos fomos contando pela vida os números impossíveis de contar. O silêncio depois, voo nenhum, a noite lá fora, a volta só da chave — ó loiça doméstica! nunca o bico do bule, nunca a asa da chávena, um dia, um dia só! um dia foram ave
O bom jogador sempre tem sorte. (Capablanca)
No Xadrez,a minha palavra é próxima à de Deus. (Kasparov)
No Xadrez, como na vida, o adversário mais perigoso é você mesmo. (Smislov)
A ameaça da derrota é mais terrível que a própria derrota.(Karpov)
O Xadrez é a Vida. (Fischer)
A genialidade consiste em saber transgredir as regras no momento adequado. (Teichmann)
Na vida, ao contrário do xadrez, o jogo continua após o xeque-mate. (Isaac Asimov)
Se queres destruir um homem, ensina-lhe a jogar Xadrez. (Wilde)
Deu por si a pensar: se fosse peça de jogo de xadrez, de que tipo seria? Marfim ou plástico? Branca ou preta? Rei ou rainha? Bispo ou torre? Cavalo ou peão? Há,também, que colocar a hipótese de ser o tabuleiro ou o próprio jogo. Quem sabe...
Jogar xadrez, numa galeria de arte, será bem menos depressivo...
Jogo
Eu, sabendo que te amo,
e como as coisas do amor são difíceis,
preparo em silêncio a mesa
do jogo, estendo as peças
sobre o tabuleiro, disponho os lugares
necessários para que tudo
comece: as cadeiras
uma em frente da outra, embora saiba
que as mãos não se podem tocar,
e que para além das dificuldades,
hesitações, recuos
ou avanços possíveis, só os olhos
transportam, talvez, uma hipótese
de entendimento. É então que chegas,
e como se um vento do norte
entrasse por uma janela aberta,
o jogo inteiro voa pelos ares,
o frio enche-te os olhos de lágrimas,
e empurras-me para dentro, onde
o fogo consome o que resta
do nosso quebra-cabeças.
Ouvi contar que ...
Simplesmente cativante, pelo seu caráter difuso, a abertura desta ode de ricardo reis: um tempo distante, muito vago e indefinido,uma guerra que não se sabe qual seja,dois jogadores anónimos,escassas informações concretas... Imagine-se declamada com uma entoação dolente, arrastada, de modo a fazer sobressair toda a passividade e indiferença destes jogadores...
Também ela já jogou xadrez, sem tabuleiro, sem torres, sem peões, sem bispos, sem cavalos - um jogo em que só participava o rei e a rainha. Ela era a rainha e o rei não se sentava à mesa, mas ela sentia-o - " O sonho é ver as formas invisíveis..." Vislumbrava-o na sua imaterialidade existente e,plácida e serena,jogava,jogava... conseguindo acreditar que era feliz.
O jogo findava, mas,como sabia que ele recomeçaria,foi alimentando um mosntro atroz. A ilusão, o desejo pertinaz de que tudo fosse verdade, uma forma de insciência perversamente procurada, o não querer perceber o que compreendia, transformou-se numa hidra desapiedada.
Cada vez que decide cortar a indomável necessidade de jogar, a hidra renasce, duplica-se, num eterno desejo que não controla...
Só resta encher dias de não querer, qual d.sebastião,sem alcácer quíbir..
Outros jogos ...
Elói pegou-lhes nas mãos, pediu-lhe que o não deixasse. As bocas encontraram-se-lhes, os corpos caíram por cima do musgo que sujou de verde o vestido de étamine. Que silêncio! Nada perturbaria aquela paz. Contudo, dentro da sua alma, Elói sentia um vácuo. O amor não existia. Deixou-se conduzir.
Toda ela respira naturalidade.(...) E nada horroriza tanto Elói como a Manuela destes momentos. É então que lhe apetece enfiar-se pela terra abaixo. Admitia-lhe tudo; só não pode suportar aqueles olhos que olham sem ver,aquela boca que se move como não pertencendo a ninguém, aquelas mãos caídas ao longo do corpo, contrafeitas, mas sem acanhamento, dando a impressão de sr exctamente aquele o seu lugar.(...)Ah!Há-de ser num desses momentos! Ele sabe que um dia explodirá! E o melhor meio,sim, não lhe digam que não,
o melhor meio seriaretalhar-lhe a cara, cortar-lha em estrias, de forma a que o sangue espirrasse, descongestionando-a daquela maldita expressão.
o pai é o outro. Mas quem é o outro? Sim. Gostava de saber. Com mil demónios, porque não serei eu o pai? (...) morrer por morrer, morra meu pai que é mais velho.
Carta de régio a joão gaspar simões:
Como ousarei falar-lhe da minha novela (que se vai alongando em romance) depois de falar de Dostoievski? Suponhamos que não falei: Aquilo vai marchando; e há momentos em que eu acredito nessas mesmas páginas que noutros momentos me parecem puras tentativas falhadas. Tem-se às vezes, sonhando, visões poderosas e obcecantes… Mas contadas, são banais, frouxas ou ininteligíveis para quem as ouve. À narração dum destes sonhos comparo eu a realização da minha novela...
Em Agosto de 1928, enquanto declarava estar a ler O Idiota, de Dostoievski, confessava de Vila do Conde ao seu amigo, em Coimbra, que tinha encontrado outro título (que talvez ficasse) para o seu livro: “Jogo da Cabra Cega. Que dizes? É um pouco extravagante, mas verdadeiro: O jogo da cabra-cega é um jogo em que a gente procura agarrar alguém, e reconhecê-lo, com os braços estendidos e os olhos vendados. (…) Tinha-lhe achado ainda ouro título: Alicerces e Andaimes, talvez de significação mais ampla. Qual preferes?“.
João Gaspar Simões comenta a resposta então enviada ao amigo: “Preferi, claro, Jogo da Cabra Cega, e Jogo da Cabra Cega ficaria o primeiro notável romance introspectivo da literatura portuguesa. Friso a circunstância, porque ela, contestada pelos factos, pode levar a pensar que o meu Elói ou romance duma cabeça, vindo a lume em 1930, e cujo primeiro excerto figuraria no número 27 (Julho de 1930) da Presença, é anterior ao romance de Régio, mas não. Para todos os efeitos é Régio o arauto da introspecção na novelística nacional. Bem certo que em Agosto de 1929 publicara a mesma Presença um Fragmento do romance inédito “Jogo da Cabra-Cega”. A obra, porém, só muito depois da minha, em Outubro de 1934, virá à luz em volume. Ora à volta dos trabalhos em que Régio e eu andávamos empenhados desde 1927, gera-se entre nós, entre Régio e o autor destas páginas, um grande desentendimento, que será o primeiro, mas não o último“.
No jogo da cabra cega procura -se agarrar alguém, e reconhecê-lo, com os braços estendidos e de os olhos vendados. Pedro Serra, alter-ego de Régio, percorre, às apalpadelas, o labirinto da sua mente imaginária, como se o mundo fosse um hospício de alienados!.
"Jogo da Cabra Cega", o primeiro notável romance introspectivo da literatura portuguesa. Afirma joão gaspar simões.
O gôsto de vaguear de noite, a horas mortas, era agora o mais querido dos meus prazeres melancólicos. Desde muito novo desenvolvo reais qualidades inventivas em tal género de prazeres: Mas qualidads que sobretudo se revelam no pormenor ou na maneira.(...) Noites havia , sim, em que simplesmente apreciava a noite: O aspecto de mascaradas , ou desmascaradas, que certas casas têm a certas horas...esboços de paisagens , ou transfigurações inesperadas que à luz do dia são banais.
Lasso e triste entre os lençóis, eu considerava a chateza da minha vida. Para me entreter, dispunha as coisas com um certo ar de humorismo fácil, como se as recompelasse para uma novela fútil... Mas êstes jogos de imaginação , a que, já o disse , me dou frquntemente,não conseguiam dissipar qualquer coisa que me obscurecia , permanecendo na minha memória.
Tenho mêdo de ser só, porque tenho mêdo de ser doido! Eu posso possuir uma lucidez excecional: Se não tiver companhia, se ninguém se me aproximar, se não fôr compreendido para além da razão..., das palavras..., a minha lucidez será excepcional por ser a dum doido! e serei fatalmente doido. Não posso perdoar a mim próprio esta fraqueza : Tenho mêdo.
Era-me impossível arrancar os olhos aos seus; e dos meus olhos devia transparecer a mesma admiração rancorosa. Com movimentos cheios de melancolia, graciosos, quási preciosos, êle agarrou-me então os pulsos abrindo-me um pouco os braços. O sorriso reapareceu-lhe na bôca. Todo o seu rosto exprimia indulgência e uma curiosidade apaixonada.
- És uma criança! - disse deixando cair as palavras uma a uma - Admiras-me, odeias-me, aborreces-me . És atraído por mim ou repeles-me..., e tudo isto quer dizer que estamos ligados um ao outro. Mas porque te comparas demais comigo? Eu quero compartilhar contigo os meus tesoiros.poupando-te ao cansaço de subir e descer escadas terríveis. Bem sei que os meus tesoiros são... perigosos. São talvez perigosos! Mas hás de chegar a poder com eles. Confia em mim! Abandona-te um pouco mais...Coragem!, mais um passo.
Compreendi então que ia ser de vez o seu boneco de corda. Ele apossava-se de mim, eu cedia...
Voltei-me, sobressaltado; e ria como se quisesse , rindo de mim, atenuar a impressão de ridículo de que alguém me escutara...Ora êsse alguém era ainda eu. E repentinamente , voltando-me, tive a sensação pavorosa dum desdobramento físico. O mais terrível é que, como nos sonhos , o outro era simultâneamente eu próprio e Jaime Franco.(...) O meu estado é anormal. Sei que raciocino com lucidez...Mais forte do que o exercício normal da razão é esta vaga impressão de terror nos momentos de angústia mal definida. Assentemos pois neste primeiro ponto incontestado: o meu estado é anormal. Assentemos já no segundo: Estou assim por causa dêle. Pronunciemos corajosamente o seu nome : Estou num estado anormal por causa de Jaime Franco.(...)
Debalde eu violentava-me a este jôgo estéril de palavras mentais. Desde o princípio que a imagem sub-consciente de Jaime Franco me entretinha num devaneio obscuro, sinuoso e sinistro.
Eis-me portanto não sabendo exteriorizar a minha piedade ( como não sei nem busco exteriorizar senão por detalhes mínimos qualquer sentimento profundo e complexo) e "voilá porquoi" , ...eis porque me julgam duro e sêco. Ei-los que me acusam, "les gens" de lhes não dar a piedade que me pedem ( e que tantas vezes também lhes peço!) ; a qual não é senão fraqueza interesseira, condescendência com fraquezas. E eis-me em virtude destas e doutras considerações plenamente convicto da minha superioridade!; mas pobre, triste, risível, pobre, triste e risível vítima de tal convicção, eis..." Voici"..." voilá" que ...etc, etc, etc, etc, !
E na sua atrapalhação, enquanto apertávamos a mão um do outro, o Sombra arrastou com a manga do casasco a chávena que tinha à borda da mesa. A chávena escacou-se no chão de mosaico.
FIM
O homem é , irremediavelmente, uma " besta sadia, cadáver adiado que procria."
Surgiu no palco, um dia um bailarino,
Surgiu soberbamente nu, - jogando
Nas mãos ageis de clown e de menino
Cem máscaras rodando, rodopiando...
Sobre um décor violento e sibilino
Cegamente bailou, tombou bailando,
Como se mais não fora seu destino
Que o seu bailado altivo e miserando.
No palco jaz agora um mutilado:
Jaz morto e nu, decapitado, olhado
Por milhões de olhos sem pudor nem vista.
...Que as máscaras sem fim que ele jogara
Não eram mais, talvez, que a própria cara
Dum desgraçado e humano ilusionista!
Compreender um ao outro
É um jogo complicado,
Pois quem engana não sabe
Se não estava enganado.
Nunca tive saudades, porque nunca tive de que as ter e fui sempre racional em meus sentimentos. Como nada fiz da minha vida, não tenho de que recordar-me com saudade; pude ter esperanças, porque o que não existe pode ser tudo; hoje nem tenho esperanças, porque não vejo razão porque o futuro seja diferente do passado. Há quem tenha saudades do passado, só por ele ter passado, e a quem até o mal que foi parece um bem, por isso mesmo que foi e com ele o que éramos quando nos sucedeu. Nunca pude dar tanta importância à mera abstracção do tempo, que houvesse de ter pena do meu passado só por não poder tornar a tê-lo, ou só por então ser mais jovem do que hoje sou. E esse modo de ter pena do passado, qualquer, ainda que nulo, o pode ter; e repudio o que seja de todos. Nunca tive saudades. Não há época da minha vida que eu não recorde com dissabor. Em todas fui o mesmo - o que perdeu o jogo ou desmereceu do pouco da vitória.
O jogo do xadrez Prende a alma toda, mas, perdido, pouco Pesa, pois não é nada.
Que mais que um ludo ou jogo é a extensa vida,
Em que nos distraímos de outra coisa —
Que coisa, não sabemos —;
Livres porque brincamos se jogamos,
Presos porque tem regras todo jogo;
Quem somos? quem seremos?
Feliz o a quem surge a consciência
Do jogo, mas não toda, e essa dele
Em o saber perdê-la.
Vendi-me de graça aos casuais do encontro.
Amei onde achei, um pouco por esquecimento.
Fui saltando de intervalo em intervalo
E assim cheguei a onde cheguei na vida.
Hoje, recordando o passado
Não encontro nele senão quem não Fui...
A criança inconsciente na casa que cessaria,
A criança maior errante na casa das tias já mortas,
O adolescente inconsciente ao cuidado do primo padre tratado por tio,
O adolescente maior enviado para o estrangeiro (mania do tutor novo).
O jovem inconsciente estudando na Escócia, estudando na Escócia...
O jovem inconsciente já homem cansado de estudar na Escócia.
O homem inconsciente tão diverso e tão estúpido de depois...
Não tendo nada de comum com o que foi,
Não tendo nada de igual com o que penso,
Não tendo nada de comum com o que poderia ter sido.
Eu...
Vendi-me de graça e deram-me feijões por troco
Os feijões dos jogos de mesa da minha infância varrida.
Veio agora de uma das cadeiras da cozinha, para ocupar o seu lugar na «Estante Velha» [a que foi paga pela Avó Formiga, por volta de 68 ou 69, a que vai na «terceira casa»]. Faz parte das aquisições obrigatórias deste Verão Gasparino, para tentar completar a Estante Davidiana.
As suas mais remotas imagens de Lisboa: casas cor-de-rosa, afogueadas pelo Sol; varandas confusas; nítidos degraus; luzes de eléctricos, ao crepúsculo, a fazerem dançar a névoa sobre carris humedecidos.
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