Não é neccessário vivermos ao lado de alguém para nos sentirmos ligados a esse alguém mais do que a qualquer outra pessoa...

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2017

Tempestades...Fúrias e levezas...



You're tearing me apart Crushing me inside You used to lift me up Now you get me down If I Was to walk away From you my love Could I laugh again ? If I Walk away from you And leave my love Could I laugh again ? Again, again..


Por mim, o meu estado de espírito é mau. Dezembro foi uma noite de tempestade para mim. Nem cabeça tenho tido para escrever a alguém, mesmo à minha família. Quebro esse encantamento de depressão para lhe escrever hoje, e isto para que não faltasse em responder à sua carta.
Espero adquirir durante este mês aquela suficiente dose de serenidade que me permita escrever-lhe o milhão de coisas que tenho para lhe expor e contar. Espero poder mandar-lhe os poucos versos que tenho feito. Que, apesar de tudo, e através de tudo, trabalho sempre, produzo sempre. Mesmo nos pântanos do meu espírito há lótus que florescem.
Sim, para a minha carta próxima devo ter apanhado do chão dos meus propósitos a energia suficiente para lhe contar coisas e para lhe copiar versos.(...)
sempre seu
Fernando Pessoa


( Armando Côrtes-Rodrigues (1891-1971)nasce nos Açores , onde recebe uma educação religiosa, tendo-se licenciado em Filologia Românica, no Curso Superior de Letras ... A sua amizade com Fernando Pessoa é mais significativa do que o seu talento como poeta. Na verdade, foi um interlocutor privilegiado de Pessoa, como o atesta a abundante correspondência trocada entre eles. É importante, além do diálogo literário, a partilha do mundo interior e a cumplicidade espiritual que tornam Côrtes-Rodrigues num espectador íntimo do "teatro-arte-vida" pessoano...
A estreia literária do jovem açoriano foi apadrinhada por Pessoa, que enviou dois sonetos para A Águia , escrevendo ao editor : «Mando uma página de verso (...) É outro poeta que principia, e creio útil auxiliá-los, especialmente quando, como este, entram em casa das Musas com o pé direito. Valho-me da sua autorização para lhe fazer esta pequena remessa, cuja qualidade, porém, me parece justificativa de remetê-la. (...) P.S. O nome do rapaz é Côrtes-Rodrigues. Isto para que ponha no sumário o nome com a devida acentuação, para que se não julgue que é Cortês.» )

Quando, como uma noite de tempestade a que o dia se segue, o cristianismo passou de sobre as almas, viu-se o estrago que, invisivelmente, havia causado; a ruína, que causara, só se viu quando ele passara já. Julgaram uns que era por sua falta que essa ruína viera; mas fora pela sua ida que a ruína se mostrara, não que se causara.(...) Na esfera baixa da política, como no íntimo recinto das almas — o mesmo mal.
Várias vezes, no decurso da minha vida opressa por circunstâncias, me tem sucedido, quando quero libertar-me de qualquer grupo delas, ver-me subitamente cercado por outras da mesma ordem, como se houvesse definidamente uma inimizade contra mim na teia incerta das coisas. Arranco do pescoço uma mão que me sufoca. Vejo que na mão, com que a essa arranquei, me veio preso um laço que me caiu no pescoço com o gesto de libertação. Afasto, com cuidado, o laço, e é com as próprias mãos que me quase estrangulo.


Três dias seguidos de calor sem calma, tempestade latente no mal-estar da quietude de tudo, vieram trazer, porque a tempestade se escoasse para outro ponto, um leve fresco morno e grato à superfície lúcida das coisas. Assim às vezes, neste decurso da vida, a alma, que sofreu porque a vida lhe pesou, sente subitamente um alívio, sem que se desse nela o que o explicasse.
Concebo que sejamos climas, sobre que pairam ameaças de tormenta, noutro ponto realizadas. A imensidade vazia das coisas, o grande esquecimento que há no céu e na terra...


Os terrores em luz, e som e abismo
Da tempestade e que, mais do que trémulo,
Mais que convulso no terror extremo,
Pensa já perto da loucura, quanto
Fugir mais do que em si, desaparecer,
Sumir-se, dessentir-se (...)
Mas a tempestade
Acabará, e há outro lugar onde
Não há a tempestade. Mas a este
Não lhe posso fugir nem conceber
Que ele se acabe ou que se abata ou seja
Outra coisa que não da alma minha
No que de universal e permanente Tem.


Para Marías o tempo cronológico, que os gregos chamavan chronos, não representa um depósito de materiais recicláveis, não serve para re-escrever ou re-inventar o passado de forma lúdica, mas para refletir sobre a memória como meio ou como instrumento fundamental para recuperar o tempo que foge e , ao mesmo tempo, atingir, embora de forma incerta e problemática, uma perceção da própia identidade.


Num artigo em que Marías explica, ante litteram, o possível significado do que será o título da sua futura " falsa novela", depois de citar um verso de Shakespeare, “ the dark backward and abyss of time?” , como a sua fonte, explica que o estilo consiste, frequentemente, na habilidade para exprimir sintaticamente conceitos abstratos, sem recorrer a uma linguagem lógica. Shakespeare tinha conseguido traduzir, através de uma forma poética, uma maneira de encarar o tempo, típica do nosso quotidiano. Ao consideramos o presente como o eixo central, costumamos encarar o passado como aquilo que deixamos atrás de nós, como as nossas costas, e o futuro como aquilo que nos espera, o que se encontra à frente, na linha do horizonte.
Não é nada provável que Shakespeare tenha sabido, através de estudos, que a configuração da imagem do tempo nas línguas indoeuropeias - e o seu reflexo na conjugação verbal - está , em grande parte, condicionada pela analogia com um objeto, num meio ambivalente e pela assimilação psicológica, nascida da simetria rosto - costas, do futuro como visão e o passado como cegueira. Marías confessa não
ter entendido, de forma cabal, o que queria dizer o seu amigo e mestre literário, mas ficou fascinado por esta reflexão. O verso citado por Benet aparece, na realidade, na cena 2 do ato I da Tempestade; Próspero, tendo naufragado com a sua filha Miranda, na ilha de Caliban, fica surpreendido quando ela, apenas com três anos, recorda , com muitos pormenores, a sua vida passada. But how is it That this lives in thy mind? What seest thou else In the dark backward and abyss of time?




A sensação de que os livros me procuram nunca deixou de me acompanhar, e tudo o que passei na minha vida, desde as páginas fictícias de Todas as Almas, acabou por ter também materialização nessa forma, em forma de livro, ou de documento, ou de fotografia, ou de carta, ou de um título. São tantas as coisas que saltaram da novela para a minha vida que já não sei de quantas páginas necessitarei para as contar, não bastará este volume nem talvez tão pouco um segundp, porque já decorreram oito anos desde que publiquei essa novela e tudo continua a invadir os meus dias ou a deslizar neles, do mesmo modo que nas minhas noites...

No es sólo que todo pueda volver a pasar, es que no sé si en realidad nada ha pasado ni se ha perdido, a veces tengo esa sensación de que todos los ayeres laten bajo tierra como si se resistieran a desaparecer del todo, el enorme cúmulo de lo conocido y lo desconocido, lo contado y lo silenciado, lo registrado y lo que nunca se supo o no tuvo testigos o fue ocultado, una masa ingente de palabras y acontecimientos, pasiones y crímenes e injusticias, de temores y risas y aspiraciones y ardores, y sobre todo de pensamientos...

O mais que poderia contar são os factos, e os factos em si não são nada, a língua não pode reproduzi - los tal como não podem as repetições reproduzir com o seu filo? o tempo passado ou perdido nem ressuscitar o morto que já passou e se perdeu nesse tempo. Quem sabe se , neste momento, o que fez na realidade e o que fez de fictício.

Todavia ficam por contar coisas recentes e vindouras, e eu necessito de tempo... Agora que vou parar e não vou contar mais durante algum tempo, recordo-me do que disse há muito tempo, ao falar do narrador e do autor que têm aqui o mesmo nome: já não sei se somos um ou se somos dois, pelo menos enquanto escrevo. Agora sei que desses dois possíveis , um teria que ser fictício.



I'm so tired, I haven't slept a wink I'm so tired, my mind is on the blink I wonder should I get up and fix myself a drink No, no, no I'm so tired I don't know what to do I'm so tired my mind is set on you I wonder should I call you but I know what you'd do
I can't stop my brain You know it's three weeks, I'm going insane You know I'd give you everything I've got for a little peace of mind..


Tudo tem uma primeira vez (Ah,ah...note-se a profundidade deste pensamento, digna de um livro do doutpr cavaco silva) e ei-me dominada por um sentimento novo, tão inusitado que nem ssei se o estarei a identificar. Será raiva, ódio, fúria, ou o desejo intenso de, com um caprichoso gesto, fazer explodir o mundo? Refletindo melhor, surgiu-me, vinda de um passado bem remoto, a memória de um estado de espírito similar...

Mais vale ser um cão raivoso , dentes à mostra estar sempre pronto a morder e a dar resposta ,a toda e qualquer podridão escondida ,dentro da crosta ,dentro da crosta das belas ideias ,gato escondido de rabo de fora ,dentro da crosta das belas ideias...

Visto que talvez nem tudo seja falso, que nada, ó meu amor, nos cure do prazer quase-espasmo de mentir. Requinte último! Perversão máxima! A mentira absurda tem todo o encanto do perverso com o último e maior encanto de ser inocente. A perversão de propósito inocente — quem excederá, ó o requinte máximo disto? A perversão que nem aspira a dar-nos gozo, que nem tem a fúria de nos causar dor, que cai para o chão entre o prazer e a dor, inútil e absurda como um brinquedo mal feito com que um adulto quisesse divertir-se! E quando a mentira começar a dar-nos prazer, falemos a verdade para lhe mentirmos. E quando nos causar angústia, paremos, para que o sofrimento nos não signifique nem perversamente prazer...

Alecto , Megaira, Tisífone...

A raiva não é algo irracional e incontrolável. A raiva surge por sermos otimistas, por criarmos demasiadas expectativas. Assim,a única maneira de evitar ataques de fúria é sermos mais pessimistas, ajustando a nossa visão do mundo aos contratempos.Se aceitarmos que não podemos fazer nada relativamente às nossas frustações, não nos descontrolaremos quando elas acontecem.O principal motivo da nossa raiva é imaginarmos que as coisas vão acontecer segundo os nossos desejos, o que não é verdade. Portanto, como não podemos modificar os acontecimentos,temos de alterar a nossa atitude em relação a eles. O homem é dotado de razão,tem capacidade de perceber o que pode e o que não pode mudar. Essa capacidade confere-lhe a liberdade que o distingue como ser humano.



Uma vontade física de comer o Universo Toma às vezes o lugar do meu pensamento...Uma fúria desmedida A conquistar a pose como que observadora Dos céus e das estrelas Persegue-me como um remorso de não ter cometido um crime.



Que bom poder-me revoltar num comício dentro de minha alma!
Mas até nem parvo sou!
Nem tenho a defesa de poder ter opiniões sociais.
Não tenho, mesmo, defesa nenhuma: sou lúcido.
Não me queiram converter a convicção: sou lúcido!
Já disse: sou lúcido.
Nada de estéticas com coração: sou lúcido.
Merda! Sou lúcido.


Eu, em cujo coração a angústia dos outros é raiva, E a vasta humilhação de existir um amor taciturno
Eu, o lírico que faz frases porque não pode fazer sorte,Eu, o fantasma do meu desejo redentor, névoa fria
Eu não sei se devo fazer poemas, escrever palavras, porque a alma —A alma inúmera dos outros sofre sempre fora de mim.Meus versos são a minha impotência.O que não consigo, escrevo-o;
E os ritmos diversos que faço aliviam a minha cobardia.A costureira estúpida violada por sedução,
O marçano rato preso sempre pelo rabo,O comerciante próspero escravo da sua prosperidade
Não distingo, não louvo, não São todos bichos humanos, estupidamente sofrentes.
Ao sentir isto tudo, ao pensar isto tudo, ao raivar isto tudo,Quebro o meu coração fatidicamente como um espelho,E toda a injustiça do mundo é um mundo dentro de mim.Meu coração esquife, meu coração, meu coração cadafalso Todos os crimes se deram e se pagaram dentro de mim.Lacrimejância inútil, pieguice humana dos nervos,Bebedeira da servilidade altruísta, Voz com papelotes chorando no deserto de um quarto andar esquerdo...


Do terraço deste café olho tremulamente para a vida. Pouco vejo dela — a espalhada — nesta sua concentração neste largo nítido e meu. Um marasmo como um começo de bebedeira, elucida-me a alma de coisas. Decorre fora de mim nos passos dos que passam e na fúria regulada de movimentos a vida evidente e unânime.Nesta hora os sentidos estagnaram-me e tudo me parece outra coisa — as minhas sensações um erro confuso e lúcido, abro asas mas não me movo, como um condor suposto. Homem de ideais que sou, quem sabe se a minha maior aspiração não é realmente não passar de ocupar este lugar a esta mesa deste café? Tudo é vão, como mexer em cinzas, vago como o momento em que ainda não é antemanhã.

Fúria nas trevas o vento
Num grande som de alongar,
Não há no meu pensamento
Senão não poder parar.

Parece que a alma tem
Treva onde sopre a crescer
Uma loucura que vem
De querer compreender.

Raiva nas trevas o vento
Sem se poder libertar.
Estou preso ao meu pensamento
Como o vento preso ao ar.


O vento pode estar relacionado com diversos estados, consoante sopra com mais ou menos intensidade: entre uma brisa e um vendaval, não existe analogia possível... medo+impotência+silêncio+repressão+insatisfação+ciúme+vergonha+insegurança+ fúria+ assanhamento + cólera + raiva + desesperação+ exasperação+ excitação + furor+ indignação + ira + irritação + paixão + sanha + destempero + despropósito + disparate + extravagância irritação + animosidade + crueldade + protesto + desespero + arrebatamento + frenesi + delírio + impetuosidade + ardor + veemência + violência + insânia + ódio + agastamento + despeito + impaciência + aceleração + apressuramento + ímpeto + irreflexão +sofreguidão + danação + rancor = vento

Poder-se-ia pensar que ela,tal como o vento, sopraria furiosamente. Nunca: a sua fúria é serena e, por isso, trágica. As personagens enfurecidas, racionalmente obliteradas, de todas as tragédias, planeiam tudo lúcida e friamente, exercendo a sua vingança sobre si próprias. Um grego, dominado pelas Erínias, nunca se torna em algo similar a um reles psicopata americano que, de olhar esgazeado e imbecil, desata aos tiros, sem critério, porque na sua cegueira interior, não vê nada. Dá tiros, metralha, viola ou faz explodir engenhos, numa ânsia de se vingar do mundo. O herói helénico, sereno e esfíngico, aniquila-se,direta ou indiretamente... óóóó — óóóóóóóóó — óóóóóóóóóóóóóóó (O vento lá fora)...

Nas minhas veias, por onde corre, numa lava de asco, a fúria do horror da vida!

Canta, ó deusa, a cólera de Aquiles, o Pelida
(mortífera!, que tantas dores trouxe aos Aqueus
e tantas almas valentes de heróis lançou no Hades,
ficando seus corpos como presa para cães e aves
de rapina, enquanto se cumpria a vontade de Zeus),
desde o momento em que primeiro se desentenderam
o Atrida, soberano dos homens, e o divino Aquiles.


...e0pei\ fi/lov w1leq’ e9tai=rov,
Pa/troklov, to\n e0gw\ peri\ pa/ntwn ti=on e9tai/rwn,
i]son e0mh=| kefalh=|...


O herói homérico possui uma complexidade prazenteira, uma aleatoriedade de caráter que perturba o leitor com infindáveis interpretações. Amuado, egoísta, fiel no amor, corajoso, sem compaixão com as vítimas, mas capaz de magnanimidade. A psicologia de Aquiles é desconcertante, tem uma personalidade caleidoscópica. Até a sua ira essencial é multifacetada, impossível de se definir com exatidão: ‘Cólera’, ‘raiva’ e até mesmo ‘mania’ foram palavras escolhidas para definir a paixão que desencadeia a narrativa..."Canta, ó deusa, a cólera de Aquiles..."

Desencadeio-me como uma trovoada
Em pulos da alma a ti,
Com bandas militares à frente, a saudar-te...
Com uma fúria de berros e saltos
Estardalhaço a gritar-te
E o universo anda à roda de nós como um carrocel com música dentro dos nossos crânios,
Eu, louco de sibilar ébrio de máquinas,
Tu célebre, tu temerário, tu o Walt,
Tu a [sensualidade ]
Eu a sensualidade com [...]
Tu a inteligência (...)




Minha fúria, minha paz, meu bem Se não fiz o que devia foi talvez porque temia Não te saber serenar A luta que por dentro fazia alimento Do mundo a gritar Não me ouviste chamar Do alto deste monte Tão longe da mentira Mas perto está o dia A água desta fonte Só nos pode lavar A sombra não devia Mas alto é o nosso monte Bem onde o tempo brilha Não me ouviste chamar Mas quando à noite vens eu sei Que és minha, minha, minha...

Fecho, cansado, as portas das minhas janelas, excluo o mundo e um momento tenho a liberdade. Amanhã voltarei a ser escravo; porém agora, só, sem necessidade de ninguém, receoso apenas que alguma voz ou presença venha interromper-me, tenho a minha pequena liberdade, os meus momentos de excelsis. Na cadeira, aonde me recosto, esqueço a vida que me oprime. Não me dói senão ter-me doído

Leve, breve, suave,
Um canto de ave
Sobe no ar com que principia
O dia.


Há uns anos consultei um psicólogo que me disse que a minha curiosidade acerca de o Outro era um dos traços mais positivos do meu Eu. O psicólogo devia gostar de espeleologia porque nunca o meu Eu teve tantos abismos interiores. As minhas obsessões, traumas, medos, manias, não passavam de abismos que o psicólogo espreitava de lanterna em riste tentando romper as sombras densas que aprisionavam o meu Eu. Mas não temos todos abismos, perguntei. Que sim. Só que além dos abismos eu tinha a vertigem dos abismos e era a vertigem que me fazia mergulhar no negro. Uma pulsão destrutiva que me levaria a ficar fechada em mim, não fosse a enorme curiosidade que tenho pelo Outro, não fosse a enorme vontade de chegar ao Outro. Um Outro exterior. Não os Outros que também existiam escondidos nos meus abismos interiores. O psicólogo garantia que esses outros Outros só me puxavam ainda mais para dentro de mim. Por vezes enredavamo-nos de tal maneira no meu Eu e nos Outros que era difícil percebermos do que falávamos. (...)Consultei um novo psicólogo que gastou a primeira consulta a tentar fazer-me esquecer tudo o que o anterior me tinha dito, especialmente a treta dos abismos interiores e das vertigens. Não iríamos lá com alpinismos, a psicologia era outra coisa. Aparentemente uma coisa menos musculada mas mais agressiva. A minha curiosidade pelo Outro, o meu desejo de chegar ao Outro, não era afinal um dos traços mais positivos da minha personalidade mas antes um dos maiores responsáveis pelos meus ataques de ansiedade. Se eu não tinha a nossa espécie em grande conta, a minha curiosidade, a minha procura, refletia apenas uma vontade permanente de me desiludir, de me frustrar. Em suma, de sofrer. Passei a ser uma masoquista. Uma junkie agarrada a uma esperança vã, sempre à procura de uma dose de dor. Eu tentava resistir, defendia-me, em tantos biliões de pessoas tem de haver algumas que me façam feliz. Que não. Que todos existimos sozinhos e que eu tinha de aprender a ser feliz sozinha e quanto mais cedo melhor. O novo psicólogo tentava convencer-me que eu estava a ser vítima da minha mente doente, que a esperança não era mais do que uma vil armadilha da minha mente doente. Acabei por desistir das consultas ... Acho que me fartei das armadilhas e das vilezas da minha mente. Ou melhor, de ter notícias delas. Ainda pensei ir a um terceiro psicólogo mas acabei por nunca o fazer. Passei a controlar os ataques de ansiedade com químicos que a médica de família me receita e tem corrido bem.

A escrita é um lugar de conforto. Viver faz sofrer, mas escrever não. Escrever não acrescenta. Retira-me da realidade. Por mais que eu esteja a inventar coisas terríveis, estou num mundo onde me sinto confortável.

Apenas o presente dele no dedo dela.O redondo denso dos momentos eternos.(...)O presente dele no dedo dela.Sobre a cama, a mala. Não deveríamos chamar passados aos presentes?

Ele ao volante,ela ao lado,a tarde a escoar-se. Ele e ela não têm pressa mas o ritmo dos outros carros impõe-se-lhes.(...) Ela diz: esta strada é feia. Ele olha em volta: sim, esta estrada é feia.(...) Ele e ela entreolham-se(...)Ele manobra para fora da estrada.Se se perderem não faz mal.Descobrirão um caminho.Escolheram ter tempo. Não têm pressa.

Ele e ela passaram a noite na única residencial que a vila tem.Saem agora para a manhã que se faz cheia de sol frio.Ele tem o braço por cima dos ombros dela. Sorriem.Estão prontos para seguir viagem.A mulher do dono da residencial está outra vez na varanda(...) Como estava ontem. Este ontem é igual há muito tempo.

Escuto, e passou...


Não há aqui um único livro que não tenha lido. A minha biblioteca. Tive todas as vidas que li. Milhares de vidas. Pensarás que deliro. As minhas ideias já estão um pouco confundidas, mas não a este respeito. As vidas que li não foram menos minhas. Não há grande diferença entre o que se vive lendo e o que se vive vivendo. Milhares de vidas à nossa espera no silêncio dos livros.

Estes livros, mais do que testemunhas, são meus cúmplices. Sabem tudo de mim. E eu sei tão pouco deles. Ainda qie lhes conheça segredos escondidos e erros cândidos. Ainda que lhes saiba da ambição e lhes confirme o fracasso. Sei pouco deles. Os livros conhecem-nos, mas não é da sua natureza deixarem-se conhecer completamente.

Identificar os acasos que nos trouxeram ao que somos só nos torna mais frágeis. Fazemo-lo na esperança de percebermos como nos aconteceu tornarmo-nos o que somos. Em vão.

Parece que foi só porque escutei
Que parou.



Comecei a pesquisar um pouco mais e foi nesse contexto que telefonei para a Kit, muito a medo. "Hi, Kit, remember me?". Kit é a modelo norte-americana com quem o avô se casou em 1971 e aceitou receber a neta do homem com quem esteve durante 26 anos, em Madrid, onde ainda vive.

Estou farto de ser considerado um estupendo.

Na tua alegria, na tua tranquilidade e na tua felicidade, mesmo que para isso tenha de sofrer. Nem imaginas quanto te quero!Continuo a pensar em ti como se fizesses parte de mim. Adoro-te!.

Uma love story... real.




Como tenho gasto o meu tempo? Eu desejo o que os outros desejam, com certeza, mas eles satisfazem-se e eu não. A vida repele-me. Tudo me constrange e me desassossega, quase me aterra. A minha vontade é de perguntar sempre, mesmo sem saber a quem: É assim que se vive, a isto chama-se viver? Que tristes horas tem um dia! Tão aflitivas e desacompanhadas!
O inferno vive-se, conhece-se... e não é a rispidez das lutas que o dá, nem a violência dos sentimentos. É este viver à parte, este viver sufocado. Já houve quem me dissesse que eu sou simples, estupidamente simples, naturalmente, e que o capricho é o sal da vida... Deve ser isso. Decepciono, desencanto. Das minhas portas e do meu coração para dentro não há senão humidade. Mas eu não sei bem porque é que tudo o que me cerca me parece vazio ou irreal. Vivo disparatadamente, à toa, quase sem hábitos nem propósitos...



Nunca, nunca, em nada,
Raie a madrugada,
Ou esplenda o dia, ou doire no declive...


Eu usava a música como banda sonora, canções feitas à medida de cada estado de alma.
Quando as coisas deixam de durar, alteram-se. O simples facto de deixarem de ser altera-se, por mais que procuremos fazê-las estancar.
Sempre fui nostálgica, sobretudo do que não chegou a acontecer. Dos deslumbramentos a haver.
Enganam e consolam, as palavras. Como a seda.
Morri tantas vezes antes de morrer – morri sempre que o amor parava, e o amor estava sempre a parar dentro de mim. Parava e crescia, comia tudo o que eu sabia.
Consolamo-nos na beleza imediata das coincidências, escapa-nos a beleza catastrófica dos acasos.
Ainda terei tempo para te esquecer? O teu riso em carrossel, é esquecível?
Demasiado tarde. São estas as palavras mais tristes de qualquer língua.
Tão efémeras, as cumplicidades radiosas.
Terei saudades de ti, ou da inocência que tinhas quando te conheci?


Tive
Prazer a durar
Mais do que o nada, a perda, antes de eu o ir
Gozar
.


Vim aqui para morrer. Cheguei hoje. A Figueira da Foz surgiu-me sem rasto de fim de mar, abismo de antigos pescadores e outras almas de fortuna e fé. É um décor, tinhas dito a rir, um dia num pequeno restaurante, a depenicar peixinhos da horta, os dentes brancos numa aparição quase obscena. Pareceu -me, então. Nada do que aqui se passa é real. A terra que não existe. Os tempos dos espanhóis em férias, os que fugiam da guerra, as famílias importantes, os passeios a Tavarede e todas as outras. Nada disso existe realmente. Percorrer a marginal no deslumbramento marítimo até Buarcos. O que é que tudo isto interessa? E quando é que deixou de interessar? Saberás dizer com exactidão, por seres esse tipo de criatura, a pessoa das datas, aniversários, horas certas para tudo. Timetable. Most important.

Apesar de gostar dela, sempre a considerei como um ser inalcançável. Não era uma mãe como as outras. Fumava muito e bebia. Coisas que não se diziam, longe de qualquer possibilidade de comentário. Eu apenas via. Ela andava com passos pequenos, o cigarro preso nos lábios, o copo na mão direita, quase num desleixo. Ser observador é como ser uma espécie de pássaro, percebes? Estás e não estás nos sítios, recolhes imagens e sabes sempre o regresso, identificar o que faz do espaço ou da pessoa aquilo que é na sua essência.
Divago, desculpa. Outra coisa peculiar na tua mãe era a persistência nos óculos escuros e o vestir -se quase em exclusivo em tons de branco, creme, champagne. Mais tarde, vi-te imitar esses gestos antigos... Havia muito da tua mãe em ti. As olheiras ao fim do dia. Certas expressões. A voz.



Leve, breve, suave,
Um canto de ave
Sobe no ar com que principia
O dia.

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