"Mais uma vez, é a própria ideia de literatura que está no centro de um livro de Gonçalo M. Tavares"
Bloom - Nome universal, aplicável a qualquer coisa ou acontecimento. Cadeira- Bloom, livro - Bloom, morte-Bloom, namoro - Bloom. E etc.- Bloom.
A literatura não é uma cópia dos objectos do mundo: a casa não é casa; a mesa não é mesa. A literatura tem objectos próprios, completamente distintos dos que existem na vida dos vivos.
Não confundas escritor com arrumador de mobílias.
As palavras não devem fazer turismo. (...) Uma frase não pode ser uma fotografia. Antes de as máquinas fotográficas existirem, uma frase poderia fazer o que elas fazem, mas agora se o fizer faz pior: para quê fazê-lo? (...) tudo o que pode ser fotografado não deve entrar na linguagem
Cada frase é uma oportunidade para iniciar um mundo. A literatura - Bloom aproveita essa oportunidade.
O resto de um texto, o que fica depois de o lermos, nunca poderá ser zero.(...) Se chegarmos a um resultado, não chegamos à literatura. Se alcançarmos a literatura, não alcançamos um resultado.
Cada frase tem quinze segundos de existência para o leitor.Nesses quinze segundos terá de provar que merece existir nos próximos quinze séculos.
Bloom é apelido. Não apenas de pessoas, também do mundo.
Maria Bloom tinha amigos, mas os amigos não a tinham a ela.
Maria até certa idade pensava que andar apaixonada era uma actividade profissional: exactamente como ensinar ou estocar paredes. A diferença entre as paixões e as profissões é que nas primeiras não se cumprem horários.
Maria queria ser escritora, mas só sabia viver, não sabia escrever.
Bloom olhou para Maria Bloom. Os olhos também têm roupa íntima: e despem-se.
Maria Bloom tinha aulas de paradoxos , duas vezes por semana, das seis à cinco e meia da tarde. Nunca chegava a tempo porque cHegava sempre adiantada.
Maria Bloom estava apaixonada e, como na inclinação de um caminho, os seus seios e a sua boca inclinavam-se para o desejo. Certas coisas invisíveis vêem-se.Em Paris Maria Bloom falava delicadamente, noutras cidades dizia rápido o que tinha a dizer e calava-se; era agressiva.Os sítios influenciam o discurso.Toda a fechadura é um sinal de fracasso da humanidade.Maria Bloom por vezes era literária nas extremidades eróticas, o que aborrecia os homens. Preferiam que ela fosse erótica nas frases, erótica no alfabeto. No entanto existiam ainda outros dias.Não se prende o amor com pregos, ao coração. Daí a fragilidade.
Mas também há homens muito atentos à Língua.
Mais insensível à dor dos outros que a um adjectivo mal colocado.
Para mim , os pronomes pessoais são mais importantes que a tua pessoa, desculpa dizer-te isto.
Maria Bloom olhava para um poema como se este fosse um auxiliar administrativo convocado para fazer funcionar a língua ou, em oposição, a angústia.
Uma história de quase amor exemplar
Não há gestos femininos e gestos masculinos, pelo menos feitos com as mãos.Já que as mãos são partes do corpo comuns ao homem e à mulher. Quando muito existirão gestos femininos feitos com os seios, a vagina ou as ancas largas, e existirão gestos masculinos feitos com o órgão genital masculino. Abrir a porta e deixar,delicadamente, a outra pessoa entrar primeiro, não é um gesto masculino porque não depende directamente de nenhum órgão anatomicamente estrangeiro à mulher. Eis uma teoria.
Bloom disse: - Tenho vontade de te fazer um gesto absolutamente masculino com a parte do meu corpo que é absolutamente masculina.
Maria Bloom disse que não, estava a ler um livro de filosofia. Estava a acabar. Faltavam três páginas.
- Deixa -me acabar estas três páginas. A seguir, fornicamos.
Bloom concordou , ficou à espera.
O problema que se colocou aqui é que o livro que Maria estava a ler exigia idas constantes ao dicionário. Para além disso. Maria Bloom ficava, no final de cada frase, a reflectir longamente sobre o que acabara de ler.
Tinha então passado já uma hora e, das três páginas, Maria Bloom só havia lido uma.
Bloom começava a ficar irritado.
Começava, pois, a perder o desejo e a ganhar irritação( Sendo que a irritação expulsa fluídos distintos).
Maria, disse Bloom, acabas de ler esse livro ou não?
( não sabem fazer livros mais simples, murmurava, irritado, Bloom).
Maria, sem tirar os olhos do dicionário que novamente consultava, disse:
Podes ir despindo-te.
Bloom assim fez. Despiu-se
Quando finalmente Maria Bloom terminou de ler o seu livro de filosofia, Bloom tinha perdido o desejo e ganho uma constipação.Espirrava abundantemente.
- Esse maldito livro!
Nenhum livro causa constipações, disse Maria.
O desejo não se perde como se perde um objecto sólido.Maria Bloom não procurou o desejo perdido de Bloom pela casa toda. Foi logo procurar no próprio corpo de Bloom. Há, assim, claramente, uma vantagem, quando se perde o desejo: ele não pode estar em sítios exóticos, a não ser que o próprio corpo do animal tenha sítios exóticos . E tem.
O teu corpo tem mais sítios exóticos que o hemisfério sul do planeta, disse Maria a Bloom.
Amor
É sonhar perfumes e maravilhas...
É ver-te surgir,envolto em cetim,
estátua burilada pelo meu cinzel,
alma esculpida pela minha palavra.
Amor
É ver-te surgir como parte de mim.
Possível razão do estilo fragmentário de GMT: ele não pretende construir enredos, mas sim expor ideias, de modo a não obrigar o leitor a ficar amarrado a uma história, a uma intriga factual... Constrói textos que possam ser lidos como ele gosta de o fazer: vários livros ao mesmo tempo, sem método predefinido, sem qualquer obrigação de começar na página um e acabar na última.( Neste momento, segundo afirmou, está a ler quatro romances de Agustina, em simultâneo: abre ao acaso, para (+) e , se encontra ideias que lhe agradam, permanece, indiferente à história ou ao destino das personagens...)
Julgo que as narrativas com uma estrutura convencional, introdução, desenvolvimento e conclusão o entediam ou, pelo menos, não o estimulam. A "res" , o mundo objetivo e factual, não deve ser descrito ou narrado, mas sim pensado. O fluir do pensamento é incompatível com um discurso pressionado por tempo, espaço e personagens, e prisioneiro da coerência e coesão textual. A obrigação do escritor é escrever, reproduzindo, do modo mais fiel possível, o que é verdadeiramente relevante: o seu pensamento, a sua mundividência única e irrepetível.
Mesmo em obras com um esquema narrativo mais tradicional, como O Reino, a progressão discursiva é constituída por pedaços, em que cada peça pode ter vários lugares diferentes, uma espécie de puzle in fieri, em que cada leitor pode criar os seus sentidos, de acordo com o seu sentir.
Será aliciante começar a ler, por exemplo, o Aprender a rezar na era da técnica pelo fim, saltar para o meio, depois ir para o início, regressar ao meio e terminar com a sequência em que Lenz e a mulher atuam sexualmente perante o olhar do vagabundo...
A raridade de GMT está na capacidade - em tempos de formatação- de escrever o que quer, como quer e porque ele assim o quer.( Junho de 2015)
(+) Realmente, retirar o acento no verbo "parar" é uma acordice inexplicável...
"Uma linguagem literária batizada à sombra de um nome tutelar é um jogo coerente para Gonçalo M. Tavares, autor de uma galáxia em perpétua expansão, a que se juntam estas Breves Notas Sobre Literatura-Bloom (Relógio d’Água). Um exercício sobre um fazer da literatura, arrumado em entradas em que se fala da “adiposidade” desnecessária das frases, da “necessidade de um nível de crueldade médio numa frase literária”, de “toda a literatura-Bloom” ser “feita contra os dicionários”, ou do “Sacrilégio”, isto é, “a evidência de frases sucessivas. A beleza onde não existe a mancha. A mancha onde não existe a breve beleza. A frase que pareça terminar”.
“A ética Bloom implica tanto o escritor como o leitor” (...) “uma declaração de amor radical”...
Borja Bagunyà é um escritor, considerado percursor de uma geração emergente da literatura catalã . Embora já tenha publicado três livros e obtido numerosos prémios literários, ainda é relativamente desconhecido...
A literatura, que é a arte casada com o pensamento, e a realização sem a mácula da realidade, parece-me ser o fim para que deveria tender todo o esforço humano, se fosse verdadeiramente humano, e não uma superfluidade do animal. Creio que dizer uma coisa é conservar-lhe a virtude e tirar-lhe o terror. Os campos são mais verdes no dizer-se do que no seu verdor. As flores, se forem descritas com frases que as definam no ar da imaginação, terão cores de uma permanência que a vida celular não permite.
Mover-se é viver, dizer-se é sobreviver. Não há nada de real na vida que o não seja porque se descreveu bem. Os críticos da casa pequena soem apontar que tal poema, longamente ritmado, não quer, afinal, dizer senão que o dia está bom. Mas dizer que o dia está bom é difícil, e o dia bom, ele mesmo, passa. Temos pois que conservar o dia bom em uma memória florida e prolixa, e assim constelar de novas flores ou de novos astros os campos ou os céus da exterioridade vazia e passageira.
Tudo é o que somos, e tudo será, para os que nos seguirem na diversidade do tempo, conforme nós intensamente o houvermos imaginado, isto é, o houvermos, com a imaginação metida no corpo, verdadeiramente sido. Não creio que a história seja mais, em seu grande panorama desbotado, que um decurso de interpretações, um consenso confuso de testemunhos distraídos. O romancista é todos nós, e narramos quando vemos, porque ver é complexo como tudo.
Tenho neste momento tantos pensamentos fundamentais, tantas coisas verdadeiramente metafísicas que dizer, que me canso de repente, e decido não escrever mais, não pensar mais, mas deixar que a febre de dizer me dê sono, e eu faça festas com os olhos fechados, como a um gato, a tudo quanto poderia ter dito.
A moderna literatura é uma lit[eratur]a de masturbadores. A da Ren[ascença] era de amorosos decadentes. A do romantismo para cá é de masturbadores.Vejamos:Há 3 fenómenos sexuais distintos:
(1) a sexualidade normal.
(2) a homossexualidade.
(3) a monossexualidade ou masturbação. Contém 3 elementos(A) o Sonho, porque é visionado o outro elemento da cúpula.(B) O desdobramento do Eu, porque o indivíduo figurará como dois no m[es]mo.(C) O requinte, porque o acto sexual tem de ser investido de várias coisas para não (...)
A virtude principal da literatura - o não ser música - é ao mesmo tempo o seu principal defeito. Tem que ser composta e expressa em uma língua qualquer. Tem, portanto, por mais largamente que essa língua seja falada ou conhecida, que se não dirigir plenariamente à maioria do género humano. Aquilo por onde é mais explícita que qualquer outra arte, por isso mesmo é menos universal que ela.
Ocorre, pois, perguntar por que processo, em literatura, é alguém universalmente célebre, como, ainda que poucos, há relativamente tantos que o são; porque processo são célebres no espaço, e sobretudo no espaço e no tempo, quando forçosamente, e mormente na poesia, que é a espécie literária mais alta, nenhuma tradução, supondo que existe, pode dar conhecimento da obra em sua completa e verdadeira vida.Porque o certo é que, a maioria de nós, não mentimos nem fingimos quando, ignorantes do grego, sofremos o entusiasmo de Homero, ou, hóspedes e peregrinos no latim, temos o culto de Horácio ou de Catulo. Não mentimos nem fingimos; pressentimos. E esse pressentimento, feito de não sei que misto de intuição, de sugestão e de entendimento obscuro, é uma espécie de tradutor invisível, que acompanha pelas eras fora, e torna universal como a música, a arte dada em linguagem, esse produto de Babel, com cuja queda o homem pela segunda vez caiu.
O que há de mais alto neste mundo fala, quer queira quer não, uma linguagem simbólica, entendida por poucos com a verdadeira chave hermética, a inteligência, entendida por mais com o instinto de que há que entender, que é a intuição. São os primeiros, para o caso da obra literária, os que conhecem como naturais a língua em que ela está escrita; são os segundos os que a não conhecem assim, ou de todo a não conhecem, mas que, não conhecendo a língua, conhecem todavia a obra.
Mas há mais, e mais estranho. Podemos, por intuição, ou o que quer que seja, figurar-nos a alma e a vida de uma obra poética de que não conhecemos nada, ou, no melhor, não conhecemos mais que uma tradução em prosa, que é outra forma, mais complicada, do mesmo nada. Muitos de nós, porém, nos figuramos, com razoável exactidão, a alma e a vida de obras que nunca lemos, por vagas reminiscências de referencias, por obscuras e casuais alusões, ou de obras, ainda, em idiomas estranhos, e de que não há, ou pelo menos nunca lemos, tradução em idioma que no-lo não seja. Aqui o tradutor invisível opera invisivelmente. Já não intuicionamos: adivinhamos. E como se houvesse em nós uma parte superior da alma que soubesse por condição todos os idiomas e tivesse lido por natureza todas as obras.
Afinal, que é uma obra literária senão a projecção em linguagem de um estado de espírito, ou de uma alma humana? E essa obra é o símbolo vivo da alma que a escreveu (compôs), ou do momento dessa alma - uma pequena alma ocasional - que a projectou. Porque não haverá de alma para alma uma comunicação oculta, um entendimento sem palavras, pelo qual adivinhemos a sombra visível pelo conhecimento do corpo invisível que a projecta, e entendemos o símbolo, não por o conhecermos visto, mas por sabermos aquilo de que é símbolo?
Quem sabe, até, se em qualquer estado antenatal, não vimos frente a frente a obra em seu espírito, que não no corpo verbal que aqui tem; que, ouvindo aqui só falar nela, desde logo sabemos de que se trata, na sua verdadeira essência e vida; e que, pois, lendo mal, ou nem sequer lendo, não é em nós suscitado, não um entendimento, ainda que intuitivo, mas uma funda e subtil recordação?
Quem sabe, ainda, se, nesse estado antenatal, livres ainda do espaço e do tempo, não vimos já tudo, aqui hoje passado ou aqui hoje futuro, sub specie aeternitatis; e assim, se pudermos dispertar em nós essa anamnesis, não estamos hoje, nós mesmos nossos tradutores invisíveis, senhores inconscientes das obras ainda por nascer no decurso futuro do mundo?
Não sorrio por isso - ou, melhor, não sorrio sempre, nem prontamente - dos que me falam de Shakespeare sem que saibam o inglês - e escolho Shakespeare para exemplo porque ele é dos poetas mais fielmente casados com a índole e as possibilidades do idioma em que compôs, e, como bom marido, com as maneiras e formas de enganar esse idioma. Não sorrio. Quem sabe se, em qualquer incamação anterior, o que me fala não conheceu Shakespeare como aqui foi, não falou com ele como aqui falou, e não está sendo, sem que ele ou eu o saiba, o tradutor invisível de um grande amigo ignorado?





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