Não é neccessário vivermos ao lado de alguém para nos sentirmos ligados a esse alguém mais do que a qualquer outra pessoa...

segunda-feira, 23 de julho de 2018

Piadas e aborrecimentos...

Estou sentado numa sala, rodeado de cabeças e de corpos. A minha postura é conscientemente congruente com a forma da minha dura cadeira.

Eu estou aqui.
Três caras ocupam lugar em cima de casacos desportivos de verão e largas gravatas de seda do outro lado de uma mesa de conferências de pinho polido que brilha com a luz - que parece uma teia de aranha - do meio-dia do Arizona. São três os deões: o das Admissões, o dos Assuntos Académicos e o dos Assuntos Desportivos. Não sei a qual corresponde cada cara.


Não sou apenas um rapaz que joga ténis. Tenho uma história intrincada. Experiências e sentimentos. Sou complexo. Eu leio. Leio e estudo.Aposto que li tudo o que os senhores professores leram. Não pensem que não o fiz.Devoro bibliotecas. Desgasto as lombadas e os leitores de CD-ROM. Faço coisas do género de apanhar um táxi e dizer ao condutor:" Leve-me a uma biblioteca e prego a fundo". Os meus instintos sintáticos e mecânicos são melhores do que os vossos.(...) Não sou uma máquina . Sinto e acredito. Tenho opiniões próprias. Algumas são interessantes.Falemos de qualquer coisa.Julgo que tem minimizado a influência de Kirkegaard em Camus.(...) Não sou um creatus prefabricado, condicionado e criado com uma única função.


I started a joke Which started the whole world crying But I didn't see That the joke was on me...

Sei o que não quero dizer, mas não sei o que quero dizer. Querer ou não querer eis uma questão que não tem piada nenhuma...Espero que as mil e duzentas páginas de uma piada infinita não me desiludam...



Autor de A Piada Infinita, um dos cem melhores romances de língua inglesa publicados desde 1923, David Foster Wallace é considerado um dos escritores mais originais da sua geração, capaz de transformar um texto sobre Roger Federer numa obra de arte. O sucesso e o reconhecimento não lhe permitiram superar a depressão que enfrentou ao longo de toda a vida, suicidando-se em 2008, com 46 anos.

Wallace projeta-se em A Piada Infinita, através de tópicos que marcam a sua existência: a paixão pelo ténis, o consumo de marijuana e de antidepressivos, a tendência suicida, o pavor da solidão e uma genialidade torrencial.

"Acabei de encontrar um homem maravilhoso. É de ficção, mas não se pode ter tudo."



"...nunca fui excessivamente infeliz - porque não tenho imaginação..."
Os supervisores do complexo regional da AT do município de Lake James estão a tentar estabelecer por que razão ninguém reparou que um dos funcionários esteve sentado à secretária, morto, durante quatro dias, antes de alguém lhe perguntar se se sentia bem.

O liceu tornou-se um tormento diário, ainda que as notas melhorassem cada vez mais, devido ao tempo acrescido de leitura e estudo, porque era só quando estava sozinho e completamente absorvido e concentrado noutra coisa qualquer que se sentia bem.

A chave burocrática subjacente é a capacidade de lidar com o aborrecimento. De funcionar eficazmente num ambiente que impossibilita tudo o que seja vital e humano. De respirar, por assim dizer, sem ar. A chave é a capacidade, inata ou condicionada, de encontrar o outro lado do que é rotineiro, insignificante, irrelevante, repetitivo, escusadamente complexo. De ser, em resumo, imune ao aborrecimento.

Depois dos atentados contra o Charlie Hebdo, o Bataclan e um bar gay em Orlando, o retrato dos terroristas islâmicos começa a ficar cada vez mais claro: são pessoas, digamos assim, que odeiam piadas, música rock e homossexuais. É um pouco inquietante constatar esta afinidade ideológica entre o Daesh e o meu tio Alfredo. Tirando uma divergência importante sobre o consumo de vinho verde tinto, entre os fundamentalistas e o meu tio Alfredo verifica‑se aquilo a que se costuma chamar um amplo consenso. O meu tio Alfredo já morreu, que a cirrose não perdoa, mas explanou raciocínios enquanto era vivo — que é, aliás, a altura ideal para os explanar.
Entre os autores de piadas, os frequentadores de concertos e os homossexuais, os únicos dos quais ouvi o meu tio Alfredo dizer que mereciam morrer foram os últimos. Se o meu tio Alfredo fosse vivo, talvez aproveitasse este massacre para rever a sua opinião sobre o acolhimento de refugiados. Afinal, a hipótese de podermos receber muçulmanos radicais talvez provocasse um choque civilizacional bastante menor do que ele temia.


O Soares e o Pereira, empregados do mesmo escritório, eram inimigos de alma.(...) Um dia o Soares, que era o mais inteligente e por isso o mais estúpido dos dois, referindo, fora do escritório, a qualquer amigo as cenas habituais com o Pereira, recebeu d'esse a pergunta, «Mas porque diabo é que tu não o esmagas com uma coisa pior que todas as piadas?» «Que coisa?» perguntou o Soares; «porrada?» «Não, não digo isso... Melhor que isso: o silêncio... Ele tem mais piada que tu; pois bem, arranja mais desprezo do que ele. Ele insulta, e tu olhas para ele e não dizes nada. Ele insulta mais e tu na mesma. Ele espuma e esbraveja, e tu idem e igualmente zero. Verás que não há piada que ele possa dizer que valha o que tu não dizes. O que tu não dizes pode ser tudo; o que ele diz não pode ser senão o que ele diz, e, se calhar, muitas vezes nem isso é.»

O Pereira pensou e achou razão, pelo menos provisória, ao conselho. E, ao contrário do que a prudência manda, seguiu-o. Mas, como é costume suceder quando se não segue a prudência, fez bem. Foi logo no dia seguinte, porque era todos os dias, e o dia seguinte não era feriado. Surgiu um incidente que o Pereira fez o Soares ter feito surgir. E, sob os ouvidos fitantes do outro pessoal, o Pereira começou. Os substantivos do costume uniram-se aos adjectivos do da vizinhança e o carácter, habilitações, possibilidades penais, e outros atributos de um Soares de retórica, fulguraram no discurso. A certa altura, como o Soares não dissesse nada, mas somente olhasse para o orador com uma atenção despreocupada e triste, o Pereira começou a afrouxar. Seguiu a cena, de parte a parte, e o Pereira, afrouxando cada vez mais, foi-se tornando lívido. Ao fim de cinco minutos estava quase mudo e com a voz e a expressão do olhar em vésperas de lágrimas. Então engoliu um pouco; e, dirigindo-se ao Soares numa voz trémula disse: «Ó Soares, você está zangado comigo?»
Si vis bellum, para pacem.


"Antes quero asno que me leve que cavalo que me derrube."

Oh Jesu! que enfadamento,
E que raiva, e que tormento,
Que cegueira, e que canseira!
Eu hei-de buscar maneira
D'algum outro aviamento.
Coitada, assi hei-de estar
Encerrada nesta casa
Como panela sem asa,
Que sempre está num lugar?
E assi hão-de ser logrados
Dous dias amargurados,
Que eu possa durar viva?


Aborrece-me mais um texto deturpado do que o destino da humanidade...Terei de seguir o conselho de álvaro de campos:

Meu pobre amigo, não tenho compaixão que te dar.
A compaixão custa, sobretudo sincera, e em dias de chuva.
Olhe: tudo é literatura.
Vem-nos tudo de fora, como a chuva.
A maneira? Se nós somos páginas aplicadas de romances?
Traduções, meu filho.
Você sabe porque está tão triste? É por causa de Platão,
Que você nunca leu.
E um soneto de Petrarca, que você desconhece, sobrou-lhe errado,
E assim é a vida.
Arregace as mangas da camisa civilizada
E cave terras exactas!



Entendamo-nos bem. Ninguém pode ler tudo, sequer sobre um só assunto. É, pois necessário, muitas vezes, citar em segunda-mão, quando não ainda mais translatamente. Não há nisso charlatanice, desde que estejamos convencidos da competência e da probidade do primeiro citador; nem é necessário que estejamos sempre indicando que não citamos do original, enchendo as páginas, que escrevemos, de «citas em segunda-mão», ociosas e importunas. Se eu citar, ainda que no original, uma frase grega ou alemã, não vem a propósito dizerem-me, o que é aliás verdade, que não sei grego nem alemão. E preferível citar em português, até para conveniência do leitor.
Posso traduzir, através de idioma intermédio, qualquer poema grego, desde que consiga aproximar-me do ritmo do original, para o que basta saber simplesmente ler o grego, o que de facto sei, ou que obtenha uma equivalência rítmica.



Aborrecem-me certas formas de tolerância...

Temos pois de proclamar, em nome da tolerância, o direito de não sermos tolerantes com os intolerantes. Temos de proclamar que qualquer movimento que promova a intolerância se coloca fora da lei, e temos de considerar criminoso todo e qualquer incitamento à intolerância e à perseguição, como consideramos criminoso o incitamento ao homicídio, ao rapto, ou ao restabelecimento do tráfico de escravos.

Como estava aborrecida, misturei gim à realidade - plágio assumido - e o resultado foi... Não encontro o adjetivo! Com os artistas tudo corre bem, comigo, não...Que inteligência totalmente improfícua. Como álvaro de campos traduziria este estado de espírito de uma forma superior...Assim não tem piada ponto final.

É preciso confessar que havia dias em que a condessa não dirigia palavra a ninguém: viam-na passar sob os grandes castanheiros,mergulhada nas suas meditações; era demasiado inteligente para não sentir às vezes quanto é aborrecido não se ter a quem comunicar as nossas ideias.

Sem a si própria o confessar, aquela alma ativa começava a sentir -se cansada da vida monótona que levava ...e não se deixar morrer - pensava ela- não é o mesmo que viver.(...)Tal era a singular posição da condessa: Fabrício ausente, pouco esperava do futuro; o seu coração precisava de consolação e de novidade.

A duquesa deu-se pressa em descer até aos seus aposentos. Mal se fechou no quarto, desatou a chorar; a ideia de ser amante daquele Fabrício que vira nascer, tinha para ela qualquer coisa de horrível; contudo, que significava a conduta dela?Fora esse o primeiro motivo da pesada melancolia em que o conde viera encontrá-la; à sua chegada teve acessos de irritação contra ele, e quase contra

Fabrício; desejaria nunca mais ver um nem outro; e sentia-se despeitada por causa do papel, a seus olhos ridículo, que Fabrício representava junto de Marieta ... A duquesa não se podia resignar àquela infelicidade: o seu ídolo tinha um defeito.


Decidiu nunca mais mentir à duquesa, e era por a amar com adoração, nesse momento, que jurou nunca lhe dizer que a amava; nunca pronunciaria junto dela a palavra amor, visto que a paixão a que se dá esse nome não existia no seu coração.

Mas em vão buscou no seu coração o ânimo necessário para falar com aquela sinceridade sublime que lhe parecia tão fácil na noite que passara nas margens do lago Como.« Vou aborrecer a pessoa que mais amo no mundo; se falar, terei o ar dum mau ator; realmente , só nos momentos de exaltação valho alguma coisa.»

A duquesa olhava para ele com admiração. Não era já a criança que vira nascer; não era tão pouco o jovem sempre pronto a obedecer-lhe: era um homem grave, e pelo qual seria delicioso fazer-se amar.
- Então queres fugir de mim?
- Não - respondeu ele com um ar de imperador romano - , mas queria ter juízo.


«Amo-te com a mais devotada amizade, etc., etc, porém , a minha alma não é suscetível de amor.»

Uma noite, Fabrício pensou mais seriamente na tia: ficou espantado, teve dificuldade em evocar a sua imagem. ( ...) « Santo Deus - exclamou ele com entusiasmo - Que boa inspiração tive em não lhe dizer que a amava!» Quase já não podia compreender como a pudera achar tão linda. Sob esse ponto de vista, Marieta fazia-lhe uma impressão de mudança menos sensível: nunca imaginara que a sua alma tivesse qualquer participação no amor de Marieta, ao passo que muitas vezes supusera que toda a sua alma pertencia à duquesa.

Assim, embora comprimido numa espécie de gaiola, Fabrício tinha uma vida muito plena; ocupava-a inteiramente procurando a solução deste problema importante:» Gostará ela( Clélia) de mim?» O resultado de milhares de observações incessantemente repetidas, mas não menos incessantemente postas em dúvida, era este:« Todos os seus gestos voluntários dizem que não, mas o que é involuntário no movimento dos seus olhos parece confessar que ela está a ganhar-me amizade.»

Nesse magnífico palácio Vignano, que o conde mandara construir para ela, recebia às quintas-feiras toda a alta sociedade de Parma, e todos os dias os seus numerosos amigos. Fabrício não deixava nunca passar um dia sem ir a Vignano. Numa palavra, a condessa reunia todas as aparências da felicidade, mas pouco tempo sobreviveu a Fabrício, que adorava, e que passou um ano apenas na sua Cartuxa...
TO THE HAPPY FEW

She said I know what it's like to be dead I know what it is to be sad And she's making me feel like I've never been born...



I'm a loser And I lost someone who's near to me I'm a loser And I'm not what I appear to be...

Aqui na minha frente a folha branca do papel, à espera; dentro de mim esta angústia, à espera: e nada escrevo. A vida não é para se escrever. A vida — esta intimidade profunda, este ser sem remédio, esta noite de pesadelo que nem se chega a saber ao certo porque foi assim — é para se viver, não é para se fazer dela literatura.

[Carta a Armando Teixeira Rebelo -2 Ago. 1907]

Hotel Brito, Portalegre, 22 de Agosto de 1907

Venerável porção de existência terrena!

Nuns poucos momentos de concatenada actividade mental, não desassistida dos fumos carnais da bebida alcoólica — nada mais nada menos do que vinho — não exclusivo a esta localidade, a minha alma sentiu, como um suspiro mental, a necessidade de dar expressão do seu presente estado e tendências a um cérebro amigável como o teu.
Solitário e silente no meu transitório lugar de existência no hotel mencionado no cabeçalho desta explosiva epístola de uma sobrecarregada alma, sentindo em redor de mim um mundo moralmente frio e materialmente quente — abaixo de zero quanto à minha alma e não longe dos 40 quanto ao meu corpo — nestas circunstâncias angustiosas e inspiradoras veio até mim a ideia de que talvez o processo desta composição epistolar possa ser subjectivamente conducente a um alívio do meu fardo terreno neste momento, possa ser o «bálsamo em Gilead» sonhado por Poe, para o meu espírito desgarrado. Daí esta carta.

Portalegre é um lugar em que tudo quanto um forasteiro pode fazer é cansar-se de não fazer nada...A desmontagem e embalagem da tipografia está a levar um tempo danado — poeticamente falando, é claro. Apesar disso, os homens têm trabalhado bastante depressa e tenho os olhado e observado com a maior das energias.
Acredito sinceramente que, se tivesse que aqui ficar um mês, teria de ir para Lisboa e depois para o Hotel Bombarda. Mal podes imaginar o hiperaborrecimento, o ultra-estafanço-de-tudo, a absoluta sensação de o-que-há-de-fazer-um-tipo num sítio destes, que reinam no meu espírito! (...)

Passa bem, ó tu
F. Nogueira Pessoa

P. S. — Não me escrevas para Portalegre. Poderei já aqui não estar. Espera o meu regresso a Lisboa. Aí falaremos então.

«A felicidade - uma combinação de alegria + gratidão, a cada segundo que passa, pela dádiva de estarmos vivos, conscientes - encontra-se do outro lado de um aborrecimento absolutamente aniquilador. Prestem toda a atenção à coisa mais entediante que forem capazes de descobrir (declarações fiscais, golfe na televisão) e vão ser inundados por ondas de um aborrecimento como nunca sentiram e que vos vai praticamente matar. Mas, se conseguirem sobreviver a isso, será como passar do preto e branco para a cor. Como água depois de vários dias no deserto. Uma felicidade constante em cada átomo.» DFW

Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.
(...)
Eu que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu que verifico que não tenho par nisto neste mundo.

Toda a gente que eu conheço e que fala comigo,
Nunca teve um acto ridículo, nunca sofreu um enxovalho,
Nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na vida...

Arre, estou farto de semideuses!
Onde há gente no mundo? ...


Aborrecem-me certos velhos vícios nacionais: Sublima-se uma pessoa até à quase canonização. Chegando a este ponto, tal figura fica integrada num estranho limbo de "independência imaculada", cuja transgressão será punida implacavelmente pelos próprios admiradores. O ídolo deixa de ter autonomia e só lhe é permitido que se mova nas baias erguidas pelos seus fiéis. Isso acontece também em situações mais banais. Há tempos encontrei um ex-aluno que me declarou ter sido eu - perdoe-me a imodéstia da referência - " o melhor professor que jamais tinha tido". Só um defeito me diminuía a seus olhos: esta minha imperdoável mania de me meter na política. Este tipo de atitude está por todo o lado; e quanto mais alto sobe o ídolo, mais vigilantes e implacáveis são os admiradores.

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