"Foi Marlowe quem trouxe para a grande literatura essa solitária experiência de dor que é a tragédia do Doutor Fausto. Nesta figura, projeta o dramaturgo inglês uma linha de compreensão da natureza humana como excesso e paixão, devir e mudança, exuberância e individualismo revolto, que expressa bem a ousada aspiração do renascimento nos campos científico, político, ético e estético.
Marlowe dramatiza o choque entre a aspiração do Homem e a imobilidade divinamente organizada pela Criação, choque onde se joga o importante meditar marloviano sobre a utilização da Magia como modo de aquisição de conhecimento."
Uma particularidade deste Doutor Fausto, publicado em 1604, mas escrito em 1588 ou 1592, é a referência a dois anjos: o Anjo Bom e o Anjo Mau. Há cenas muito parecidas com o Auto da Alma, escrito por Gil Vicente em 1508. Como se justificará esta similitude? Uma fonte comum aos dois dramaturgos? Mera coincidência?
Fausto - Escura é a filosofia,/ Direito e medicina são para os mesquinhos,/ De todas a mais baixa é a teologia, / Enfadonha, rude, vil e desprezível./ É a magia , só a magia, que me encanta.
Perguntas de Fernando Pessoa: O que são os graus místicos, mágicos e alquímicos? O que é o subgrau de Senhor do Limiar? (A confusão psíquica em Cagliostro, Blavastzky, Crowley, é isso?) É o uso da magia uma tentação a evitar? Ou uma força?Caeiro é um acto mágico? E outros assim? A criação artística (ou filosófica) é um acto alquímico (ou mágico?)
OMAR [KHAYYAM] -Por que obscura magia é que esse persa longínquo manda tão diversamente sobre as nossas almas? Que potência de encantamento jaz viva na sepultura do seu tédio? Ah, é que real ou facticiamente, nele ou em Fitzgerald por ele, falou, melhor que em qualquer outro, a voz completa do tédio inteiro, não do tédio que está cansado de viver, mas do tédio que está cansado de ser. Cansado de ser, não como o Buda, que renega a vida porque é pouco, mas de outro modo — o de quem renega a vida porque é tudo.
Repara bem que a obra que te propões fazer é no mais alto de tudo. Sonhar é encontrarmo-nos. Vais ser o Colombo da tua alma. Vais buscar as suas paisagens. Cuida bem pois em que o teu rumo seja certo e não possam errar os teus instrumentos.A arte de sonhar é difícil porque é uma arte de passividade, onde o que é de esforço é na concentração da ausência de esforço. A arte de dormir se a houvesse, deveria ser de qualquer forma parecida com esta.
Repara bem: a arte de sonhar não é a arte de orientar os sonhos. Orientar é agir. O sonhador verdadeiro entrega-se a si próprio, deixa-se possuir por si próprio.Foge a todas as provocações materiais. Há no início a tentação de te masturbares. Há a do álcool, a do ópio, a do (...). Tudo isso é esforço e procura. Para seres um bom sonhador, tens de não ser senão sonhador. Ópio e morfina compram-se nas farmácias — como, pensando nisto queres poder sonhar através deles? Masturbação é uma coisa física — como queres tu que (...)Que te sonhes masturbando-te, vá; que em sonhar talvez fumando ópio, recebendo morfina te embriagues da ideia do ópio (...) da morfina dos sonhos — não há senão que elogiar-te por isso: estás no teu papel áureo de sonhador perfeito.
Julga-te sempre mais triste e mais infeliz do que és. Isso não faz mal. E mesmo, por ilusão, um pouco escadas para o sonho.
Não verei certamente esta forma de viver a arte. Não acho esta genialidade nada "gira"...Nada. Não me identifico com formas degradantes e decadentes de exibir, digo exibir, a diferença e de reduzir todos os que se esforçam por não sucumbir à dor de pensar a burgueses desinteressantes...
Não gosto de ver gente fraca , por muito talento que tenha, ser eudeusada... gente que se autodestrói e destrói os jovens que lhes seguem o exemplo, numa tentativa inconsequente de serem" artistas"...
A arrogância com que exibem, repito exibem, a sua forma " livre" e anticonvencional de ser e de existir irrita-me.
Na biblioteca da universidade vagueava por entre as estantes, por entre os milhares de livros, inspirando o odor bafiento a couro, tecido e papel ressequidos como se fosse um exótico incenso. Por vezes parava, tirava um volume de uma prateleira e segurava-o um instante com as suas mãos grandes, que eram tomadas por um formigueiro perante essa sensação ainda nova da lombada, da capa cartonada e das folhas de papel que se lhe ofereciam sem resistência. Depois, folheava o livro, lendo um parágrafo aqui e ali, os dedos hirtos virando as páginas cuidadosamente, com medo de, desajeitados, rasgarem e destruírem aquilo que tinham descoberto com tanto esforço.
Por vezes, imerso nos seus livros, tomava consciência de tudo o que não sabia, que não lera, e a serenidade à qual aspirava estilh açava-se, quando percebia o pouco tempo de que dispunha na vida para ler tanta coisa, para aprender o que queria.
Esse amor à literatura, à língua, aos mistérios da mente e do coração que se revelavam nas ínfimas, estranhas e inesperadas combinações de letras e palavras, na tinta mais negra e fria… esse amor que escondera como se fosse ilícito e perigoso começou ele então a mostrar, hesitantemente a princípio e depois com ousadia e, por fim, com orgulho.
Sentia-se finalmente a começar a ser um professor, que é simplesmente um homem para quem o livro é verdadeiro, que é simplesmente a quem é dada a dignidade artística que pouco tem a ver com a sua tolice ou fraqueza ou insuficiência enquanto homem. Era um conhecimento sobre o qual não podia falar, mas que o transfigurara assim que o adquirira, uma transfiguração que saltava aos olhos de qualquer pessoa.
Tinham chegado aquele ponto na vida juntos em que raramente falavam de si próprios ou um do outro,para não quebrarem o delicado equilíbrio que tornava essa vida possível.
Terceiro Ato, Cena quatro – disse Masters. – E, assim, a providência, ou a sociedade, ou o destino, ou seja qual for o nome que lhe quiserem dar, criou este telheiro para nós, para nos abrigarmos da tempestade. É para nós que existe a universidade, para os desalojados do mundo; não para os estudantes, não para a busca altruísta do conhecimento, não por nenhuma das razões que vocês ouvem. Enumeramos as razões e deixamos entrar alguns dos normais, aqueles que se safariam bem no mundo, mas isso é só para disfarçar e nos protegermos. Tal como a Igreja na Idade Média, que se estava nas tintas para a laicidade ou inclusive para Deus, também nós temos as nossas pretensões para podermos sobreviver. E sobreviveremos… porque temos de o fazer.
Enterrou-a ao lado do pai. Terminada a cerimónia fúnebre, e depois de os poucos convidados terem partido, Stoner ficou sozinho, no vento frio de novembro, a olhar para as duas campas, uma aberta, tendo acabado de receber o seu fardo, e a outra coberta de terra e ervas penugentas. Virou as costas ao pequeno cemitério árido e sem árvores, onde jaziam outras pessoas como os seus pais, e olhou para a extensão de terra plana, na direção da quinta onde nascera, onde os pais tinham passado a vida inteira. Pensou no preço que a terra, ano após ano, exigira; e continuava como sempre fora… um pouco mais árida, um pouco mais frugal. Nada mudara. As suas vidas tinham sido gastas numa labuta sem alegria, as suas vontades domadas, as suas inteligências embotadas. Agora, estavam na terra à qual haviam dado a vida e, lentamente, ano após ano, a terra tomá-los-ia. Lentamente, a humidade e a putrefação infestariam os caixões de pinho que continham os seus corpos e, lentamente, tocariam a pele deles e, por fim, consumiriam os últimos vestígios da sua essência. E eles tornar-se-iam uma parte insignificante dessa terra obstinada à qual se tinham entregado de corpo e alma, havia muito.
Só uma vez teve notícia de Katherine. No início da primavera recebeu uma circular da editora de uma grande universidade do leste do país, que anunciava a publicação do livro de K. e trazia umas palavrinhas sobre a autora. Lecionava numa boa faculdade de letras em Massachusetts; era solteira. Comprou um exemplar do livro assim que pôde.Quando o teve nas mãos, os seus dedos pareciam ganhar vida; tremiam de tal maneira que teve dificuldade em abri-lo. Folheou as primeiras páginas e viu a dedicatória: "Para W.S." Os olhos turvaram-se-lhe e durante muito tempo ficou sentado sem se mexer.
Desejara ser professor e assim fora e, no entanto, sabia, sempre soube, que durante a maior parte da sua vida fora um professor indiferente. Sonhara com a integridade, um tipo de pureza total, mas encontrara o meio-termo e a distração assoladora da banalidade. Ansiara pela sabedoria e, ao fim de tantos anos, de parara com a ignorância. E que mais? , pensou. Que mais?
Estou de acordo com julian Barnes: " Um romance formidável de uma latejante tristeza." A passividade, o conformismo, a aceitação,o "sem raiva nem alegria" do professor Stoner sintetizam, quanto a mim, a essência deste romance que poderia ter como subtítulo " o silêncio"...
O centro neurológico do Professor Bestombes fazia o verdadeiro lugar do intenso fervor patriótico, por assim dizer o seu foco.
Este professor terá inspirado Lenz?
Eu sempre receara ficar mais ou menos vazio; não ter, em suma, qualquer razão séria para existir. Naquele momento, perante factos estava bastante ciente do meu zero individual.Num meio diferente daquele onde tinha hábitos mesquinhos, foi como se me dissolvesse instantaneamente. Sentia-me perto de já não existir, muito simplesmente. Por isso...eu descobrira que nada me impediria de afundar numa espécie de irresistível tédio, numa espécie de adocicada, de assustadora catástrofe de alma.
Em todo o nosso passado ridículo descobrimos tanto ridículo, tanta aldrabice, tanta credulidade, que talvez desejássemos acabar de vez com isso de sermos jovens, esperar que a juventude de desprenda, esperar que nos ultrapasse, vê-la ir-se,afastar-se,olhar para toda a sua vaidade, chegar com a mão ao seu vazio, vê-la passar de novo à nossa frente e depois partirmos nós, ficarmos certos de que realmente a juventude se foi e tranquilamente , pelo caminho que é muito nosso, passarmos vagarosamente para o lado de lá do Tempo, e então observarmos como as pessoas e as coisas realmente são.
O manicómio de Vigny-sur-Seine nunca desenchia lá muito. Nos jornais intitulavam-no "Casa de Saúde" por causa de um grande jardim que o rodeava e onde os nossos loucos passeavam quando fazia bom tempo. Passeavam, os loucos, com um estranho ar de quem achava difícil equilibrar a cabeça sobre os ombros, como se tivessem medo de tropeçar e espalhar o seu conteúdo no chão(...) Só nos falavam dos seus tesouros mentais, os alienados, com uma porção de contorções horrorizadas ou ares condescendentes e protectores, como se fossem muito poderosos e meticulosos administradores. Nem um império faria aquela gente abdicar das suas cabeças.Um louco não passa de vulgares ideias de homem, embora bem fechadas numa cabeça. Uma cabeça bem fechada transforma-se numa espécie de lago sem rio, numa infecção.
As oitenta e tal páginas finais, em que conhecemos o Dr. Baryton, "o patrão do manicómio" , a " casa de saúde", a loucura dos doentes e a dos psiquiatras, a indiferença da enfermeira Sophie, a loucura de quem não está internado, são um remate excecional de um dos romances mais desencantados sobre a condição humana que já li. Uma breve e ténue nota de otimismo: a fuga do Dr. Baryton que entrega a casa ao narrador...Será que só a literatura nos pode salvar?
(Recomendado por GMT, como contraponto à Viagem de Céline que nos "obrigou" a ler...Registo a sinopse da Wook. O romance fica em lista de espera,não sei até quando, mais um...)
"Se quiseres encontrar-te, começa por te perder, escreveu um dia Jacques Lanzmann. O Rato da América, relato autobiográfico retocado pelas exigências formais e literárias da ficção, é desta fatalidade maior exemplo. Lanzmann […] fala-nos dos dias em que se perdeu noutro continente, desiludido numa esperança, vergado pelo destino do rato da América — entenda-se a expressão como ajustada ao emigrante ou ao autóctone sul-americano com dias rastejados por baixos expedientes e duras tarefas impostas à sua condição humana. […] O Rato da América pôs a segunda pedra no percurso de um escritor que chegaria ao fim da vida com o respeitável número de quarenta e seis romances e narrativas publicados.[…] Os comunistas, jovens e velhos, fizeram do livro um triunfo. Era previsível; através de um herói deserdado eu ocupava-me da luta de classes. Não era, de facto, O Germinal, mas grande parte da sua história desenrolava-se numa mina. Orgulhoso com este apreço das massas trabalhadoras, deixei-me ir na onda de uns e outros, ao ponto de aderir ao Partido alguns dias depois de me casar [com uma fervorosa militante]. Sentiria eu necessidade de estar enquadrado? Talvez estivesse farto de me arrastar pelos cafés.[…] palavras suas para uma canção de Dutronc tinham avisado: De tanto bater, o meu coração parou. O coração de Lanzmann parou de bater em Junho de 2006. Ele tinha acabado de publicar o romance Uma Vida de Família, a vida que a idade acabara por lhe apontar como inevitável e ele vivia calmamente ali, em Montparnasse, rodeado por memórias de uma imparável agitação vital. [Aníbal Fernandes]"
Sem comentários:
Enviar um comentário