Não é neccessário vivermos ao lado de alguém para nos sentirmos ligados a esse alguém mais do que a qualquer outra pessoa...

sábado, 6 de outubro de 2018

Investigações...

Passou anos a investigar e, quando chegou a uma conclusão, percebeu que preferia nunca ter sabido a verdade...

Segundo a vossa superioridade, almas femininas que me ledes, sabereis compreender o que escrevo. Todo o prazer é do cérebro, todos os crimes que se dão é só em sonhos que se cometem. Lembro-me de um crime belo, real. Não o houve nunca. São belos os que nós só sonhamos. Bórgia cometeu belos crimes? Acreditai-me que não cometeu. Quem os cometeu belíssimos, profusos, frutuosos foi o nosso sonho de Bórgia, foi a ideia de Bórgia que há em nós. Tenho a certeza que o César Bórgia que existiu era um banal e um estúpido, tinha de o ser porque existir é sempre estúpido e banal.
Dou-vos estes conselhos desinteressadamente aplicando o meu método a um caso que me não interessa. Pessoalmente os meus sonhos são de império e glória; não são sensuais de modo algum. Mas quero ser-vos útil, ainda que mais não seja só para me arreliar porque detesto o útil. Sou altruísta a meu modo.


A maneira de investigar um caso destes é, começou Quaresma, por três estádios de raciocínio. O primeiro é determinar se de facto houve crime. O segundo é, determinado isso positivamente, determinar como, quando e por que o crime foi praticado. O terceiro é, por meio de elementos colhidos no decurso desses dois estádios de investigação, e sobretudo do segundo, determinar quem praticou o crime.
O raciocínio, ou mais latamente a inteligência, trabalha sobre sensações, dados fornecidos pelos sentidos, nossos ou alheios, a que juridicamente se chama testemunho. Quando, uma vez, o raciocínio trabalha sobre esses dados, pesando o que vale o testemunho, comparando uns com os outros, e, quando isso seja possível, por uns dados ir obtendo outros até ali desconhecidos, chegamos à posse do que chamamos «factos». Ao raciocínio que, trabalhando sobre os dados dos sentidos, deles extrai os factos, podemos chamar o raciocínio concreto.
Quando os dados procedem de testemunhos verificadamente seguros; quando comparados entre si não há entre eles contradição; quando, ou em si mesmos, ou com outros a cuja descoberta conduzem, são suficientemente abundantes para que os factos resultantes formem um conjunto coerente, harmónico e lógico, que nos permita indubitavelmente verificar qual foi a sua natureza, causa e fins, o acontecimento de que esses factos são os pormenores, então a investigação está concluída e basta o raciocínio para a concluir.


— Em todo o caso onde há crime, ou se presume que há crime — disse o Dr. Quaresma —, há que considerar, depois de o facto estar definitivamente estabelecido, cinco circunstâncias diferentes, todas elas relativas ao crime, ou ao crime suposto, e todas elas entre si relacionadas, de modo que, ignoradas umas, a elas se possa chegar por meio das que são conhecidas. E o processo será sempre o mesmo: primeiro, determinar bem quais dessas circunstâncias são conhecidas; segundo, sendo elas conhecidas, determinar se são inteiramente conhecidas, ou se o não são inteiramente; terceiro, fazer por tornar inteiramente conhecidas aquelas circunstâncias que o estejam imperfeitamente. Feito isto, estaremos noutro capítulo da investigação lógica; por agora limitemo-nos a este.
»As cinco circunstâncias, em que falei, relativamente a um crime, ou presunção de crime, são as seguintes: primeiro, onde foi cometido; segundo, quando foi cometido; terceiro, como foi cometido; quarto, por que foi cometido; quinto, quem o cometeu? As duas primeiras circunstâncias são materiais, as duas últimas imateriais; a terceira participa das duas.



Cá estou. Precisamente no mesmo quarto onde, faz hoje um ano, me instalei na minha primeira visita à aldeia e onde, com divertimento e curiosidade, fui anotando as minhas conversas com Tomás Manuel da Palma Bravo, o Engenheiro.

... Tudo abstrato: tempo recordações... Emigrantes reduzidos a bandeira de luto em corpos de mulheres jovens gafeirenses que vivem nesses casos à minha volta e os desconhecidos que fui buscar aos bares e às conversas do acaso ainda... diz o meu lado crítico – tornam mais abstrato esta viagem à roda de meu quarto.




Críticas...

«No belíssimo romance que é O Delfim, Cardoso Pires olhou a realidade do seu país como se fosse a trama de uma intriga policial.» [Antonio Tabucchi]

«Esse espantoso, acabado, inesgotável O Delfim, que é até hoje a sua obra-prima.» [Mário Dionísio]

«Mas O Delfim é também o título de um romance, este romance que o leitor vai ler, e onde se fala da vida, e da proximidade da morte, de Palma Bravo. Talvez seja conveniente começarmos por chamar a atenção para o facto de que também o romance, o livro de Cardoso Pires, foi envolvido nessa atmosfera mítica que parece desprender-se do seu aparente herói, e tem hoje um lugar muito nítido, e obviamente privilegiado, na literatura de ficção do nosso século xx.» [Eduardo Prado Coelho]

«Que extraordinário escritor! Que extraordinário escritor é José Cardoso Pires.» [ Gonçalo M. Tavares]

O Delfim (1968), crítica feroz ao saudosismo português,é considerado a sua obra-prima. O primeiro romance português a romper com a cronologia e a consagrar o autor José Cardoso Pires, que nele surge a descoberto, como modelo literário de uma (pós) modernidade." - Sol

José Cardoso Pires e o Cinema...
“Nada neste mundo deixa de ser influenciado, hoje, pelo cinema. Nada”, afirmou José Cardoso Pires numa entrevista em que havia mesmo de dizer: “Não há literatura nenhuma que não seja uma montagem”.

"Ao lermos os seus livros, não podemos deixar de constatar a influência que, além da literatura norte-americana, o cinema teve na sua escrita. Um estudioso da sua obra como Alexandre Pinheiro Torres utilizaria mesmo a seguinte formulação: “Cardoso Pires coloca a sua câmara cinematográfica, volteando numa área determinada”, que exprime de maneira marcante a acção da escrita, rigorosa e impecável, de Cardoso Pires. Que isso não faça, no entanto, pensar em qualquer descritivismo que pudesse congelar a prosa num estatismo decorativo. Pelo contrário, o plástico sobrepõe-se ao descritivo, parafraseando outro analista (Liberto Cruz). O que implica que, em vez de impor uma visão, o escritor a sugerisse, a apontasse, para que a imaginação do leitor fizesse o resto. Sem cair no vago, estava especialmente interessado em “criar um clima, uma ambiência”, como disse.(...)

José Cardoso Pires propunha “uma arte despida de demagogia e de sentido romântico”.(...) A precisão da sua escrita era das que se mantêm ocultas por uma aparente facilidade, uma fluência que tem tanto de encantador como de ilusório na sua singeleza – aspectos para os quais Mário de Carvalho alerta no prefácio que escreveu para O Anjo Ancorado. E já Pinheiro Torres (que MC não deixa de recordar) falava de uma elementaridade que não o era realmente. Algo que o levou a descrever “a riqueza do elementar”, que é “a riqueza original duma linguagem paradoxalmente enxuta, despojada e na aparência pobre”. Pensemos nos faróis de um carro que “sulcam a estrada num rasgão macio sobre o asfalto”, em O Delfim, ou no “Tejo em mar de escama de prata”, de Balada da Praia dos Cães.Este apego ao factual, chega ao rigor do documento, em O Delfim" - Hugo Pinto Santos


"Sobretudo um prodigioso pretexto cinematográfico para entender paixões e emoções, misérias e grandezas de um Portugal agonizante, em plena guerra colonial e com o seu ditador (Salazar) a morrer lentamente, como o país. Será também um filme sobre um tempo em suspensão. E sobre um universo metafórico - a Gafeira - que é a propriedade e ao mesmo tempo a imagem de Tomás Palma Bravo, o herdeiro e último representante de uma raça em vias de extinção" - Fernando Lopes

Vasco Pulido Valente assinou o guião de O Delfim, que Fernando Lopes realizou a partir do romance de José Cardoso Pires. Pulido Valente conheceu Cardoso Pires, foi seu amigo. O primeiro contacto deu-se na juventude de VPV – “Conheci o José Cardoso Pires muito novo, quando tinha 17 ou 18 anos, numa revista de que ninguém se lembra, mas que era muito, muito boa, que era o Almanaque. Trabalhei lá com o Cardoso Pires, Luís de Sttau Monteiro, Sebastião Rodrigues, João Abel Manta. Tudo gente com muita qualidade. Pessoas que, colectivamente, me ensinaram muito.”
Berta Maia escreve este livro, que viria a ser publicado na véspera do golpe que dá origem ao Estado Novo em 1926, para memória futura, uma vez que as provas que encontrou não foram consideradas suficientes para reabrir o processo dos responsáveis pela morte de Carlos da Maia, em 19 de outubro de 1921.

– Não, o Abel Olímpio foi apenas um instrumento! Ele não foi o maior criminoso. Infinitamente piores do que ele foram esses que o aliciaram, que lhe deram dinheiro, que o incitaram à matança e, finalmente, que o deixam morrer num cárcere.

– Porque não soltam esse homem que expia no presídio de Coimbra o crime hediondo que outros planearam, conceberam e prepararam, escondendo-se, no fim, atrás do seu vulto de fanático boçal? Porque não hão de dar-lhe a liberdade se os piores criminosos andam à solta? Não serão eles, portanto, mais criminosos que os boçais executores do seu plano tenebroso?

A morte de meu marido despojou-me de toda a felicidade que é possível nesta vida. Estou ainda viva porque não se morre de dor e porque os assassinos me deixaram nos braços uma criancinha que eu quero educar no culto da puríssima memória à sombra da qual me alimento duma saudade que o tempo não apaga.

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