Sessão 1 – José Cardoso Pires – O Delfim, Tema: O cinema
Sessão 2 – Sophia de Mello Breyner – Poesia , Tema: A clareza
Sessão 3 – Ana Hatherly - 351 Tisanas,Tema: O fragmento
Sessão 4 – Carlos de Oliveira – Finisterra, Tema: A precisão e a ambiguidade
Sessão 5 – Vitorino Nemésio - Mau tempo no Canal , Tema: O isolamento
Sessão 6 – Herberto Helder - Photomaton & vox ,Tema: A imaginação
Sessão 7 – Maria Gabriela Llansol - Um beijo dado mais tarde , Tema: A narrativa
Sessão 8 – Vergílio Ferreira – Aparição, Tema: A reflexão e o espelho
Sessão 9 – Eduardo Prado Coelho - A poesia ensina a cair, Tema: O pensamento
Sessão 10 – José Saramago - Ensaio sobre a Cegueira, Tema: A cidade
2018 - ECON
Sessão 1 - Montanha mágica
Sessão 2 - Viagem ao fim da noite
Sessão 3 - Grande Sertão: Veredas
Sessão 4 - Cartas a Lucílio
Certamente há grande prazer não somente na posse de uma antiga amizade, mas também no início e na aquisição da nova. A diferença que há entre o agricultor que faz a colheita e semeia, há entre aquele que obteve um amigo e aquele que o obtém. O filósofo Attalus costumava dizer ser mais agradável fazer um amigo do que conservá-lo, do mesmo modo que é mais agradável para o artista pintar do que ter pintado. Aquele cuidado dispensado à sua obra traz em si grande distração na própria ocupação. Não igualmente se deleita quem remove a mão da obra acabada. Já usufrui o fruto da própria arte; a mesma arte usufruiu quando
O sábio, mesmo que se baste a si mesmo, todavia deseja ter amigos, se por nenhuma outra razão,
Não duvides que o amor possui algo similar à amizade: que se possa dizer aquele afeto
2017-2018: Clube de leitores da imprensa Nacional
Sessão 1 – Sobre a morte
Sessão 2 – Sobre o amor e o desejo
Sessão 3 – Sobre a linguagem
Sessão 4 – Sobre as utopias
Sessão 5 – Sobre a técnica e a cidade
Sessão 6 – Sobre a arte
Sessão 7 – Sobre a loucura e a racionalidade
Sessão 8 – Sobre a doença e a beleza
Sessão 9 – Sobre o poder e a imaginação
Sessão 10 – Sobre a identidade
...sentira crescer em si um sentimento indefinido e excitante de felicidade e expectativa,e agora o seu espírito parecia um balão infantil,pequeno e colorido,que se tivesse soltado e pairasse lá no alto,cintilante, contra o Sol. E no momento seguinte rebentaria.
Na maior parte dos casos, a condição primordial para a felicidade não consiste em resolver contradições, mas em fazê-las desaparecer, do mesmo modo que numa alameda comprida se fecham as lacunas. E tal como por toda a parte as relações visíveis se deslocam diante dos nossos olhos para que surja uma imagem que eles possam abarcar, onde o que é premente e próximo parece grande e ao longe até as coisas enormes parecem pequenas, onde as lacunas se fecham e o todo se mostra como algo de acabado e ordenado, assim também acontece com as relações invisíveis, que a razão e o sentimento afastam tanto que daí resulta inconscientemente uma situação em que sentimos que a dominamos completamente.
Fecho, cansado, as portas das minhas janelas, excluo o mundo e um momento tenho a liberdade. Amanhã voltarei a ser escravo; porém agora, só, sem necessidade de ninguém, receoso apenas que alguma voz ou presença venha interromper-me, tenho a minha pequena liberdade, os meus momentos de excelsis.
Na cadeira, aonde me recosto, esqueço a vida que me oprime. Não me dói senão ter-me doído.
O que são os clássicos?
1.Os clássicos são aqueles livros dos quais, em geral, se ouve dizer: "Estou a reler ... " e nunca "Estou a ler ... ".Isso acontece pelo menos com aquelas pessoas que se consideram "grandes leitores"; não vale para a juventude, idade em que o encontro com o mundo e com os clássicos como parte do mundo vale exatamente enquanto primeiro encontro. O prefixo reiterativo antes do verbo ler pode ser uma pequena hipocrisia por parte dos que se envergonham de admitir não ter lido um livro famoso. Para tranquilizá-Ias, bastará observar que, por maiores que possam ser as leituras "de formação" de um indivíduo, resta sempre um número enorme de obras que ele não leu.
2. Dizem-se clássicos aqueles livros que constituem uma riqueza para quem os tenha lido e amado; mas constituem uma riqueza não menor para quem se reserva a sorte de lê-los pela primeira vez nas melhores condições para os apreciar.
3. Os clássicos são livros que exercem uma influência particular quando se impõem como inesquecíveis e também quando se ocultam nas dobras da memória, mimetizando-se como inconsciente coletivo ou individual.
4.Toda releitura de um clássico é uma leitura de descoberta como a primeira.
5.Toda primeira leitura de um clássico é na realidade uma releitura. A definição 4 pode ser considerada corolário desta:
6.Um clássico é um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer. Ao passo que a definição 5 remete para uma formulação mais explicativa, como:
7.Os clássicos são aqueles livros que chegam até nós e trazem consigo as marcas das leituras que precederam a nossa e atrás de si os traços que deixaram na cultura ou nas culturas que atravessaram (ou mais simplesmente na linguagem ou nos costumes).
8. Um clássico é uma obra que provoca incessantemente uma nuvem de discursos críticos sobre si, mas continuamente a repele para longe.
9.Os clássicos são livros que, quanto mais pensamos conhecer por ouvir dizer, quando são lidos de facto mais se revelam
novos, inesperados, inéditos.
10. Chama-se clássico um livro que se configura como equivalente do universo, à semelhança dos antigos talismãs.
11. O "seu" clássico é aquele que não pode ser-lhe indiferente e que serve para o definir a si próprio em relação e talvez em contraste com ele.
12. Um clássico é um livro que vem antes de outros clássicos;mas quem leu antes os outros e depois lê aquele, reconhece
logo o seu lugar na genealogia.
13.É clássico aquilo que tende a relegar a atualidade à posição de barulho de fundo, mas ao mesmo tempo não pode prescindir desse barulho.
14. É clássico aquilo que persiste como rumor, mesmo onde predomina a atualidade mais incompatível.
E se alguém objetar que não vale a pena tanto esforço, citarei Cioran (não um clássico, pelo menos por enquanto, mas um pensador contemporâneo que só agora começa a ser traduzido em Itália): "Enquanto era preparada a cicuta, Sócrates estava a aprender uma ária com a flauta. 'Para que lhe servirá?', perguntaram-lhe. 'Para aprender esta ária antes de morrer' ".
Eu e os outros...
Os instantes Superiores da Alma
Acontecem-lhe - na solidão -
Quando o amigo - e a ocasião Terrena
Se retiram para muito longe -
Um Copo de Cólera, de Raduan Nassar(1978)- O tema desta densa e quase alucinada novela é o embate que se trava entre um casal de amantes, suscitado por uma razão banal. Sob esse plano simples, porém, jaz uma condensação quase infinita de significados, que, enfeixados por uma prosa extremamente apurada, tornam a obra uma leitura muito interessante.
Há entre mim e a humanidade um golfo,
E esse golfo está dentro do meu ser.
Quer solitário, quer com outros, eu
Estou sempre só, nem a mim mesmo faço
A companhia de sentir. Navego,
Desabitada nau no mar da vida,
Mais só que a solidão. Sou um estranho
Ao que em mim pensa.(...)
O Que os Cegos Estão Sonhando?,Noemi Jaffe (2016)-Em abril de 1945, cerca de um ano após ser presa pelos nazis e enviada como prisioneira para Auschwitz, Lili Jaffe (cujo nome de solteira era Lili Stern) foi salva pela Cruz Vermelha e levada à Suécia. Lá, ela anotou num diário os principais acontecimentos por que havia passado: a captura pelos alemães, o quotidiano no campo, as transferências para outros locais de trabalho, mas também a experiência da libertação, a saudade dos pais e a redescoberta da feminilidade.
Esse diário — hoje depositado no Museu do Holocausto em Jerusalém e que, traduzido diretamente do sérvio, tem aqui a sua primeira publicação mundial — foi o ponto de partida para este livro absolutamente incomum, escrito e organizado por Noemi Jaffe. Em O Que os Cegos Estão Sonhando?, há três gerações de mulheres da mesma família que se debruçam sobre o horror de Auschwitz, no impulso — tão imprescindível quanto vão — de, como observa Jeanne Marie Gagnebin, tecer um agasalho “contra a brutalidade do real”.
Só!–Não o é quem na dor, quem nos cansaços,
Tem um laço que o prenda a este fadário.
Uma crença, um desejo… e inda um cuidado…
Mas cruzar, com desdém, inertes braços,
Mas passar, entre turbas, solitário,
Isto é ser só, é ser abandonado!
Gente Independente, de Halldór Laxness( 2017)- Este romance de Laxness, prémio Nobel de literatura, tem lugar na Islândia, no início do século XX, numa sociedade de servidão e num país com uma natureza inclemente. É a saga de Bjartur, um homem obstinado, inquebrável e inesquecível. Bjartur vive no limiar da auto-suficiência contando apenas com a sua obstinação e força interior, rejeitando qualquer caridade em nome da independência, valor levado ao extremo das suas consequências. Vive num vale com reputação de assombrado, só confia no seu rebanho, no seu cão e no seu cavalo. Se alguém toca o seu coração é Ásta, a sua filha, mas tudo muda quando ela o desilude e magoa os seus enraizados princípios de honra...
A determinação de Bjartur e a luta pela independência são genuinamente heróicas. A sua história é épica e ao mesmo tempo trágica e bela, um romance que continua a comover gerações de leitores.
Estás só. Ninguém o sabe. Cala e finge.
Mas finge sem fingimento.
Nada 'speres que em ti já não exista,
Cada um consigo é triste.
Tens sol se há sol, ramos se ramos buscas,
Sorte se a sorte é dada.
Tempo de Espalhar Pedras, de Estêvão Azevedo( 2017)- Num lugar indeterminado, um grupo de homens cava e peneira a terra em busca de diamantes que não existem mais. Suspensos entre a penúria extrema e as artes da sobrevivência, estes homens apercebem-se fatalmente de que as únicas superfícies ainda intocadas são aquelas em que as suas próprias casas estão erguidas.
Silvério, que procura refúgio na fé, acredita que vai encontrar a grande pedra. Rodrigo sente um desejo irresistível por Ximena, a filha do maior inimigo do seu pai, o velho Diogo. Sancho vive amancebado com a índia que dorme no seu terreno e só emite palavras incompreensíveis.
Estas histórias de amor, violentas e desesperadas, desenham-se num cenário de extinção: o do lugar paulatinamente destruído pelos seus habitantes que, tomados pelo desespero e pela cobiça, buscam as suas últimas esperanças de sobrevivência e fortuna, lutando contra a aridez da terra e das relações humanas.
Outros refúgios...
Sentia-se muito jovem; e, ao mesmo tempo, indizivelmente velha. Passava como uma navalha através de tudo; e ao mesmo tempo ficava de fora, a olhar. Tinha a perpétua sensação, enquanto olhava os carros, de estar fora, longe e sozinha no meio do mar; sempre sentira que era muito, muito perigoso viver, por um só dia que fosse.
A Incapacidade de aceitar a realidade é uma gaiola ou um refúgio?
Clarissa tinha então uma teoria – tinham ambos montões de teorias, sempre teorias, como todos os jovens as têm. Era para explicar aquele sentimento de insatisfação por não conhecerem as outras pessoas, por não serem conhecidos. Pois como poderiam conhecer-se? Encontravam-se um dia, outro dia; depois não se avistavam durante meses, anos. Era lamentável, convinham, o pouco que as pessoas se conheciam umas às outras. Mas Clarissa dizia, no autocarro da Shaftesbury Avenue, que se sentia em toda parte; não “aqui, aqui, aqui”; e batia nas costas do banco; mas em toda parte. Estendia a mão, enquanto corriam pela Shaftesbury Avenue. Ela era tudo aquilo. De modo que para conhecê-la ou a qualquer outra pessoa, era só procurar a gente que fosse o seu complemento; a gente, e também os lugares. Tinha estranhas afinidades com gente a quem nunca falara, esta mulher na rua, aquele homem atrás de um balcão – até mesmo com árvores, ou galpões. O que tudo redundava numa transcendental teoria que, combinada com seu terror à morte, a induzira a acreditar, ou a dizer que acreditava (pois era toda ceticismo), que, sendo tão momentâneas as nossas aparições, a nossa parte invisível, em comparação com a outra, a que não se mostrava, mas que era tão extensa, talvez esse invisível “eu” sobrevivesse, se refizesse de algum modo, ligado a esta ou aquela pessoa, ou mesmo frequentando certos lugares, após a morte. Talvez...
Hoje o céu é pesado como a ideia de nunca chegar a um porto... A chuva miúda é vazia... a Hora sabe a ter sido...Todas as minhas horas são feitas de jaspe negro,Minhas ânsias todas talhadas num mármore que não há, Não é alegria nem dor esta dor com que me alegro, E a minha bondade inversa não é nem boa nem má...(...)
O teu silêncio que me embala é a ideia de naufragar,
E a ideia de a tua voz soar a lira dum Apolo fingido...
Minha alma é uma lâmpada que se apagou e ainda está quente...
Ah, e o teu silêncio é um perfil de píncaro ao sol!
E eu deliro... De repente pauso no que penso... Fito-te
E o teu silêncio é uma cegueira minha... Fito-te e sonho...
Há coisas rubras e cobras no modo como te medito,
E a tua ideia sabe à lembrança de um sabor de medonho...
Para que não ter por ti desprezo? Porque não perdê-lo?...
Ah, deixa que eu te ignore... O teu silêncio é um leque —
Um leque fechado, um leque que aberto seria tão belo, tão belo,
Mas mais belo é não o abrir, para que a Hora não peque...
Saber que continuará a haver o mesmo mundo amanhã — como nos desalegra!...
Que o meu ouvir o teu silêncio não seja nuvens que atristem
O teu sorriso, anjo exilado, e o teu tédio, auréola negra...
Suave. como ter mãe e irmãs, a tarde rica desce...
Não chove já, e o vasto céu é um grande sorriso imperfeito...
A minha consciência de ter consciência de ti é uma prece,
E o meu saber-te a sorrir uma flor murcha a meu peito...
Ah, se fôssemos duas figuras num longínquo vitral!...
Ah, se fôssemos as duas cores de uma bandeira de glória!...
Estátua acéfala posta a um canto, poeirenta pia baptismal,
Pendão de vencidos tendo escrito ao centro este lema — Vitória!
O que é que me tortura?... Se até a tua face calma
Só me enche de tédios e de ópios de ócios medonhos...
Não sei... Eu sou um doido que estranha a sua própria alma...
Eu fui amado em efígie num país para além dos sonhos...
Quantas vezes, presa da superfície e do bruxedo, me sinto homem. Então convivo com alegria e existo com clareza. Sobrenado. E é-me agradável receber o ordenado e ir para casa. Sinto o tempo sem o ver, e agrada-me qualquer coisa orgânica. Se medito, não penso. Nesses dias gosto muito dos jardins. Não sei que coisa estranha e pobre existe na substância íntima dos jardins citadinos que só a posso sentir bem quando me não sinto bem a mim. Um jardim é um resumo da civilização — uma modificação anónima da natureza. As plantas estão ali, mas há ruas-ruas. Crescem árvores, mas há bancos por baixo da sua sombra. No alinhamento virado para os quatro lados da cidade, ali só largo, os bancos são maiores e têm quase sempre gente.
Verdade do perigo, dos mortos, dos doentes e das violações,
E os sons florescem nos gritos misteriosamente...
A gaiola do canário à tua janela, Maria,
E o sussurro suave da água que gorgoleja no tanque...
O corpo... E os outros corpos não muito diferentes deste,
A morte... E o contrário disto tudo é a vida...
Dói-me a alma e não compreendo...
Custa-me a acreditar no que existe...
Pálido e perturbado. não me mexo e sofro.
O limite que temos é a nossa própria personalidade; é o sermos nós e não a vida inteira. É isso o limite dentro do qual temos que trabalhar, porque não podemos trabalhar fora dele. E, para limite, basta esse.
A crueldade da dor — gozar e sofrer, por gozar a própria personalidade consubstanciada com a dor. O último refúgio sincero da ânsia de viver e da sede de gozar...Meu espírito está [...] como os clássicos fazem, e com o que os decadentes dizem.
It's just that I can't speak...
O meu desejo é fugir. Fugir ao que conheço, fugir ao que é meu, fugir ao que amo. Desejo partir - não para as índias impossíveis, ou para as grandes ilhas ao Sul de tudo, mas para o lugar qualquer - aldeia ou ermo - que tenha em si o não ser este lugar. Quero não ver mais estes rostos, estes hábitos e estes dias. Quero repousar, alheio, do meu fingimento orgânico. Quero sentir o sono chegar como vida, e não como repouso. Uma cabana à beira-mar, uma caverna, até, no socalco rugoso de uma serra, me pode dar isto. Infelizmente, só a minha vontade mo não pode dar.
Tudo me cansa, mesmo o que não me cansa. A minha alegria é tão dolorosa como a minha dor. Quem me dera ser uma criança pondo barcos de papel num tanque da quinta, com um docel rústico de entrelaçamentos de parreira pondo xadrezes de luz e sombra verde nos reflexos sombrios da pouca água. Entre mim e a vida há um vidro ténue. Por mais nitidamente que eu veja e compreenda a vida, eu não lhe posso tocar. Raciocinar a minha tristeza? Para quê, se o raciocínio é um esforço e quem é triste não pode esforçar-se. Nem mesmo abdico daqueles gestos banais da vida de que eu tanto quereria abdicar. Abdicar é um esforço, e eu não possuo o da alma com que esforçar-me.Quantas vezes me punge o não ser o accionante [?] daquele carro, o cocheiro daquele trem! qualquer banal Outro suposto cuja vida, por não ser minha, deliciosamente se me penetra de eu querê-la e se me posticia [?] de alheia! Eu não teria o horror à vida como a uma Cousa. A noção da vida como um Todo não me esmagaria os ombros do pensamento. Os meus sonhos são um refúgio estúpido, como um guarda-chuva contra um raio. Por mais que por mim me embrenhe todos os atalhos do meu sonho vão dar a clareiras de angústia. Mesmo eu, o que sonha tanto, tenho intervalos em que o sonho me foge. Então as coisas aparecem-me nítidas. Esvai-se a névoa de que me cerco. E todas as arestas visíveis ferem a carne da minha alma. Todas as durezas olhadas me magoam o conhecê-1as durezas. Todos os pesos visíveis de objectos me pesam por a alma dentro.A (minha) vida é como se me batessem com ela.
Os livros são um refúgio, em que sentido? Será por nos podermos esconder atrás de uma estante? Será porque as bibliotecas têm recantos inesperados? Será que podemos ocultar o que somos, atrás do eu de cada personagem? Será? Sou demasiado desinspirada para estas reflexões. São um refúgio e não se fala mais nisso...Somos assim: sonhamos o vôo mas tememos a altura . Para voar é preciso ter coragem para enfrentar o terror do vazio. Porque é só no vazio que o vôo acontece. O vazio é o espaço da liberdade, a ausência de certezas. Mas é isso o que tememos: o não ter certezas. Por isso trocamos o vôo por gaiolas. As gaiolas são o lugar onde onde as certezas moram.
É um engano pensar que os homens seriam livres se pudessem, que eles não são livres porque um estranho os engaiolou, que eles voariam se as portas estivessem abertas… A verdade é oposto. Não há carcereiros. Os homens preferem as gaiolas aos vôos. São eles mesmos que constroem as gaiolas em que se aprisionam…
O destino encarregou-se de fazer com que ele jamais a esquecesse; mas também por causa dela própria, o que nunca a viu tão-pouco a olvidou; e o nome da mulher - o nome que ele lhe dera por ocasião do primeiro encontro- paira sobre a obra de Adrian, como uma ruína perceptível a mais ninguém, a não ser a mim. Ainda que me tachem de vaidoso, não posso abster-me de mencionar, desde já, a descoberta que ele um dia me confirmou tacitamente.
Provavelmente não sabiam como interpretar a sua personalidade,pelo menos na medida em que pretendessem encontrar ingenuidade, expansão camaradagem cordial. Num ou noutro lugar,talvez alguns se mostrassem sensíveis à timidez de Adrian, à solidão que o envolvia, à extrema dificuldade da sua existência...
Adrian...desejava afastar-se de Munique, mas para um lugar distante...O trabalho não avançava ...Adrian sentia-se dominado pela inquietude. Estava farto do seu quarto na casa da família Rambergstrasse, o qual apenas lhe oferecia uma solidão pouco segura e onde subitamente poderia entrar alguém a fim de o convidar para uma reunião." Ando em busca de qualquer coisa" , escrevia -me ele." No meu íntimo ,dirijo perguntas ao mundo que me cerca, e escutando, aguardo que se me indique um sítio que me permita enterrar-me longe de todos e, sem que ninguém me perturbe, dialogar com a minha vida e o meu destino..." Palavras estranhas, ominosas... Finalmente optou por Itália.
As duas irmãs Rodde, tanto Clarissa como Inês, ...não eram raras as ocasiões em que deixavam perceber que o ambiente quase boémio,metade familiar, metade lascivo, do seu salão,e a sua existência sem raízes...repugnavam a ambas.Procuravam então afastar-se daquele estado híbrido,embora em direcções diferentes: a orgulhosa Clarissa, rumo a uma profissão artística, para a qual...não tinha verdadeira vocação inata; a delicadamente melancólica,intrinsecamente angustiada Inês ansiava,por sua vez, por retornar a um refúgio, à segurança psicológica de uma protegida situação burguesa, que só um casamento respeitável, fundado, se possível, no amor, mas eventualmente também sem ele, lhe poderia proporcionar.
Repito, mais uma vez, ...que a minha vida pessoal sempre se me afigurou apenas secundária,e sem que propriamente me descuidasse dela, vivia-a ,distraído só com a mão esquerda, por assim dizer, ao passo que as minhas verdadeiras diligências, tensões e preocupações se dedicavam ao bem-estar do amigo de infância. Nunca perder Adrian de vista, velar pela sua vida extraordinária, misteriosa, parecia sempre ser a real, a mais urgente incumbência da minha própria; formava o seu conteúdo essencial, e por isso mencionei o esvaziamento de que sofro nos dias presentes.
Lugar considerado seguro para alguém se refugiar e evitar um perigo...
Quem foge, tal como quem se refugia, sente-se inseguro, sente-se em perigo..
Indoeuropeu- *bheug
Grego - φυγή
Latim - fugere
Português -fugir
As arrumações são um refúgio: quando me sinto desorientada, arrumo, arrumo compulsivamente...
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