Não é neccessário vivermos ao lado de alguém para nos sentirmos ligados a esse alguém mais do que a qualquer outra pessoa...

terça-feira, 1 de janeiro de 2019

Jano...

O mapa

Sempre senti a matemática como uma presença
Física; em relação a ela vejo-me
Como alguém que não consegue
Esquecer o pulso porque vestiu uma camisa demasiado
Apertada nas mangas.
Perdoem-me a imagem: como
Num bar de putas onde se vai beber uma cerveja
E provocar com a nossa indiferença o desejo
Interesseiro das mulheres, a matemática é isto: um
Mundo onde entro para me sentir excluído;
Para perceber, no fundo, que a linguagem, em relação
Aos números e aos seus cálculos, é um sistema,Ao mesmo tempo, milionário e pedinte. Escrever
Não é mais inteligente que resolver uma equação;
Porque optei por escrever? Não sei. Ou talvez saiba:
Entre a possibilidade de acertar muito, existente
Na matemática, e a possibilidade de errar muito,
Que existe na escrita (errar de errância, de caminhar
Mais ou menos sem meta) optei instintivamente
Pela segunda. Escrevo porque perdi o mapa.


é evidente que podemos explicar.
é evidente que podemos concluir.
é evidente que podemos curar.
é evidente que podemos abrir 1 consultório e dizer: PAGA!
é evidente que podemos psicanalisar.
é evidente que podemos ter componentes.
é evidente que podemos começar pelo início.
é evidente que podemos ter emoção e razão e céu em cima e terra por baixo.
é evidente que podemos comer e não dar por isso, defecar e não dar por isso,
fornicar e fecundar e não dar por isso.
é evidente que podemos Regressar.
é evidente que podemos enumerar e dar os nomes certos às coisas erradas.
é evidente que podemos acertar.
é evidente que podemos ter 1 corpo sem falhas excepto a Falha Grande que é
MORRER e as outras falhas pequenas que são a dor a doença e a velhice.
é evidente que podemos fixar, explicar, concluir, exemplificar, começar, abrir
1 consultório, curar, receber e pagar, estruturar, desenvolver, ter ideias claras
e ideias claras,
é evidente que podemos pensar, dançar e depois pensar ou então o contrário
é evidente, enfim, de novo, insisto, que podemos explicar,
mas é melhor não.


É evidente que é sempre melhor não explicar, muito melhor. Basta entender o que não foi explicado...

Os braços
Como viver? Não há outra pergunta séria.
Um velho com o braço direito partido
folheia o jornal com a mão esquerda.
Penso: assim seria mais fácil.
O corpo a decidir por nós.
Olho para mim: os dois braços intactos.
Que fazer?




Janeiro ...mês do frio. Em antítese com dezembro, janeiro é um mês sem datas, sem feriados, sem eventos oficiais obrigatórios...Exceto o dia de reis, pouco representativo, não há "dias de..."
É o único mês que, tal como jano, o deus que lhe dá o nome, tem duas faces: uma virada para o passado, outra para o futuro: ausência de presente... Talvez por isso a outra gente ou recorda o santo natal e os festejos da passagem de ano ou começa a pensar no carnaval...Poucos pensam neste mês, condenado pelos deuses. Inês de Castro foi morta, Camus desapareceu fisicamente neste mês, talvez por isso ele será sempre passado e futuro… 

Refúgios 2019

Sobre Maria Gabriela Llansol (1931-2008) disse Eduardo Lourenço que será, depois de Fernando Pessoa, "o próximo grande mito literário da literatura portuguesa": "Nunca será uma autora fácil e consensual. É uma espécie de fenómeno misterioso. Alguém vindo de uma outra espécie de planeta. Quem a encontra é difícil não ficar fascinado por essa escrita."

De qualquer modo, a presença da proximidade da morte é um carvão aceso, e eu crio-me sentada à beira da minha origem, situação que se repete em vários períodos do ano, quando eu venho aqui; há um mistério relativo ao meu nascimento que me fecha — esta abertura natural para o paraíso pertence-me? estes móveis e objectos de adorno, transfigurados,consumidas as suas carnes,
prata,
madeiras,
ou cristal,


A escrita como busca de verdade" obriga, então, a um repensar das categorias da narratividade tendente a devolver ao leitor a pureza da língua e a fixar apenas os momentos de revelação da verdadeira vida, porque, segundo a autora, "Numa história, há (ou não há) um momento de desvendamento a que se chama Sublime. Normalmente breve. Como penso que um leitor treinado já conhece todos os enredos, quase só esse momento interessa à escrita. Esse momento, tornado longa sequência sustentadora da vibração explícita, é o nome de escrita. É a face escondida - mas que importa desvendar - das técnicas narrativas já tradicionais." ( p. 48).

Analepse: em 2018, foi mês de reler Jerusalém e de ouvir Alt-j...

Quando está frio no tempo do frio, para mim é como se estivesse agradável,
Porque para o meu ser adequado à existência das coisas
O natural é o agradável só por ser natural.
Aceito as dificuldades da vida porque são o destino,
Como aceito o frio excessivo no alto do Inverno—
Calmamente, sem me queixar, como quem meramente aceita,
E encontra uma alegria no facto de aceitar—
No facto sublimemente científico e difícil de aceitar o natural inevitável.
Que são para mim as doenças que tenho e o mal que me acontece
Senão o Inverno da minha pessoa e da minha vida?


O Inverno irregular, cujas leis de aparecimento desconheço,
Mas que existe para mim em virtude da mesma fatalidade sublime,
Da mesma inevitável exterioridade a mim,
Que o calor da terra no alto do Verão
E o frio da terra no cimo do Inverno.
Aceito por personalidade.
Nasci sujeito como os outros a erros e a defeitos,
Mas nunca ao erro de querer compreender demais,
Nunca ao erro de querer compreender só com a inteligência.
Nunca ao defeito de exigir do Mundo
Que fosse qualquer coisa que não fosse o Mundo.




I think you better close it and let me guide you into the purple rain purple rain, purple rain I only want to see you, only want to see you in the purple rain

Cai chuva do céu cinzento
Que não tem razão de ser.
Até o meu pensamento
Tem chuva nele a escorrer.



Tenho uma grande tristeza
Acrescentada à que sinto.
Quero dizer-ma mas pesa
O quanto comigo minto.

Porque verdadeiramente
Não sei se estou triste ou não,
E a chuva cai levemente
(Porque Verlaine consente)
Dentro do meu coração.



Jano - o deus condenado a uma ausência de presente...

Habla un busto de Jano
Sin honrar la memoria del Bifronte,
que las preside. Abarco el horizonte
de inciertos mates y de tierra cierta.



Nadie abriere o cerrare alguna puerta
Mis dos caras divisan el pasado
y el porvenir. Los veo y son iguales
los hierros, las discordias y los males
que Alguien pudo borrar y no ha borrado
ni borrará. Me faltan las dos manos
y soy de piedra inmóvil. No podría
precisar si contemplo una porfía
futura o la de ayeres hoy lejanos.
Veo mi ruina: la columna trunca
y las caras, que no se verán nunca.


Jano, nos portões da eterna presença / Com as duas cabeças pode compreender / O ser que continuamente se torna não-ser / O não-ser que continuamente se torna ser / A sucessiva luta da felicidade com a infelicidade.

Saudade da primeira vez que li...

“São livros pretos, no sentido de uma certa dureza, e de um certo desencanto. Com certos livros tento interferir na existência das pessoas ou pelo menos na forma de se pensar sobre certos acontecimentos. O meu instinto primário foi escrever romances para tentar perceber o mal, como é que ele surge, em que situações se manifesta. Sou um escritor pós-Auschwitz. Tenho consciência do que aconteceu.”

" Não gosto de explicar os meus livros..."

Theodor receava aquilo que mais o excitava: como se veria a si próprio se chegasse ao ponto de perceber o raciocínio ... que está na base de um campo de concentração, do extermínio de milhares de pessoas ...? Receava a sua invulgar capacidade de perceber os loucos. Essa capacidade para entrar nas cabeças estranhas, como alguns colegas diziam. Era dessa empatia com o não normal que poderia nascer algo de inaceitável. " Se chegar a perceber a parte louca da História, se conseguir entrar na cabeça do Horror e com esta conseguir dialogar, o que farei a seguir?”

O som de uma chave na fechadura, alguém abre ligeiramente a porta, muito pouco: ela vê uns olhos a espreitar na sua direcção, com medo, cautelosos. Mylia sente que não suporta mais, sente-se a desmaiar, a mão direita tensa segura na arma. De dentro da igreja os olhos não a largam, mas ainda não abriram a porta. Mylia tem de falar para quem está do outro lado da porta da igreja. Ganha forças. Procura dentro do corpo a voz mais firme:
- " Matei um homem - diz Mylia. - Deixam-me entrar?"


“Inocente face às acusações de que sou alvo”. O seu advogado explicou o posicionamento do seu cliente: “Eichamnn sente-se culpado perante Deus, não perante a Lei”. Hannah Arendt refere que a defesa argumentou que Eichamnn era inocente perante o sistema legal nazi, não tendo cometido nenhum crime, mas sim “actos de Estado”,sobre os quais nenhum outro Estado deveria ter jurisdição, e aos quais era obrigação de Eichmann obedecer. Contudo, a atitude de Eichmann face à acusação foi diferente da esboçada pelo seu advogado, argumentando o réu que «no que concerne à morte dos judeus, eu não tive nada a ver com isso. Eu nunca matei um judeu, ou um não-judeu, eu nunca matei nenhum ser humano. Eu nunca dei ordens para matarem judeus ou não-judeus; eu pura e simplesmente não o fiz”. Mais tarde, Eichmann disse que, no que diz respeito ao extermínio dos judeus, “aconteceu… Eu não o fiz uma única vez”. Hannah Arendt sublinha que o acusado não deixou «nenhuma dúvida que teria assassinado o seu próprio pai caso tivesse recebido uma ordem nesse sentido». Eichmann repetiu vezes sem conta que só poderia ser acusado de ter “auxiliado” no processo de aniquilação dos judeus, classificado por si como “um dos maiores crimes na história da Humanidade”. A acusação tentou provar que Eichmann tinha de facto morto com as suas próprias mãos um rapaz judeu na Hungria, enquanto a defesa ignorou o posicionamento do seu cliente. Arendt continua a sua descrição do julgamento, dizendo que Eichmann foi um cidadão cumpridor da lei, das ordens de Hitler, que tinham “a força da Lei”, as quais ele teria executado com toda a eficiência que lhe era pedida. Escreve Hannah:«Aqueles que hoje dizem a Eichmann que ele poderia ter actuado de forma diferente simplesmente não sabem, ou esqueceram-se, como as coisas funcionavam. Ele não quis ser um dos que agora dizem que „sempre estiveram contra o que se passou‟, quando na realidade eles estavam ansiosos por cumprir aquilo que lhes ordenavam». O que Eichmann fez está feito e ele não o pretendeu negar, propôs até “enforcar-me em público como um aviso para todos os anti-semitas do mundo”. Com isto, acrescenta Hannah Arendt, ele não pretendeu dizer que se arrependia do que fez, aliás afirmou: “O arrependimento é para as crianças”. Durante o relato do julgamento torna-se evidente a sua linha de argumentação: trata-se de um homem banal, trata-se de actos banais, trata-se da banalidade do mal, trata-se de obedecer ao Estado, trata-se de ser humano sem questionar, trata - se de manter um status social.
No decorrer do julgamento, Eichmann deixou claro que uma situação que o incomodava relacionava-se com o facto de o regime alemão ter designado indivíduos para cumprir tarefas na área das políticas de implementação de deportação e emigração dos judeus, “nas quais eu me considero um especialista”, indivíduos esses sem experiência alguma, “eu estava farto disso”. Consequentemente, como bom funcionário do Estado, na luta pela manutenção do seu posto de trabalho, afirmou que “eu decidi que devia fazer algo para que a matéria da emigração ficasse sob minha alçada exclusiva”. Um funcionário do Estado lutando pelo seu posto. A acusação declarou que Eichmann agiu com consciência, acusação que o réu não refutou. Contudo, Eichmann afirmou que não era um degenerado sem coração e, no que concerne à sua consciência, Hannah relata que «ele lembra-se muitíssimo bem que teria má consciência caso não tivesse feito o que lhe mandaram – enviar milhões de homens, mulheres e crianças para a morte com grande zelo e de forma meticulosa». Vários psiquiatras avaliaram-no concluindo que ele era “normal”, tendo um deles dito que ele “é mais normal, em qualquer escala, do que eu após o ter examinado”. Outro psiquiatra concluiu que a sua atitude face à sua família, à sua mãe e pai, irmãos e amigos “era não apenas normal mas bastante adequada”. À luz destas avaliações, Eichmann não poderia ter alegado insanidade mental ou legal,tratava-se de um homem com ideias lúcidas e com um espírito positivo. Além disso, não tinha um ódio particular aos judeus. A justiça viu-se face a um enorme dilema: Eichmann, como todas as “pessoas normais” deveria ter consciência da natureza criminosa dos seus actos. Mas, como o argumenta Hannah Arendt, Eichmann era “normal”, não era “uma excepção no regime nazi”, é que no regime de Hitler apenas as “excepções” poderiam ser consideradas como o “normal” que a justiça pretendia defender. Eichmann era um homem do seu tempo.
Hannah Arendt, que foi acusada de estar «errada em demonstrar interesse pelo tipo de pessoa que foi Eichmann», pela sua abordagem à personalidade de um homem que não foi importante na estrutura política do Terceiro Reich ou no delinear das políticas de Hitler, e que a autora classificou como sendo um ser humano com “falta de imaginação”. Arendt levanta inúmeras questões, aponta caminhos de análise social e política no que diz respeito à essência dos regimes totalitários, à utilização da propaganda e do terror, e à própria natureza do sistema burocrático em que se apoiam, perguntando-se se a sua função é desumanizar os homens. Este julgamento transcende o acusado, remete-nos para a história moderna, para a natureza do homem e dos seus atos,sem esquecer que «sob condições de terror a maioria das pessoas obedece, mas algumas não».



Considera-se, muitas vezes, a obra de um criador como uma sequência de testemunhos isolados. Confunde-se então artista e literato. Um pensamento profundo está em perpétua formação, esgota a experiência de uma vida e nela se modela. Do mesmo modo, a criação única de um homem fortifica-se nos seus rostos sucessivos e múltiplos, que são as obras. Umas completam as outras, corrigem-nas ou alcançam-nas, contradizem-nas também. Se alguma coisa termina a criação, não é o grito vitorioso e ilusório do artista, ofuscado: «Disse tudo», mas a morte do criador que fecha a sua experiência e o livro do seu génio.


Não amaremos talvez insuficientemente a vida? Já notou que só a morte desperta os nossos sentimentos? Como amamos os amigos que acabam de deixar-nos, não acha?! Como admiramos os nossos mestres que já não falam, com a boca cheia de terra! A homenagem surge, então, muito naturalmente, essa mesma homenagem que talvez eles tivessem esperado de nós, durante a vida inteira. Mas sabe porque nós somos sempre mais justos e mais generosos para com os mortos? A razão é simples! Para com eles, já não há deveres.

É assim o homem, caro senhor, tem duas faces. Não pode amar sem se amar. Observe os seus vizinhos, se calha de haver um falecimento no prédio. Dormiam na sua vida monótona e eis que, por exemplo, morre o porteiro. Despertam imediatamente, atarefam-se, enchem-se de compaixão. Um morto no prelo, e o espectáculo começa, finalmente. Têm necessidade de tragédia, que é que o senhor quer?, é a sua pequena transcendência, é o seu aperitivo.
É preciso que algo aconteça, eis a explicação da maior parte dos compromissos humanos. É preciso que algo aconteça, mesmo a servidão sem amor, mesmo a guerra ou a morte. Vivam, pois, os enterros!




Gosto mais dos homens que tomam um partido do que das literaturas que tomam partido. Coragem na vida e talento nas obras já não é nada mau. E, depois, o escritor só é comprometido quando quer. O seu mérito é o movimento. E se isso deve passar a ser uma lei, um ofício ou um terror, onde está então o mérito?(...) Sim, eu desejá-los-ia menos comprometidos nas suas obras e um pouco mais na sua vida de todos os dias.


"Une personnalité littéraire a de vrais ennemis pendant sa vie et presque autant de faux amis après sa mort. " a la recherche d'albert camus, olivier todd, sans gommer ni grossir les qualités ou les défauts de l'homme et de l'écrivain, montre comment l'auteur de l'etranger et de l'homme révolté tenta d'accorder sa vie, son oeuvre et sa morale. Camus fut algérien et algérois, journaliste, essayiste, romancier, dramaturge, metteur en scène, acteur... avec cette biographie, sa personnalité apparaît dans toute sa complexité, grâce à de nombreux inédits dans sa correspondance. Camus était charmeur et ombrageux, sincère et théâtral, plein de doutes et arrogant. il voulait être aimé et y parvint souvent. il cherchait à être compris et n'y parvint pas toujours. il parla trop de bonheur pour être heureux et serein. faut-il pour autant l'imaginer malheureux comme sisyphe ? Camus reste inclassable, solitaire, solidaire, il ne voulait être ni victime ni bourreau. pour lui, la souffrance n'avait pas de frontière. Déchiré par la guerre d'algérie, camus vécut aussi les amères victoires et les fécondes défaites de la justice et de la violence.


I really love you and I mean you...


January come and took my heart away... / Simple man Stan can’t stand up on the beautiful...



Não cuidem que me posso apartar donde
Estou todo, onde vivo, que primeiro
A terra subirá onde os céus andam,
O mar abrasará os céus e terra,
O fogo será frio, o sol escuro,
A Lua dará dia, e todo mundo
Andará ao contrário de sua ordem,
Que eu, ó Castro, te deixe, ou nisso cuide.
Dei-te alma, dei-te fé, guardá-la-ei firme.
Confio isto de ti, não mo descubras.



Vinte e cinco de janeiro - Na " bolha" que me protege da realidade, é dia de refletir sobre a linguagem...

Vós, diz Cristo, Senhor nosso, falando com os pregadores, sois o sal da terra: e chama-lhes sal da terra, porque quer que façam na terra o que faz o sal. O efeito do sal é impedir a corrupção; mas quando a terra se vê tão corrupta como está a nossa, havendo tantos nela que têm ofício de sal, qual será, ou qual pode ser a causa desta corrupção? Ou é porque o sal não salga, ou porque a terra se não deixa salgar. Ou é porque o sal não salga, e os pregadores não pregam a verdadeira doutrina; ou porque a terra se não deixa salgar e os ouvintes, sendo verdadeira a doutrina que lhes dão, a não querem receber. Ou é porque o sal não salga, e os pregadores dizem uma cousa e fazem outra; ou porque a terra se não deixa salgar, e os ouvintes querem antes imitar o que eles fazem, que fazer o que dizem. Ou é porque o sal não salga, e os pregadores se pregam a si e não a Cristo; ou porque a terra se não deixa salgar, e os ouvintes, em vez de servir a Cristo, servem a seus apetites. Não é tudo isto verdade? Ainda mal!


Suposto, pois, que ou o sal não salgue ou a terra se não deixe salgar; que se há-de fazer a este sal e que se há-de fazer a esta terra? O que se há-de fazer ao sal que não salga, Cristo o disse logo: Quod si sal evanuerit, in quo salietur? Ad nihilum valet ultra, nisi ut mittatur foras et conculcetur ab hominibus. «Se o sal perder a substância e a virtude, e o pregador faltar à doutrina e ao exemplo, o que se lhe há-de fazer, é lançá-lo fora como inútil para que seja pisado de todos.» Quem se atrevera a dizer tal cousa, se o mesmo Cristo a não pronunciara? Assim como não há quem seja mais digno de reverência e de ser posto sobre a cabeça que o pregador que ensina e faz o que deve, assim é merecedor de todo o desprezo e de ser metido debaixo dos pés, o que com a palavra ou com a vida prega o contrário.
Isto é o que se deve fazer ao sal que não salga...


E à terra que se não deixa salgar, que se lhe há-de fazer? Este ponto não resolveu Cristo, Senhor nosso, no Evangelho; mas temos sobre ele a resolução do nosso grande português Santo António, que hoje celebramos, e a mais galharda e gloriosa resolução que nenhum santo tomou.
Pregava Santo António em Itália na cidade de Arimino, contra os hereges, que nela eram muitos; e como erros de entendimento são dificultosos de arrancar, não só não fazia fruto o santo, mas chegou o povo a se levantar contra ele e faltou pouco para que lhe não tirassem a vida. Que faria neste caso o ânimo generoso do grande António? Sacudiria o pó dos sapatos, como Cristo aconselha em outro lugar? Mas António com os pés descalços não podia fazer esta protestação; e uns pés a que se não pegou nada da terra não tinham que sacudir. Que faria logo? Retirar-se-ia? Calar-se-ia? Dissimularia? Daria tempo ao tempo? Isso ensinaria porventura a prudência ou a covardia humana; mas o zelo da glória divina, que ardia naquele peito, não se rendeu a semelhantes partidos. Pois que fez? Mudou somente o púlpito e o auditório, mas não desistiu da doutrina. Deixa as praças, vai-se às praias; deixa a terra, vai-se ao mar, e começa a dizer a altas vozes: Já que me não querem ouvir os homens, ouçam-me os peixes. Oh maravilhas do Altíssimo! Oh poderes do que criou o mar e a terra! Começam a ferver as ondas, começam a concorrer os peixes, os grandes, os maiores, os pequenos, e postos todos por sua ordem com as cabeças de fora da água, António pregava e eles ouviam.
Se a Igreja quer que preguemos de Santo António sobre o Evangelho, dê-nos outro. Vos estis sal terrae: É muito bom texto para os outros santos doutores; mas para Santo António vem-lhe muito curto. Os outros santos doutores da Igreja foram sal da terra; Santo António foi sal da terra e foi sal do mar. Este é o assunto que eu tinha para tomar hoje. Mas há muitos dias que tenho metido no pensamento que, nas festas dos santos, é melhor pregar como eles, que pregar deles. Quanto mais que o são da minha doutrina, qualquer que ele seja tem tido nesta terra uma fortuna tão parecida à de Santo António em Arimino, que é força segui-la em tudo. Muitas vezes vos tenho pregado nesta igreja, e noutras, de manhã e de tarde, de dia e de noite, sempre com doutrina muito clara, muito sólida, muito verdadeira, e a que mais necessária e importante é a esta terra para emenda e reforma dos vícios que a corrompem. O fruto que tenho colhido desta doutrina, e se a terra tem tomado o sal, ou se tem tomado dele, vós o sabeis e eu por vós o sinto.
Isto suposto, quero hoje, à imitação de Santo António, voltar-me da terra ao mar, e já que os homens se não aproveitam, pregar aos peixes. O mar está tão perto que bem me ouvirão. Os demais podem deixar o sermão, pois não é para eles. Maria, quer dizer, Domina maris: «Senhora do mar»; e posto que o assunto seja tão desusado, espero que me não falte com a costumada graça. Ave Maria


"A minha vida tem andado cheia deste pesadelo. Esqueço-me de mim, mas não me esqueço da selva. Dominou-me com o seu mistério e com a sua soberania; não a evoco sem um estremecimento de pavor. […] cá a tenho a romper o optimismo com que procuro cobrir, para o menor sofrimento, o pessimismo e a morbidez que ela me deu." Ferreira de Castro

"Estilo sinuoso e sugestivo, como uma vegetação exuberante de termos estranhos e maravilhosos. Livro inesquecível." Albert Camus

Como podia ser, como podia ser que as vítimas saboreassem também o papel de algoz? De que sórdida matéria era formada a alma de alguns homens, que gozavam em castigar a desgraça alheia, mesmo quando era igual à deles?


ANTÓNIO VIEIRA

O céu estrela o azul e tem grandeza.
Este, que teve a fama e a glória tem,
Imperador da língua portuguesa,
Foi-nos um céu também.
.

É curioso que, sendo escassa a minha capacidade de entusiasmo, ela é naturalmente mais solicitada pelos que se me opõem em temperamento do que pelos que são da minha espécie espiritual. A ninguém admiro, na literatura, mais que aos clássicos, que são a quem menos me assemelho. A ter que escolher, para leitura única, entre Chateaubriand e Vieira, escolheria Vieira sem necessidade de meditar.

Gosto de dizer. Direi melhor: gosto de palavrar. As palavras são para mim corpos tocáveis, sereias visíveis, sensualidades incorporadas. Talvez porque a sensualidade real não tem para mim interesse de nenhuma espécie - nem sequer mental ou de sonho -, transmudou-se-me o desejo para aquilo que em mim cria ritmos verbais, ou os escuta de outros. Estremeço se dizem bem. Tal página de Fialho, tal página de Chateaubriand, fazem formigar toda a minha vida em todas as veias, fazem-me raivar tremulamente quieto de um prazer inatingível que estou tendo. Tal página, até, de Vieira, na sua fria perfeição de engenharia sintáctica, me faz tremer como um ramo ao vento, num delírio passivo de coisa movida.
Como todos os grandes apaixonados, gosto da delícia da perda de mim, em que o gozo da entrega se sofre inteiramente. E, assim, muitas vezes, escrevo sem querer pensar, num devaneio externo, deixando que as palavras me façam festas, criança menina ao colo delas. São frases sem sentido, decorrendo mórbidas, numa fluidez de água sentida, esquecer-se de ribeiro em que as ondas se misturam e indefinem, tornando-se sempre outras, sucedendo a si mesmas. Assim as ideias, as imagens, trémulas de expressão, passam por mim em cortejos sonoros de sedas esbatidas, onde um luar de ideia bruxuleia, malhado e confuso.
Não choro por nada que a vida traga ou leve. Há porém páginas de prosa que me têm feito chorar. Lembro-me, como do que estou vendo, da noite em que, ainda criança, li pela primeira vez numa selecta o passo célebre de Vieira sobre o rei Salomão. «Fabricou Salomão um palácio...» E fui lendo, até ao fim, trémulo, confuso: depois rompi em lágrimas, felizes, como nenhuma felicidade real me fará chorar, como nenhuma tristeza da vida me fará imitar. Aquele movimento hierático da nossa clara língua majestosa, aquele exprimir das ideias nas palavras inevitáveis, correr de água porque há declive, aquele assombro vocálico em que os sons são cores ideais - tudo isso me toldou de instinto como uma grande emoção política. E, disse, chorei: hoje, relembrando, ainda choro. Não é - não - a saudade da infância de que não tenho saudades: é a saudade da emoção daquele momento, a mágoa de não poder já ler pela primeira vez aquela grande certeza sinfónica
.


Vieira escreve como um homem divinizado.

António Vieira é de facto o maior prosador — direi mais, é o maior artista — da língua portuguesa. É-o por isso porque o foi, e não porque se chamasse António. O comando da lingua-mãe não vem por varonia de nomes próprios.

O bafio o safio a enguia o atum
um para todos todos para um
mas nenhum por todos
e todos por nenhum.
Ai a raiva Ai a raiva
de pescar em jejum.

Amadores da fala das marés
cicatrizes da faina amadizes da gala
duma cauda de renda duma onda de espuma
este mar aprendiz da vossa força
aprende a ser o vosso
ou de coisa nenhuma.



O Dr. Ricardo Reis nasceu dentro da minha alma no dia 29 de Janeiro de 1914, pelas 11 horas da noite. Eu estivera ouvindo no dia anterior uma discussão extensa sobre os excessos, especialmente de realização, da arte moderna. Segundo o meu processo de sentir as coisas sem as sentir, fui-me deixando ir na onda dessa reacção momentânea. Quando reparei em que estava pensando, vi que tinha erguido uma teoria neoclássica, e que a ia desenvolvendo. Achei-a bela e calculei interessante se a desenvolvesse segundo princípios que não adopto nem aceito. Ocorreu-me a ideia de a tornar um neoclassicismo «científico» [...] reagir contra duas correntes — tanto contra o romantismo moderno, como contra o neoclassicismo à Maurras. [...]

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