A máquina apoderou-se, portanto, da memória – e a fotografia introduziu uma tristeza técnica que antes não existia.
A tristeza a que um quadro tem acesso não é da mesma dimensão da tristeza a que se acede por via de uma fotografia.
Na imagem captada pela técnica, há a sensação de um momento que se perde para sempre e que na pintura, no desenho ou na escrita não existe da mesma maneira.
O realismo introduzido pela imagem técnica coloca o coração do memorioso em evidentes apuros.
Nunca somos nós na fotografia: na fotografia somos um familiar defunto de nós próprios. Só não choramos sempre que vemos uma fotografia nossa por distracção ou pudor. Agora e na hora da nossa morte.
A conservação da identidade interior, apesar da mutação exterior, inerente ao conceito de metamorfose em ovídio e em kafka, é um reflexo da teoria da metempsicose, defendida por Pitágoras.
Já conheço os passos dessa estrada Sei que não vai dar em nada...
Gramsci deixou escrito o retrato fiel daquilo que eu sou: «Pessimista pela razão, optimista pela vontade». Isso diz tudo.José Saramago
Retrato Ardente: Entre os teus lábios é que a loucura acode desce à garganta, invade a água
Retrato de Sophia
Senhora dona águia água égua
inglesa num jardim de potros gregos
mordiscando beleza rega cega
do regador de inês em seus sossegos.
De muitos anos colhes o magro fruito
que depressa transformas em compota
receita tão bem feita que de há muito
nos açucara o travo da chacota.
Porém quando por vezes és de pedra
não mármore mas árvore mas dura
do fundo do teu mar levanta-se a cratera
da nossa lusitana sepultura
RETRATO DE UMA PRINCESA DESCONHECIDA
Para que ela tivesse um pescoço tão fino
Para que os seus pulsos tivessem um quebrar de caule
Para que os seus olhos fossem tão frontais e limpos
Para que a sua espinha fosse tão direita
E ela usasse a cabeça tão erguida
Com uma tão simples claridade sobre a testa
Foram necessárias sucessivas gerações de escravos
De corpo dobrado e grossas mãos pacientes
Servindo sucessivas gerações de príncipes
Ainda um pouco toscos e grosseiros
Ávidos cruéis e fraudulentos
Foi um imenso desperdiçar de gente
Para que ela fosse aquela perfeição
Solitária exilada sem destino
Retrato de Mulher Triste
Vestiu-se para um baile que não há.
Sentou-se com suas últimas jóias.
E olha para o lado, imóvel.
Está vendo os salões que se acabaram,
embala-se em valsas que não dançou,
levemente sorri para um homem.
O homem que não existiu.
FAUSTO:
Agradeço-vos; traçastes-me retrato
Tão completo de bruxo
Que começo a ter medo de mim mesmo.
— Canta, oh Frederico
Aquela canção doida de beber
Chamada «O Bebedor» ou coisa assim.
Agi sempre para dentro... Nunca toquei na vida... Sempre que esboçava um gesto, acabava-o em sonho, heroicamente... Uma espada pesa mais que a ideia de uma espada... Comandei grandes exércitos — venci grandes batalhas, gozei grandes derrotas — tudo dentro de mim...Gostava de passear sozinho pelas alamedas e pelos grandes corredores e de comandar as árvores e desafiar os retratos das paredes... No grande corredor sombrio que há ao fundo do palácio passeei com a minha noiva muitas vezes... Eu nunca tive noiva real... Nunca soube como se amava... Apenas soube como se sonhava amar... Se eu gostava de usar anéis de dama nos meus dedos é que às vezes queria julgar que as minhas mãos eram de princesa e que eu era, pelo menos no gesto das minhas mãos, aquela que eu amava...
Um dia foram-me encontrar vestido de rainha... Eu estava sonhando que eu era a minha esposa régia... Gostava de ver a minha face reflectida porque podia sonhar que era a face de outra criatura — porque era de formas femininas, que era de minha amada que era a minha face reflectida... Quantas vezes a minha boca, tocou na minha boca nesse espelho!... Quantas vezes apertei uma das mãos com a outra, quantas adorei meus cabelos com a minha mão alheada para que parecesse dela ao tocar-me. Não sou eu que te estou dizendo isto... É o resto de mim que está falando.
Bem sei que é fácil formar uma teoria da fluidez das coisas e das almas, compreender que somos um decurso interior de vida, imaginar, que o que somos é uma quantidade grande, que passamos por nós, que fomos muitos... Mas aqui há outra coisa que não o mero decurso da personalidade entre as próprias margens: há o outro absoluto, um ser alheio que foi meu. Que perdesse, com o acréscimo da idade, a imaginação, a emoção, um tipo de inteligência, um modo de sentimento tudo isso, fazendo-me pena, me não faria pasmo. Mas a que assisto quando me leio como a um estranho? A que beira estou se me vejo no fundo?
Outras vezes encontro trechos que me não lembro de ter escrito — o que é pouco para pasmar —, mas que nem me lembro de poder ter escrito — o que me apavora. Certas frases são de outra mentalidade. É como se encontrasse um retrato antigo, sem dúvida meu, com uma estatura diferente, com umas feições incógnitas — mas indiscutivelmente meu, pavorosamente eu.
Se faço estas análises de um modo lasso e casual, não é senão porque assim retrato mais o que sou. De uma análise propriamente profunda não só sou incapaz, mas sou também artista de mais para a pensar em fazer; pensar em faze-la seria pensar em dar de mim a idea de que sou uma criatura disciplinada e coerente, quando o que sou é um analisador disperso e subtilmente desconcentrado. A minha arte é ser eu. Eu sou muitos. Mas, com o ser muitos, sou muitos em fluidez e imprecisão.
Muitos crêem coisas falsas ou incompletas de mim; e eu, falando com eles, faço tudo por deixa-los continuar nessa crença. Perante um que me julgue um mero crítico, eu só falo crítica. A princípio fazia isto espontaneamente. Depois decidi que isto era porque, no meu perpétuo anseio de não levantar atritos, (…)
[Retrato de Frederick Wyatt]
Of dreamers no one was a greater dreamer than he. He was eternally incompetent to take stock of reality. His attitude before things was always a false and uneasy one, always oscillating from one extreme point of view or manner of action to the other extreme. This concerned just as much and as deeply his fundamental views - if we can speak of the fundamental views of one who had none - as his most trifling actions. It is as possible to consider him an idealist (I use the word in its metaphysical sense) as a materialist: he would be the first to wonder which he was. His political opinions were in a perpetual fluctuation between an excessive anarchism and the arrogance of a through aristocrat. In his life - his unreal life as he would have called it sometimes - he was sure to be either of a childish and morbid shyness or of an impetuous and clumsy boldness. The worst was that he was not even consistent in the line of action he chose: sometimes he would shrink into a sudden and incongruous shyness in the midest of a recklessly insane act, at others he would suddenly break out from shyness in the strangest and insanest manner.
My great and sincere friendship for him cannot hinder me from being still rather amused on recalling the way several Portuguese poor people - the washerwoman, for instance - used, with a curious and evidently spontaneous community of expression, to refer to him when speaking to me: O seu amigo, coitadinho! (Your friend, poor gentleman!). They would very possibly have been perplexed to explain what the coitadinho (so untranslatably Portuguese!) meant there. But they all felt, in their characteristic warm-heartedness, that there was some inexplicable thing to be pitied about him. Now that I remember this, I cannot omit a still cuter expression that a neighbouring barber once used and which was reported to him and to me and stung him greatly: It is a pity he is not mad; it would have been better like that. It is perhaps the best casual wordportrait of him, as I easily perceived, because it hit his character off so justly and yet showed how terrible evident even to a […] casual and (...) observers was suffering he thought he hid in himself from all eyes.
Aquela loura de preto
Com uma flor branca ao peito,
É o retrato completo
De como alguém é perfeito.
O capilé é barato
E é fresco quando há calor.
Vou sonhar o teu retrato
Já que não tenho melhor.
Inúmero rio sem água — só gente e coisas,
Pavorosamente sem água!
Soam tambores longínquos no meu ouvido,
E eu não sei se vejo o rio se ouço os tambores,
Como se não pudesse ouvir e ver ao mesmo tempo!
Helahoho! helahoho!(...)
Do quarto da velha arranquei o retrato do filho e rasguei-o.
Ela, cheia de medo, chorou e não fez nada...
Senti de repente que ela era minha mãe e pela espinha abaixo passou-me o sopro de Deus.
Quebrei a máquina de costura da viúva pobre.
Ela chorava a um canto sem pensar na máquina de costura.
Haverá outro mundo onde eu tenha que ter uma filha que enviuve e a quem aconteça isto?
Se por um lado me causava prazer contemplar a bela cabeça do marido, com as suas feições de alemão antigo, os meus olhos gostavam gualmente de fitar a aparência dela,tão perfeitamente agradável, tão peculiarmente decidida, tão claramente proporcionada.(...) Tudo isto era agradávelde contemplar, mas o que havia nessa mulher de mais lindo era a voz,um meio-soprano de timbre cálido,e,quanto à dicção, a denotar um ligeiro acento turíngio, que ra extremamente simpático. Não digo " insinuante" , porque esse adjetivo implicaria algo de propositado ou de consciente. O encanto dessa voz tinha origem numa musicalidade intrínseca, que de resto permanecia latente, já que Elsbeth não se interessava pela música e, por assim dizer, não acreditava nela.(...)
Em todo o caso, nunca ouvi ninguém falar de modo mais encantador, embora aquilo que ela dizia fosse sempre sumamente singelo e prosaico; e, segundo a minha opinião, é significativo que esse som melodioso, puramente natural, determinado por um bom gosto instintivo, tenha alcançado maternalmente os ouvidos de Adrian desde a primeira hora da sua existência.
Kretzschmar, nessa altura ainda jovem, tinha, quando muito , entre vinte e cinco e trinta anos. (...) De aparência nada conspícua,atarracado,crânio redondo, bigode aparado e olhos castanhos, que gostavam de rir e cuja expressão oscilava entre o pensativo e o coruscante, Kretzschmar podiater sido uma verdadeira bênção intelectual e cultural de Kaisersaschern, se tal vida houvesse existido.
Beissel nunca recebera laivos de instrução.Mas o próprio iluminado aprendera,como autodidacta,a ler e a escrever, e como o seu espírito transbordava de místicos sentimentos e ideias, ocorria que desempenhava a sua função de chefia sobretudo como poeta e escritor, destinado a alimentar as almas dos seus fiéis.
Mais tarde, Adrian encontrou um companheiro muito mais a essas suas expansões, na pessoa do anglicista e escritor Rudiger Schild-Knapp, com o qual travou conhecimento em Leipzig; motivo por que sempre experimentei uma espécie de ciúmes em relação a esse homem.
Cumpre, porém, que eu evoque em poucas palavras ainda outro vulto de entre os nossos professores, que, por motivo da sua perturbadora ambiguidade, se me gravou mais profundamente na memória do que todos os demais. Trata-se do assistente Eberhard Schleppfuss,que, nessa época , leccionava dois semestres...
Um retrato pintado com a alma é um retrato, não do modelo mas do artista.
Os jovens de hoje pensam que o dinheiro é tudo.
– É verdade – concordou lorde Henry, ajeitando a lapela do casaco. – E, quando envelhecem, passsam a ter a certeza.
Os que amam só uma vez na vida é que são superficiais. O que eles consideram lealdade e fidelidade é, a meu ver, letargia do hábito ou falta de imaginação. A fidelidade está para a vida emotiva como a coerência está para a vida intelectual: uma mera confissão de insucessos. (...) O apaixonado começa por se iludir a si próprio e acaba a enganar os outros. Eis aquilo a que o mundo chama um romance.
Os poetas medíocres são encantadores. Quanto piores os versos, tanto mais pitoresco é o poeta. O simpleS facto de ter publicado um livro de sonetos de segunda ordem torna um homem absolutamente irresistível.
Foi muita bondade de Fleming perguntar. Ele quis chorar. Apoiou os cotovelos na mesa e fechou e abriu a concha das orelhas. Ouvia o barulho do refeitório toda vez que abria as conchas das orelhas. Era um rugido como o de um combóio noturno. E quando fechava as conchas o rugido era abafado como um combóio ao entrar no túnel. Naquela noite em Dalkey o combóio tinha rugido da mesma forma e então, quando entrou no túnel, o rugido cessou. Stephen fechou os olhos e o combóio continuou a avançar , rugindo e depois parou; rugindo outra vez, parou. Era bom ouvi-lo rugir e parar e depois rugir outra vez na saída do túnel e depois parar.
Vou dizer -te o que farei e o que não farei. Não servirei àquilo em que não acredito mais, chame-se isso o meu lar, a minha pátria, ou a minha igreja; e vou tentar exprimir-me por algum modo de vida ou de arte tão livremente quanto possa, e de modo tão completo quanto possa, empregando para a minha defesa apenas as armas que eu me permito usar: silêncio, exílio e subtileza.
Fechou os olhos, abandonando-se a ela, de corpo e alma, sem consciência de outra coisa que não fosse a pressão tenebrosa dos seus lábios que se entreabriam suavemente. A sua pressão exercia-se tanto sobre o seu cérebro como sobre os seus lábios, como se fossem o veículo de um vago discurso; e, entre eles, sentiu uma pressão desconhecida e tímida, mais tenebrosa que o enlanguescimento do pecado, mais suave do que um som ou um perfume.
Nunca dylan thomas, que tanto amou as palavras, imaginou que iria dar o nome e inspirar um nobel da literatura ... é " chato" que tantos saibam aquilo que o próprio não tem direito de saber....
In my craft or sullen art
Exercised in the still night
When only the moon rages
And the lovers lie abed
With all their griefs in their arms,
I labour by singing light
Not for ambition or bread
Or the strut and trade of charms
On the ivory stages
But for the common wages
Of their most secret heart
...O meu processo criativo consiste numa ininterrupta construção e destruição de imagens que saem do núcleo central que é, ao mesmo tempo, destruidor e construtivo...(...) Para mim, o "impulso" poético ou a "inspiração" é apenas a súbita, e geralmente física, chegada da energia para a perícia e o senso estrutural do artesão.(...) Poesia é aquilo que me faz rir, chorar ou uivar, aquilo que me arrepia as unhas do dedo do pé, o que me leva a desejar fazer isso, ou aquilo, ou nada. (...) Tudo o que importa é o eterno movimento que há por trás da poesia, a vasta corrente subterrânea da dor, da loucura, da pretensão, da exaltação ou da ignorância humanas, por mais sublime que seja a intenção do poeta.
Estou num dia em que me pesa, como uma entrada no cárcere, a monotonia de tudo. A monotonia de tudo não é, porém, senão a monotonia de mim. Cada rosto, ainda que seja o de quem vimos ontem, é outro hoje, pois que hoje não é ontem. Cada dia é o dia que é, e nunca houve outro igual no mundo. Só em nossa alma está a identidade - a identidade sentida, embora falsa, consigo mesma - pela qual tudo se assemelha e se simplifica. O mundo é coisas destacadas e arestas diferentes; mas, se somos míopes, é uma névoa insuficiente e contínua. O meu desejo é fugir. Fugir ao que conheço, fugir ao que é meu, fugir ao que amo. Desejo partir - não para as índias impossíveis, ou para as grandes ilhas ao Sul de tudo, mas para o lugar qualquer - aldeia ou ermo - que tenha em si o não ser este lugar. Quero não ver mais estes rostos, estes hábitos e estes dias. Quero repousar, alheio, do meu fingimento orgânico. Quero sentir o sono chegar como vida, e não como repouso. Uma cabana à beira-mar, uma caverna, até, no socalco rugoso de uma serra, me pode dar isto. Infelizmente, só a minha vontade mo não pode dar.
A escravatura é a lei da vida, e não há outra lei, porque esta tem de cumprir-se, sem revolta possível nem refúgio que achar. Uns nascem escravos, outros tornam-se escravos, e a outros a escravidão é dada. O amor cobarde que todos temos à liberdade - que, se a tivéssemos, estranharíamos, por nova, repudiando-a - é o verdadeiro sinal do peso da nossa escravidão. Eu mesmo, que acabo de dizer que desejaria a cabana ou caverna onde estivesse livre da monotonia de tudo, que é a de mim, ousaria eu partir para essa cabana ou caverna, sabendo, por conhecimento, que, pois que a monotonia é de mim, a haveria sempre de ter comigo? Eu mesmo, que sufoco onde estou e porque estou, onde respiraria melhor se a doença é dos meus pulmões e não das coisas que me cercam? Eu mesmo, que anseio alto pelo sol puro e os campos livres, pelo mar visível e o horizonte inteiro, quem me diz que não estranharia a cama, ou a comida, ou não ter que descer os oito lanços de escada até à rua, ou não entrar na tabacaria da esquina, ou não trocar os bons-dias com o barbeiro ocioso?
Tenho, felizmente, o último retrato, que é o espiritualmente verdadeiro, do Autor. É um retrato pequeno, tipo bilhete de identidade, mas susceptível de ser ampliado e reproduzido depois de acordo com essa ampliação. O retrato, de que falo, e de que digo que é o espiritualmente verdadeiro, não dá o Sá-Carneiro como usualmente era, mas um Sá-Carneiro torturado (o próprio olhar o diz), um Sá-Carneiro emagrecido e final, que tem mais verdade que os retratos mais vulgares que ele tinha tirado nas fotografias do grande costume. E é isso mesmo que dá a essa fotografia casual o valor que casual muitas vezes usurpa ao autêntico – a fixação, por uma imposição súbita do Destino, do aspecto em que qualquer alma se revela...
(O conceito de "retrato espiritualmente verdadeiro" é, talvez, a resposta para o facto de alguém , ao olhar uma fotografia sua, se conseguir reconhecer,sem uma estranha sensação de que aquele objeto não tem nada de si ...Apetece-lhe reorganizar as fotografias afetivamente importantes e fazer um álbum dos "retratos espiritualmente verdadeiros": mais um arquivo, mais uma arrumação... Decididamente, ser catalogadora é a sua essência... )
" Outros retratos..."
Pois é, pois é...
A realidade verdadeira dum objecto é apenas parte dele; o resto é o pesado tributo que ele paga à matéria em troca de existir no espaço. Semelhantemente, não há no espaço realidade para certos fenómenos que no sonho são palpavelmente reais. Um poente real é imponderável e transitório. Um poente de sonho é fixo e eterno. Quem sabe escrever é o que sabe ver os seus sonhos nitidamente (e é assim) ou ver em sonho a vida, ver a vida imaterialmente, tirando-lhe fotografias com a máquina do devaneio, sobre a qual os raios do pesado, do útil e do circunscrito não têm acção, dando negro na chapa espiritual. Em mim esta atitude, que o muito sonhar me enquistou, faz-me ver sempre da realidade a parte que é sonho. A minha visão das coisas suprime sempre nelas o que o meu sonho não pode utilizar. E assim vivo sempre em sonhos, mesmo quando vivo na vida. Olhar para um poente em mim ou para um poente no Exterior é para mim a mesma coisa, porque vejo da mesma maneira, pois que a minha visão é talhada mesmamente.
E o que é que eu posso contra o encanto, Desse amor que eu nego tanto Evito tanto e que, no entanto, Volta sempre a enfeitiçar Com seus mesmos tristes, velhos fatos, Que num álbum de retratos Eu teimo em colecionar...
Tive um sonho como uma fotografia... No fundo a Fotografia é subversiva, não quando aterroriza, perturba ou mesmo estigmatiza, mas quando é pensativa.
No fundo - ou no limite - para ver bem uma foto mais vale erguer a cabeça ou fechar os olhos. "A condição prévia para a imagem é a visão", dizia Janouche a Kafka e Kafka sorria e respondia: "Fotografam-se coisas para expulsá-las do espírito. As minhas histórias são uma maneira de fechar os olhos". A Fotografia deve ser silenciosa (há fotos tonitruantes, não gosto delas): não se trata de uma questão de "discrição", mas de música. A subjetividade absoluta só é atingida num estado, num esforço de silêncio (fechar os olhos é fazer a imagem falar no silêncio). A fotografia toca -me se a retiro do seu blábláblá costumeiro: "Tecnica", "Realidade", "Reportagem", "Arte": nada a dizer, fechar os olhos, deixar o detalhe remontar sozinho à consciência afetiva.
A fotografia é literalmente uma emanação do referente. De um corpo real, que estava lá, partiram radiações que me vêm atingir, a mim, que estou aqui; pouco importa a duração da transmissão; a foto do ser desaparecido vem-me tocar como os raios retardados de uma estrela. Uma espécie de vínculo umbilical liga ao meu olhar o corpo da coisa fotografada: a luz, embora impalpável, é aqui um meio carnal, uma pele que partilho com aquele ou aquela que foi fotografado.
Fotografia é o retrato de um côncavo, de uma falta, de uma ausência. Um álbum de fotografias é um álbum de ausências. Muitas vezes, de ausências que nunca foram presenças...
O sócio capitalista aqui da firma, sempre doente em parte incerta, quis, não sei por que capricho de que intervalo de doença, ter um retrato do conjunto do pessoal do escritório. E assim, anteontem, alinhámos todos, por indicação do fotógrafo alegre, contra a barreira branca suja que divide, com madeira frágil, o escritório geral do gabinete do patrão Vasques. Ao centro o mesmo Vasques; nas duas alas, numa distribuição primeiro definida, depois indefinida, de categorias, as outras almas humanas que aqui se reúnem em corpo todos os dias para pequenos fins cujo último intuito só o segredo dos Deuses conhece.
Hoje quando cheguei ao escritório (…) encontrei o Moreira, inesperadamente matutino, e um dos caixeiros de praça debruçados rebuçadamente sobre umas coisas enegrecidas, que reconheci logo, em sobressalto, como as primeiras provas das fotografias. Eram, afinal, duas só de uma, daquela que ficara melhor.
Sofri a verdade ao ver-me ali, porque, como é de supor, foi a mim mesmo que primeiro busquei. Nunca tive uma ideia nobre da minha presença física, mas nunca a senti tão nula como em comparação com as outras caras, tão minhas conhecidas, naquele alinhamento de quotidianos. Pareço um jesuíta fruste. A minha cara magra e inexpressiva nem tem inteligência, nem intensidade, nem qualquer coisa, seja o que for, que a alce da maré morta das outras caras. (…) A energia, a esperteza, do homem — afinal tão banais, e tantas vezes repetidas por tantos milhares de homens em todo o mundo — são todavia escritas naquela fotografia como num passaporte psicológico.
O que quer isto dizer? Que verdade é esta que uma película não erra? Que certeza é esta que uma lente fria documenta? Quem sou, para que seja assim? Contudo... E o insulto do conjunto?
— «Você ficou muito bem», diz de repente o Moreira. E depois, virando-se para o caixeiro de praça, «É mesmo a carinha dele, hem?» E o caixeiro de praça concordou com uma alegria amiga que atirou para o lixo.
The photobooth's a liar...
Assim vai ser melhor...
A fotografia trocada...
Sofrer a verdade de me ver nas fotografias é uma das minhas causas de desassossego que talvez só bernardo soares entenda... Quis o destino poupá-lo a estes tempos em que não se dá um passo sem que o mais elementar direito à imagem seja violado... Nunca gostei de fotografias, nem mesmo quando era bonita ... a fotografia rouba a alma, anula o ser. Aquela mancha que surge no papel é um estranho, alguém irreconhecível... Uma vez, numa queima das fitas em coimbra, na época em que o evento era fotografado por profissionais que publicitavam as provas, numa espécie de catálogo numerado, aconteceu-me encomendar uma fotografia de outra rapariga... Só quando, mais tarde, verifiquei que não conhecia nenhuma das pessoas que a rodeavam me apercebi do engano..."como é de supor, foi a mim mesmo que primeiro busquei" Esta afirmação faz-nme sorrir. É exatamente isto que acontece: ao observarmos uma qualquer fotografia de um grupo mais ou menos numeroso, os olhos avidamente se dirigem para o rosto que julgamos ser o nosso. Podem estar cem pessoas que só vimos uma... É este olhar seletivo que justifica que eu não me tenha apercebido de que estava rodeada de estranhos: vi quem julgava ser e não reparei em mais ninguém...
Se a vida fosse um álbum de fotografias, tudo seria mais fácil...Surgiu-me,subitamente,mais um título para um romance que nunca escreverei álbum de fotografias, recortes fotográficos ou vida em recortes... Lá estou eu a fazer concorrência à margarida rebelo pinto...No entanto, o título pode desmerecer o que seria a obra. Tivesse eu engenho e arte...
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