A cadela saltitava junto dele, feliz na sua expectativa. É maravilhoso estar a caminho de casa. E cada vez que chegava uns passos à frente do seu dono, parava e olhava para trás, para ele, cheia de uma confiança inabalável, depois voltava para ao pé dele fazendo uma curva grande. A reverência que tinha pelo seu dono era tal que não se atrevia a passar à sua frente. Aquilo que o cão procura, encontrará junto do homem. Ele inclinava-se contra as rajadas da neve puxando Blesi, mas muitas vezes olhava de lado para o seu pobre cão, coitadinho, pulguento e cheio de parasitas, mas onde habita deveras a fidelidade, senão nestes olhinhos acastanhados, essa dedicação que nada consegue corromper? Desgraça, desonra, problemas de consciência, nada consegue extinguir aquele fogo, essa criatura pobrezinha, aos olhos dela Bjartur de Casas de Verão deveria sempre ser o sublime, o maior, o melhor, o incomparável. Aquilo que o homem procura encontrará nos olhos do cão.
"Decididamente, não encaixa: é sempre a peça fora do esquema. Ele, o bem-amado, tal como o eucalipto, seca tudo à sua volta, não deixando nenhum espaço para que qualquer afeto por ela ganhe raízes. Sempre esteve a mais, sempre se sentiu a mais, sempre. É urgente redescobrir a clandestinidade: acordar a sorrir, com cara de parva... (Há certos estados de beatitude que nos dão um ar apalermado.). Chegar à varanda e gritar: "Hoje estou feliz, mas não faço ideia do que isso signifique..." Voltar a reparar no azul do céu...
Cansa tanto
andar deprimido: dói, corrói, destrói...É tão repousante sentir, nem que seja
por um momento, uma certa serenidade...
E deixo aqui ainda uma observação pessoal: Trump é um caso extremo, mas somos uma nação [doentiamente] obcecada com a ideia de que há vencedores e perdedores.»
Uma ignorância extrema da generalidade da população; uma classe média com algum dinheiro, mas inculta e com uma mentalidade imbecilóide( Ia dizer infantil, mas achei injusto para as crianças...); muita noção dos direitos aparentes, mas desconhecimento de princípios éticos; uma incapacidade de ser racional, uma emotividade agressiva e descontrolada. Há um abismo entre os génios, os muitos bons, e os muito maus..
Escrevo
penso
leio
traduzo vinte páginas
ouço o noticiário
escrevo
escrevo
leio.
Onde estás
onde estás.
Já não será,
já não viveremos juntos, não criarei teu filho
não coserei tua roupa, não te terei à noite
não te beijarei ao partir, nunca saberás quem fui
por que me amaram outros.
Não chegarei a saber por que nem como, nunca
nem se era de verdade o que disseste que era,
nem quem foste, nem o que fui para ti,
nem como teria sido vivermos juntos,
amar-nos, esperar-nos, estar.
Já não sou mais do que eu para sempre e tu
já não serás para mim mais do que tu.
Já não estás em um dia futuro
não saberei onde vives, com quem
nem se te lembras.
Não me abraçarás nunca como essa noite, nunca.
Não voltarei a te tocar. Não te verei morrer
El testigo
Yo no te pido nada
yo no te acepto nada.
Alcanza con que estés
en el mundo
con que sepas que estoy
en el mundo
con que seas
me seas
testigo juez y dios.
Si no
para qué todo.
El mar
Tan arduamente el mar,
tan arduamente,
el lento mar inmenso,tan largamente en sí, cansadamente,
el hondo mar eterno.
Lento mar, hondo mar,
profundo mar inmenso…
Tan lenta y honda y largamente y tanto
insistente y cansado ser cayendo
como un llanto, sin fin,
pesadamente,
tenazmente muriendo…
Va creciendo sereno desde el fondo,
sabiamente creciendo,
lentamente, hondamente, largamente,
pausadamente,
mar,
arduo, cansado mar,
Padre de mi silencio.
Já não tenho
já não quero
mais ter perguntas.
Já não tenho
já não quero
ter mais respostas.
Teria que me sentar num banquinho
e esperar que termine.
Dizer não
dizer não
atar-me ao mastro
mas
desejando que o vento o vire
que a sereia suba e com os dentes
corte as cordas e me arraste ao fundo
dizendo não não não
mas seguindo-a.
Esta limitação esta barreira
esta separação
esta solidão a consciência
a efémera gratuita fechada
ensimesmada consciência
esta consciência
existindo nomeando-se
fulgurando um instante
no nada absoluto
na noite absoluta
no vazio.
Esta solidão
esta vaidade a consciência
condenada impotente
que termina em si mesma
que se acaba
enclaustrada
na luz
e que não obstante se alça
se enfuna
se cega
tapa o vazio com cortinas de fumo
manipula ilusões
e nunca toca nada
não conhece nada
não possui nada.
Esta ausência distância
este confinamento
esta desesperada
esta vã infinita solidão
a consciência
https://www.germinaliteratura.com.br/2013/idea_vilarino.htm
«A história de um mundo que, como todas as coisas vivas, nasce, cresce e depois morre… Cozinhas, quartos, memórias de infância, sonhos e insónia, reminiscências e amnésia fazem parte dos seus espaços existenciais e acústicos, compondo as diferentes vozes da sua história.»
Outrora é um lugar situado no centro do universo. Atravessar Outrora de norte a sul com passo acelerado demora uma hora. O mesmo acontece de leste a oeste. E se alguém quiser dar a volta a Outrora com passo lento, observando detalhada e reflectidamente todas as coisas em redor, precisará de um dia inteiro. De manhã até ao entardecer.
Certa noite, certa manhã, o homem ultrapassa a fronteira, alcança o seu auge e dá o seu primeiro passo descendente em direção à morte.
O moinho de café, tal como todas as coisas, absorveu a agitação do mundo: imagens de comboios atingidos por disparos, riachos imóveis de sangue, casas abandonadas cujas janelas todos os anos eram fustigadas por ventos diferentes. Absorvia o calor dos corpos humanos que arrefeciam e o desespero de terem de deixar para trás o que lhes era familiar. Era tocado por diferentes mãos que nele depositavam inúmeras emoções e pensamentos. O moinho de café aceitava tudo, pois tal é a propriedade de toda a matéria - aceitar aquilo que é passageiro e efémero.
Em segundo lugar - estava ali aquele que para Mísia era o objecto mais precioso da casa uma -pedra da Lua-, como ela lhe chamava. O pai tinha-a encontrado, em tempos, no campo e dissera-lhe que aquela pedra era diferente das pedras normais. Era quase idealmente redonda e, na sua superfície, estavam incrustadas migalhinhas minúsculas de algo muito brilhante. Parecia um enfeite de árvore de Natal. Mísia colocava-a junto ao ouvido à espera de ouvir um som qualquer, um sinal da pedra, mas aquela pedra oriunda do céu remetia-se ao silêncio.
Esteve de cama durante um mês, não tanto por causa das dores ou do enfraquecimento, mas por causa do regresso daquele sentimento que tentara esquecer nos últimos anos - a certeza de que o mundo iria acabar, que a realidade se desmoronaria como madeira podre, que a matéria produzia bolor a partir do seu interior e que tudo isso acontecia sem qualquer sentido, nem significado. O corpo do Morgado também se rendia a isso, desintegrando-se gradualmente. O mesmo acontecia com a sua vontade. O tempo decorrido entre a tomada de decisão e a inciativa da acção subsequente alargava-se e tornava-se intransponível.
September
Departing summer hath assumed
An aspect tenderly illumed,
The gentlest look of spring;
That calls from yonder leafy shade
Unfaded, yet prepared to fade,
A timely carolling.
No faint and hesitating trill,
Such tribute as to winter chill
The lonely redbreast pays!
Clear, loud, and lively is the din,
From social warblers gathering in
Their harvest of sweet lays.
Nor doth the example fail to cheer
Me, conscious that my leaf is sere,
And yellow on the bough:-
Fall, rosy garlands, from my head!
Ye myrtle wreaths, your fragrance shed
Around a younger brow!
Yet will I temperately rejoice;
Wide is the range, and free the choice
Of undiscordant themes;
Which, haply, kindred souls may prize
Not less than vernal ecstasies,
And passion's feverish dreams.
For deathless powers to verse belong,
And they like Demi-gods are strong
On whom the Muses smile;
But some their function have disclaimed,
Best pleased with what is aptliest framed
To enervate and defile.
Not such the initiatory strains
Committed to the silent plains
In Britain's earliest dawn:
Trembled the groves, the stars grew pale,
While all-too-daringly the veil
Of nature was withdrawn!
Nor such the spirit-stirring note
When the live chords Alcæus smote,
Inflamed by sense of wrong;
Woe! woe to Tyrants! from the lyre
Broke threateningly, in sparkles dire
Of fierce vindictive song.
And not unhallowed was the page
By wingèd Love inscribed, to assuage
The pangs of vain pursuit;
Love listening while the Lesbian Maid
With finest touch of passion swayed
Her own Æolian lute.
O ye, who patiently explore
The wreck of Herculanean lore,
What rapture! could ye seize
Some Theban fragment, or unroll
One precious, tender-hearted scroll
Of pure Simonides.
That were, indeed, a genuine birth
Of poesy; a bursting forth
Of genius from the dust:
What Horace gloried to behold,
What Maro loved, shall we enfold?
Can haughty Time be just!
Pequena elegia de setembro
Não sei como vieste,
mas deve haver um caminho
para regressar da morte.
.Estás sentada no jardim,
as mãos no regaço cheias de doçura,
os olhos pousados nas últimas rosas
dos grandes e calmos dias de setembro.
Que música escutas tão atentamente
que não dás por mim?
Que bosque, ou rio, ou mar?
Ou é dentro de ti
que tudo canta ainda?
Queria falar contigo,
dizer-te apenas que estou aqui,
mas tenho medo,
medo que toda a música cesse
e tu não possas mais olhar as rosas.
Medo de quebrar o fio
com que teces os dias sem memória.
Com que palavras
ou beijos ou lágrimas
se acordam os mortos sem os ferir,
sem os trazer a esta espuma negra
onde corpos e corpos se repetem,
parcimoniosamente, no meio de sombras?
Deixa-te estar assim,
ó cheia de doçura,
sentada, olhando as rosas,
e tão alheia
que nem dás por mim.
[Carta a Armando Côrtes-Rodrigues - 2 Set. 1914]
Lisboa, 2 de Setembro de 1914
Meu querido Amigo:
Recebi o seu postal, e foi-me muito grato saber que a sua viagem foi boa. Aguardo a sua carta prometida. Escreva tão extensamente quanto lhe for possível. Por mim, para que não tarde a minha carta, começo-a hoje.
Mau grado a alguma depressão, constante desde que lá fora é guerra, tenho passado com razoável calma pela ilusão sucessiva dos dias. Nada tenho escrito que valha a pena mandar-lhe. Ricardo Reis e Álvaro futurista - silenciosos. Caeiro perpetrador de algumas linhas que encontrarão talvez asilo num livro futuro. Mas essas linhas são esboços de poesias, não poesias propriamente falando. O que principalmente tenho feito é sociologia e desassossego. V. percebe que a última palavra diz respeito ao «livro» do mesmo; de facto tenho elaborado várias páginas daquela produção doentia. A obra vai pois complexamente e tortuosamente avançando.
Quanto à sociologia, além de ter acrescentado alguns raciocínios e análises à minha «Teoria da República Aristocrática», tenho deliberado teorias várias sobre a guerra presente e sobre as forças sociais, nacionais e civilizacionais em acção. Creio ir-me aproximando de uma interpretação do conflito com visos de verdadeira, ou, pelo menos (sejamos sempre um pouco cépticos), de plausível.
O facto é que neste momento atravesso um período de crise na minha vida. Preocupa-me quotidianamente a necessidade de dar ao conjunto da minha orientação, tanto intelectual como «existente na vida», uma linha metódica e lógica. Quero disciplinar a minha vida (e, consequentemente, a minha obra) como a um estado anárquico, anárquico pelo próprio excesso de «forças vivas» em acção, conflito e evolução interconexa e divergente. Não sei se estou sendo perfeitamente lúcido. Creio que estou sendo sincero. Tenho pelo menos aquele amargo de espírito que é trazido pela prática anti-social da sinceridade. Sim, eu devo estar a ser sincero.
Não se admire v. desta minha atitude para comigo mesmo. Tenho vivido tanto e tão cansado tempo comigo que estou sempre de pé atrás para com o que sinto e penso. Muitas vezes, creio firmemente, levo horas intelectuais a intrujar-me a mim próprio. Daí a necessidade em que estou de me acautelar sempre com o que digo. Repare v. em que, se há parte da minha obra que tenha um «cunho de sinceridade», essa parte é... a obra do Caeiro.
Inútil e criminal, porém, o está-lo maçando com isto. Passo adiante, deixando-me.
O Sá-Carneiro resolveu-se afinal a deixar Paris. Agora está em Barcelona, se é que não decidiu já vir para Lisboa, o que naturalmente, mais tarde ou mais cedo acontece. Acho que ele fez bem. Como a guerra vai correndo, não parece impossível um cerco de Paris pelos alemães — o que, de resto, naturalmente pouco altera a sua probabilíssima derrota final.










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