A partir de então e até à sua morte, Molly Morgan Muir esperou com ilusão e impaciência a chegada do dia escolhido em que o seu imaterial amor silencioso aceitava regressar ao passado do seu tempo em que na realidade já não havia qualquer passado ou tempo, a chegada de cada quarta-feira. E pensa-se que talvez tenha sido isso que a manteve ainda viva durante bastantes anos, ou seja, com passado e presente e também futuro, ou talvez tudo isso sejam nostalgias.
"Em Não mais amores, aparece um Elvis Presley, mas também a sombra de um fantasma; uma atriz porno iniciante que está prestes a conhecer o seu parceiro de filmagens e um mordomo antiquado em Nova Iorque; um assassino por encomenda que tenta dissuadir quem o quer contratar, mesmo que isso lhe implique o soldo, e a desgraça de um casal de mafiosos; um escritor anacrónico, e talvez sem talento, tão viciado na sua dor que abandona a medicação que a apaga para investigar o seu efeito na existência, e um homem que encontra outro homem igual a si e que tenta fugir da semelhança, em simultâneo com o outro, mantendo-a.
A condição humana refulge nesse homem que enfrenta o seu duplo, estando Javier Marías a refazer o cenário já experimentado por autores como Saramago (O Homem Duplicado) ou Dostoievski (O duplo). Mesmo num mundo em que se procura a unidade, a ausência de individualidade atinge e transtorna, daí os esforços para a distância e para a diferença, mesmo que isso implique o colapso profissional, pessoal ou mental.
Noutro conto, a fotografia é um vício que prova o amor: pode amar-se sem uma máquina fotográfica, sem o desejo obtuso de se cristalizar a imagem da coisa amada? Uma das personagens responde: “Você adora a sua mulher? Não me faça rir. Você nem sequer tem uma câmara. Não a quer recordar verdadeiramente, tal como foi, se a perder. Não quer voltar a vê-la quando já não a puder ver.”
E então atinge-se a inquietação a la Marías: um cenário à partida idílico que leva com a sombra, e o tormento, da sua efemeridade. Pelo meio, um amor louco, e louco no sentido de doentio: o homem que amava a mulher desde antes de ser mulher, que esperou por ela como um estóico, ou um obcecado, que viveu o seu tempo e o tempo dela em simultâneo, que contrapôs às décadas que os separavam um afluir de referências, e uma “adoração imutável” que, mais do que arcabouço cardíaco, é um perigo iminente: o homem sabe que acabará por matá-la. Marías enfrenta ainda os despojos que a vida de alguém deixa quando já deixou de ser vida: os espaços maculados pela ausência, a tristeza de tudo continuar igual quando alguém já não existe, a afronta ao ego que é a irrevogável passagem do tempo e a regeneração da vida, o reaproveitamento de espaços e esses espaços como depositários do tempo.
Os contos são não apenas hipóteses de situações ou de vida, mas confrontos morais permanentes. Não há situação em que não se sinta a angústia de uma decisão, e é isso que o leitor encara, tentando formular uma hipótese ao mesmo tempo que é engolido no drama das personagens. Assim sendo, fica claro que a inquietação de Marías é dos maiores tesouros da literatura contemporânea."
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