Não é neccessário vivermos ao lado de alguém para nos sentirmos ligados a esse alguém mais do que a qualquer outra pessoa...

sexta-feira, 12 de março de 2021

Meninas...

 Lolita...
«Quase quarenta anos depois, este romance tão artificial criou uma nova palavra internacional ("lolita"), inventou uma América — a dos motéis e autoestradas — de que se nutre ainda boa parte da narrativa americana contemporânea, é uma das obras com o inglês mais rico e preciso da literatura deste século e, ao contrário das acusações iniciais de pornografia que teve de sofrer, é talvez — e no que me diz respeito — o romance mais melancólico, elegante e lírico de quantos li." Javier Marías


Lolita, light of my life, fire of my loins. My sin, my soul. Lo-lee-ta: the tip of the tongue taking a trip of three steps down the palate to tap, at three, on the teeth. Lo. Lee. Ta. She was Lo, plain Lo, in the morning, standing four feet ten in one sock. She was Lola in slacks. She was Dolly at school. She was Dolores on the dotted line. But in my arms she was always Lolita.













 Esta menina ...


Sempre , desde muito pequena, teve dúvidas impróprias de "uma menina da sua idade": "por que motivo dois irmãos não podem namorar? " Diziam que, quando crescesse, perceberia o que era o incesto. Cresceu, percebeu,  mas nunca aceitou. Tinha 12 ou 13 anos a primeira vez que achou que os adultos confundiam amar, com procriar e casar. Não o terá dito assim, mas defendeu esta teoria numa redação e o professor de português, diretor do colégio, chamou-a e prometeu que não dizia nada ao  papá daquelas suas ideias, para não  o incomodar . "Esta menina, esta menina..."

(Pobre senhor diretor, o único homem num colégio feminino tipicamente salazarista. O menino pobre da Beira a quem uns senhores de Coimbra pagaram os estudos e que casou "bem". Eu sei, eu sempre soube que tu não casaste "bem", tu nunca gostaste da tua mulher: ela deu-te dois filhos e um colégio "fino", tornou-te "senhor diretor" , mas tu tinhas uma paixão que nós descobrimos...Recordo-te com saudade, chorei muito no dia em que morreste e julgo que nunca soube teu nome: eras só o senhor diretor, marido da doutora Lia, professora de francês, e cunhado da doutora Raquel, professora de matemática, o teu amor secreto... A doutora Raquel é que era a diretora oficial do colégio, pois um homem não poderia exercer esse cargo, mas tu sempre foste, para nós, o senhor diretor. Outra pergunta que te fiz, julgo que ainda na primária: "se o senhor diretor é o nosso diretor por que motivo não o pode ser?". "Esta menina, esta menina...". Um dia, acho que no quarto ano do liceu, fiz-te uns versos numa aula. Estava tão alheada que não reparei que tu te tinhas aproximado e me tiraste a folha. Se não morri de vergonha nesse dia, já não morro: fiquei corada, corada, 80 olhos cravados em mim - a nossa turma tinha 40 alunas- humilhada, a tremer, não conseguia dizer uma palavra, só me apeteceu morrer. Tu, serenamente- tu eras um homem bom, muito bom, que se fingia austero por obrigação - dobraste a folha e recomeçaste a aula " Ai, esta menina, esta menina..."). A história do senhor diretor foi para  ela uma confirmação de que casar e procriar rimam com amar, mas só porque são verbos de tema em -a, primeira conjugação. Tu gostavas da doutora Raquel, a tua namorada, mas ela era estéril e o pai  não permitiu o casamento e, tal como no soneto de Camões, em vez de Raquel te dava Lia. Tu aceitaste: como é que o menino da Beira poderia resistir ao Colégio ...?. Também no quarto ano foi com a Maria fumar para a sala da reza e esconderam-se debaixo do manto da Nossa Senhora. A Dona Aldina, uma espécie de governante, uma solteirona desinteressante, beata, mas que gostava das suas meninas, passa , vê fumo a sair e desata a gritar, histérica, a benzer-se" Ai, que a Nossa Senhor está a arder". A nossa senhora não ardeu, mas para mim é que foi um inferno: a Maria conseguiu fugir, eu, que sempre fui trôpega, fiquei retida e, quando o senhor diretor chegou, eu e a prova do meu crime ali estávamos, indefesas. " Ai, esta menina, desta vez tenho de chamar o seu paizinho, uma menina a fumar!!" "Mas, senhor diretor, se eu fosse rapaz era diferente? Porquê, senhor diretor? Por que motivo há um mal para as meninas que não é mal para os rapazes, porquê, senhor diretor??" "Esta menina, esta menina". Uns tempos mais tarde, a menina ouviu dizer que o ator X era “paneleiro” (um termo grosseiro, machista que ainda hoje detesta). Perguntou ao pai o que queria dizer, mas  não teve resposta satisfatória. Resolveu, na aula de português, esclarecer-se   Senhor diretor, o que é um “paneleiro”? Pobre senhor diretor, como hoje te entendo, desta vez foste tu a corar e ficaste mudo, visivelmente nervoso. As mais crescidas da turma que sabiam  o que  era riam aflitas, eu , protegida por uma ingenuidade autêntica, insistia na pergunta, até que o senhor diretor respondeu” é um homem que gosta de outro homem”. Eu, muito aliviada : E qual é o problema, senhor diretor, os homens não se devem amar uns aos outros?Mas onde é que a menina vai buscar estas ideias? Ai, esta menina, esta menina…”. Como o assunto era impróprio, o senhor diretor deu por encerrada a conversa e encaminhou-me para a professora de moral (Na época, não havia psicólogas e, se calhar, foi a minha sorte…) 

A conversa com a professora de Moral não correu muito bem porque, quando , finalmente, percebeu o que era um” paneleiro”  continuou a não ver onde é que estava o problema Senhora, professora,  se um homem amar outro homem como a senhora professora ama o seu marido, isso tem mal? E, desta vez, oralmente, reafirmei a minha teoria: Dois homens não se podem casar (tal hipótese, na época, nem se colocava.), não podem ter filhos, mas podem-se amar, não podem, senhora professora?
A professora de Moral fica em estado de choque, meio assustada meio fascinada pela simplicidade com que eu teorizava sobre assunto tão indecoroso, incapaz de falar com o diretor sobre tal tema, conversou com a doutora Raquel, afinal ela era a diretora oficial do colégio. Ó verdadeiro milagre, a professora Raquel, talvez por saber o que era amar, sem casar nem procriar, foi complacente com a minha teoria, tranquilizou  a  professora de Moral “ Não se preocupe, são coisas de crianças” , foi ter com ela  e perguntou- lhe “ Tu és tão miúda, como sabes o que é amar?” Sei pelos livros, senhora professora, e porque gosto de pensar nisso. “ Esta menina, esta menina”, disse- me com uma tristeza que só anos mais tarde percebi…

Aos 13 anos apaixonou-se por um vizinho, uns vinte e tal anos mais velho , professor de Ginástica no Liceu D. João III (Hoje, Escola Secundária José Falcão), namorado de uma tal Laidinha que ela achava a rapariga mais feia à face da terra. Este amor, mais do que secreto, motivador de uns poemas de que se envergonho, não teria tido qualquer consequência se ela não tivesse descoberto que, num certo dia e hora, o “bem-amado” dava uma aula no pátio do liceu e que, do telhado do seu colégio, a que teria acesso através do sótão ela o poderia ver. Sem dizer nada a ninguém, venceu o medo das alturas e lá se empoleirava, romanticamente, de binóculos em punho, a observar o objeto do seu amor. Um dia escorregou e foi o escândalo: em pânico, aos gritos, como uma possessa, mesmo à beira da queda, foi a vergonha daquele colégio tão “fino“. A estória, agora, é cómica, mas foi um incidente que lhe teria valido a expulsão, não fora a sorte, não estaria aqui para o contar, não fora a bondade natural do senhor diretor e a simpatia secreta que a professora Raquel tinha por ela. Retirada pelos bombeiros, o  problema foi explicar o que estava ali a fazer… ela até era uma menina pacata e nada aventureira. Nunca contou a verdade, nunca ninguém percebeu o porquê de tal disparate, terão colocado a hipótese de ela não estar boa da cabeça, mas, como foi um sintoma isolado, tudo terminou em bem, apesar de o senhor diretor ter repetido, com tom invulgarmente preocupado, “Ai, esta menina, esta menina.”. Entretanto, a “menina” descobriu que ele era treinador de basquete e, subitamente, iniciou uma efémera carreira de desportista…ir aos treinos era bem mais seguro do que a observação aérea.

Um momento de glória... Eis que surge, perante mim, uma menina de cinco anos, encantadora( aos cinco anos, eu era uma criança encantadora) que,sem saber ler, declamava poemas "como se percebesse tudo"... Igrejas caeiro( nunca o esqueci) realizou o meu sonho. Num espetáculo, durante as festas da rainha santa, veio-me buscar à plateia e eu,ufana, perante um público imenso, declamei dois poemas. É a minha memória de infância mais feliz...É estranho como, tendo uma primeira experiência tão gratificante, hoje tenha verdadeiro pavor de subir a um palco...

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