Lolita...
«Quase quarenta anos depois, este romance tão artificial criou uma nova palavra internacional ("lolita"), inventou uma América — a dos motéis e autoestradas — de que se nutre ainda boa parte da narrativa americana contemporânea, é uma das obras com o inglês mais rico e preciso da literatura deste século e, ao contrário das acusações iniciais de pornografia que teve de sofrer, é talvez — e no que me diz respeito — o romance mais melancólico, elegante e lírico de quantos li." Javier Marías
Sempre , desde muito pequena, teve dúvidas impróprias de "uma menina da sua idade": "por que motivo dois irmãos não podem namorar? " Diziam que, quando crescesse, perceberia o que era o incesto. Cresceu, percebeu, mas nunca aceitou. Tinha 12 ou 13 anos a primeira vez que achou que os adultos confundiam amar, com procriar e casar. Não o terá dito assim, mas defendeu esta teoria numa redação e o professor de português, diretor do colégio, chamou-a e prometeu que não dizia nada ao papá daquelas suas ideias, para não o incomodar . "Esta menina, esta menina..."
(Pobre senhor
diretor, o único homem num colégio feminino tipicamente salazarista. O menino
pobre da Beira a quem uns senhores de Coimbra pagaram os estudos e que casou
"bem". Eu sei, eu sempre soube que tu não casaste "bem", tu
nunca gostaste da tua mulher: ela deu-te dois filhos e um colégio
"fino", tornou-te "senhor diretor" , mas tu tinhas uma
paixão que nós descobrimos...Recordo-te com saudade, chorei muito no dia em que
morreste e julgo que nunca soube teu nome: eras só o senhor diretor, marido da
doutora Lia, professora de francês, e cunhado da doutora Raquel, professora de
matemática, o teu amor secreto... A doutora Raquel é que era a diretora oficial
do colégio, pois um homem não poderia exercer esse cargo, mas tu sempre foste,
para nós, o senhor diretor. Outra pergunta que te fiz, julgo que ainda na
primária: "se o senhor diretor é o nosso diretor por que motivo não o
pode ser?". "Esta menina, esta menina...". Um dia, acho que
no quarto ano do liceu, fiz-te uns versos numa aula. Estava tão alheada que não
reparei que tu te tinhas aproximado e me tiraste a folha. Se não morri de
vergonha nesse dia, já não morro: fiquei corada, corada, 80 olhos cravados em
mim - a nossa turma tinha 40 alunas- humilhada, a tremer, não conseguia dizer
uma palavra, só me apeteceu morrer. Tu, serenamente- tu eras um homem bom,
muito bom, que se fingia austero por obrigação - dobraste a folha e recomeçaste
a aula " Ai, esta menina, esta menina..."). A história do senhor
diretor foi para ela uma confirmação de
que casar e procriar rimam com amar, mas só porque são verbos de tema em -a,
primeira conjugação. Tu gostavas da doutora Raquel, a tua namorada, mas ela era
estéril e o pai não permitiu o casamento
e, tal como no soneto de Camões, em vez de Raquel te dava Lia. Tu aceitaste:
como é que o menino da Beira poderia resistir ao Colégio ...?. Também no quarto
ano foi com a Maria fumar para a sala da reza e esconderam-se debaixo do manto
da Nossa Senhora. A Dona Aldina, uma espécie de governante, uma solteirona
desinteressante, beata, mas que gostava das suas meninas, passa , vê fumo a
sair e desata a gritar, histérica, a benzer-se" Ai, que a Nossa Senhor
está a arder". A nossa senhora não ardeu, mas para mim é que foi um
inferno: a Maria conseguiu fugir, eu, que sempre fui trôpega, fiquei retida e,
quando o senhor diretor chegou, eu e a prova do meu crime ali estávamos,
indefesas. " Ai, esta menina, desta vez tenho de chamar o seu paizinho,
uma menina a fumar!!" "Mas, senhor diretor, se eu fosse rapaz
era diferente? Porquê, senhor diretor? Por que motivo há um mal para as meninas
que não é mal para os rapazes, porquê, senhor
diretor??" "Esta menina, esta menina". Uns tempos
mais tarde, a menina ouviu dizer que o ator X era “paneleiro” (um termo
grosseiro, machista que ainda hoje detesta). Perguntou ao pai o que queria
dizer, mas não teve resposta
satisfatória. Resolveu, na aula de português, esclarecer-se Senhor
diretor, o que é um “paneleiro”? Pobre senhor diretor, como hoje te
entendo, desta vez foste tu a corar e ficaste mudo, visivelmente nervoso. As
mais crescidas da turma que sabiam o que era riam aflitas, eu ,
protegida por uma ingenuidade autêntica, insistia na pergunta, até que o senhor
diretor respondeu” é um homem que gosta de outro homem”. Eu, muito aliviada : E
qual é o problema, senhor diretor, os homens não se devem amar uns aos outros?
“Mas onde é que a menina vai buscar estas ideias? Ai, esta menina, esta
menina…”. Como o assunto era impróprio, o senhor diretor deu por encerrada a
conversa e encaminhou-me para a professora de moral (Na época, não havia
psicólogas e, se calhar, foi a minha sorte…)
A conversa com a
professora de Moral não correu muito bem porque, quando , finalmente,
percebeu o que era um” paneleiro”
continuou a não ver onde é que estava o problema Senhora, professora, se um homem amar outro homem como a senhora
professora ama o seu marido, isso tem mal? E, desta vez, oralmente,
reafirmei a minha teoria: Dois homens não se podem casar (tal
hipótese, na época, nem se colocava.), não podem ter filhos, mas podem-se amar,
não podem, senhora professora?
A professora de Moral fica em estado de choque, meio assustada meio fascinada
pela simplicidade com que eu teorizava sobre assunto tão indecoroso, incapaz de
falar com o diretor sobre tal tema, conversou com a doutora Raquel, afinal ela
era a diretora oficial do colégio. Ó verdadeiro milagre, a professora
Raquel, talvez por saber o que era amar, sem casar nem procriar, foi
complacente com a minha teoria, tranquilizou
a professora de Moral “ Não se
preocupe, são coisas de crianças” , foi ter com ela e perguntou- lhe “ Tu és tão
miúda, como sabes o que é amar?” Sei pelos livros, senhora professora, e
porque gosto de pensar nisso. “ Esta menina, esta menina”, disse- me
com uma tristeza que só anos mais tarde percebi…
Aos 13 anos apaixonou-se por um vizinho, uns vinte e tal anos mais velho , professor de Ginástica no Liceu D. João III (Hoje, Escola Secundária José Falcão), namorado de uma tal Laidinha que ela achava a rapariga mais feia à face da terra. Este amor, mais do que secreto, motivador de uns poemas de que se envergonho, não teria tido qualquer consequência se ela não tivesse descoberto que, num certo dia e hora, o “bem-amado” dava uma aula no pátio do liceu e que, do telhado do seu colégio, a que teria acesso através do sótão ela o poderia ver. Sem dizer nada a ninguém, venceu o medo das alturas e lá se empoleirava, romanticamente, de binóculos em punho, a observar o objeto do seu amor. Um dia escorregou e foi o escândalo: em pânico, aos gritos, como uma possessa, mesmo à beira da queda, foi a vergonha daquele colégio tão “fino“. A estória, agora, é cómica, mas foi um incidente que lhe teria valido a expulsão, não fora a sorte, não estaria aqui para o contar, não fora a bondade natural do senhor diretor e a simpatia secreta que a professora Raquel tinha por ela. Retirada pelos bombeiros, o problema foi explicar o que estava ali a fazer… ela até era uma menina pacata e nada aventureira. Nunca contou a verdade, nunca ninguém percebeu o porquê de tal disparate, terão colocado a hipótese de ela não estar boa da cabeça, mas, como foi um sintoma isolado, tudo terminou em bem, apesar de o senhor diretor ter repetido, com tom invulgarmente preocupado, “Ai, esta menina, esta menina.”. Entretanto, a “menina” descobriu que ele era treinador de basquete e, subitamente, iniciou uma efémera carreira de desportista…ir aos treinos era bem mais seguro do que a observação aérea.
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