Não é neccessário vivermos ao lado de alguém para nos sentirmos ligados a esse alguém mais do que a qualquer outra pessoa...

terça-feira, 16 de agosto de 2016

Presença, timidez e convenções...

Dei-te os dias, as horas e os minutos
Destes anos de vida que passaram;
Nos meus versos ficaram
Imagens que são máscaras anónimas
Do teu rosto proibido;
A fome insatisfeita que senti
Era de ti,
Fome do instinto que não foi ouvido.


Não se ouve o instinto, por timidez ou por convenção? É a convenção que origina a timidez ou é a timidez que conduz à submissão a convenções?

Saudade é um pouco como fome. Só passa quando se come a presença. Mas às vezes a saudade é tão profunda que a presença é pouco: quer-se absorver a outra pessoa toda. Essa vontade de um ser o outro para uma unificação inteira é um dos sentimentos mais urgentes que se tem na vida.Ah, não há saudades mais dolorosas do que as das coisas que nunca foram!

A tua presença Paralisa meu momento em que tudo começa...


Cada vez estou mais só, mais abandonado. Pouco a pouco quebram-se-me todos os laços. Em breve ficarei sozinho. O meu pior mal é que não consigo nunca esquecer a minha presença metafísica na vida. De aí a timidez transcendental que me atemoriza todos os gestos, que tira a todas as minhas frases o sangue da simplicidade, da emoção directa.

Aquela divina e ilustre timidez que é o guarda dos tesouros e das regalias da alma.Ah, mas como eu desejaria lançar ao menos numa alma alguma coisa de veneno, de desassossego e de inquietação. Isso consolar-me-ia um pouco da nulidade de acção em que vivo. Perverter seria o fim da minha vida. Mas vibra alguma alma com as minhas palavras? Ouve-as alguém que não só eu?

Afinal, isto bem me contentaria, se eu conseguisse persuadir-me que esta teoria não é o que é, um complexo barulho que faço aos ouvidos da minha inteligência, quase para ela não perceber que, no fundo, não há senão a minha timidez, a minha incompetência para a vida.

E eu tenho do alto orgulho a timidez E sinto horror a abrir o ser a alguém, A confiar n'alguém. Horror eu sinto A que prescrute alguém, ou levemente Ou não, quaisquer recantos do meu ser. Abandonar-me em braços nus e belos (Inda que deles o amor viesse) No conceber de tudo me horroriza; Seria violar meu ser profundo, Aproximar-me muito doutros homens; Uma nudez qualquer — espírito ou corpo ( Confrange-me: acostumei-me cedo Aos despimentos do meu ser, A fixar olhos púdicos, conscientes Demais. Pensar em dizer «amo-te» E «amo-te» só — só isto me angustia...Pensar que ao rir (e mesmo que o não seja) Exponho uma íntima parte de mim, Para poder amar eu precisava Esquecer que sou Fausto o pensador. Eu queria era dormir, dormi, dormir, Longo dormir, meio sentindo em sono, E dormir sempre, sem consciência ter Do tempo, só do sono sonolento E da vacuidade do meu ser...

Nenhum problema tem solução. Nenhum de nós desata o nó górdio; todos nós ou desistimos ou o cortamos. Resolvemos bruscamente, com o sentimento, os problemas da inteligência, e fazêmo-lo ou por cansaço de pensar, ou por timidez de tirar conclusões, ou pela necessidade absurda de encontrar um apoio, ou pelo impulso gregário de regressar aos outros e à vida. Como nunca podemos conhecer todos os elementos de uma questão, nunca a podemos resolver. Para atingir a verdade faltam-nos dados que bastem, e processos intelectuais que esgotem a interpretação desses dados.

Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.


Essência musical dos meus versos inúteis,
Quem me dera encontrar-te como coisa que eu fizesse,
E não ficasse sempre defronte da Tabacaria de defronte,
Calcando aos pés a consciência de estar existindo,
Como um tapete em que um bêbado tropeça
Ou um capacho que os ciganos roubaram e não valia nada


Mas um homem entrou na Tabacaria (para comprar tabaco?),
E a realidade plausível cai de repente em cima de mim.
Semiergo-me enérgico, convencido, humano,
E vou tencionar escrever estes versos em que digo o contrário.


O homem saiu da Tabacaria (metendo troco na algibeira das calças?).
Ah, conheço-o; é o Esteves sem metafísica.
(O Dono da Tabacaria chegou à porta.)
Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me.
Acenou-me adeus, gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universo
Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o Dono da Tabacaria sorriu.


Poema da Eterna Presença
Estou, nesta noite cálida, deliciadamente estendido sobre a relva, de olhos postos no céu, e reparo, com alegria, que as dimensões do infinito não me perturbam. (O infinito! Essa incomensurável distância de meio metro que vai desde o meu cérebro aos dedos com que escrevo!) O que me perturba é que o todo possa caber na parte, que o tridimensional caiba no dimensional, e não o esgote. O que me perturba é que tudo caiba dentro de mim, de mim, pobre de mim, que sou parte do todo. E em mim continuaria a caber se me cortassem braços e pernas porque eu não sou braço nem sou perna.(...) Mas não esqueci tudo. Guardei a memória da treva, do medo espavorido do homem da caverna que me fazia gritar quando era menino e me apagavam a luz; guardei a memória da fome; da fome de todos os bichos de todas as eras, que me fez estender os lábios sôfregos para mamar quando cheguei ao mundo; guardei a memória do amor, dessa segunda fome de todos os bichos de todas as eras, que me fez desejar a mulher do próximo e do distante; guardei a memória do infinito, daquele tempo sem tempo, origem de todos os tempos, em que assisti, disperso, fragmentado, pulverizado, à formação do Universo. Tudo se passou defronte de partes de mim. E aqui estou eu feito carne para o demonstrar, porque os átomos da minha carne não foram fabricados de propósito para mim. Já cá estavam. Estão. E estarão.



Em cada instante que possa decorrer uma eternidade, visto que cada instante, infinitamente divisível, é infinito idealmente, isto é, eterno.
A divisão do tempo é uma convenção. Realmente cada divisão dessas (seja qual for) é uma eternidade. O célebre argumento de éternité énubée é falso no que quer provar, por ser inconcebível uma éternité énubée. Se avançamos para o infinito não avançamos realmente, mas estamos essencialmente estacionários.


Depois - reparou - a própria inteligência, que ela sem dúvida tinha, produz um espírito de justiça e de lealdade... E trair aquele homem simples, sem interesse mas digno de amizade, seria para ela uma coisa quase criminal, uma coisa indigna não da pessoa dela, mas da sua inteligência. Era coisa possível só com a imaginação, mas ficando na imaginação. As mesmas qualidades de clareza de inteligência, que a levavam a devanear para longe daquele marido real, a levavam a respeitar, não a ele, mas a sua relação com ele. O homem banal vencia porque era banal. Poderia, sim, acontecer que um amor violento arrastasse aquela mulher, de repente, para fora dos eixos lentos da vida quotidiana e seria; mas esse amor ou teria que ter vindo mais cedo, ou que vir muito mais tarde, e mais cedo seria cedo, e mais tarde seria tarde; ou haveria de o causar alguém não inteiramente diferente daquele marido ocupador - alguém fogoso ou estranho, mas banal também, para que o passo do dever para a aventura se desse facilmente, e não fosse o trânsito da vida para o sonho ou de uma vida para outra vida, coisa que a própria dificuldade convertia em nada, nascendo a inércia da inércia.

Se te queres matar, porque não te queres matar?
Ah, aproveita! que eu, que tanto amo a morte e a vida,
Se ousasse matar-me, também me mataria...
Ah, se ousares, ousa!
De que te serve o quadro sucessivo das imagens externas
A que chamamos o mundo?
A cinematografia das horas representadas
Por actores de convenções e poses determinadas,
O circo polícromo do nosso dinamismo sem fim?

De que te serve o teu mundo interior que desconheces?
Talvez, matando-te, o conheças finalmente...
Talvez, acabando, comeces...
E de qualquer forma, se te cansa seres,
Ah, cansa-te nobremente,
E não cantes, como eu, a vida por bebedeira,
Não saúdes como eu a morte em literatura!




E mesmo nesta hora de perder-te Sabendo que a magia se desfez Terá valido a pena conhecer-te E deslumbrar-me ao menos uma vez!

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