Afetos inexplicáveis...
A ideia que guardo é a da casa como um espaço dividido, o espaço ameaçador do meu pai e o mundo aventuroso e secreto da minha mãe. Passa-se de um para o outro através da escada: o sótão era um lugar ilimitado, como se boiasse no ar ou assentasse nas nuvens. A minha mãe estendia na mesa uma folha de papel e punha ao meu alcance lápis de cor, pincéis e tintas.
Então tudo começava a ser possível: bastava eu querer e uma coisa aparecia: o sol, um pássaro, uma árvore, uma folha de erva. Ela dizia sim, e sorria. Éramos cúmplices e partilhávamos um poder mágico, cada um desenhando numa folha de papel. Estávamos no centro do mundo, e ele obedecia. Fazíamos o sol subir no horizonte, púnhamos um carro na estrada, um moinho um monte, pessoas acenando das janelas. Tudo o que quiséssemos acontecia. Tudo.
Pintar, descobrir, nunca acabava. Apenas era interrompido por tarefas desprezíveis e inúteis como comer, lavar as mãos, tomar banho, ir para a cama, dormir. Mas no dia seguinte recomeçava, como se não tivesse sido interrompido. Cada dia era novo e trazia coisas novas, o jogo de pintar nunca se gastava.
(Ao ler este excerto ocorreu-me uma pergunta,talvez estranha: quem é o meu filho? Como é que ele me perceciona? Será que ele imagina que eu tenho um "mundo aventuroso e secreto"? Se calhar não pensa nada: sou a mãe dele e isso basta-lhe... Garanti-lhe a vida e uma existência confortável, mesmo sem ter sido uma mãe convencional... Julgo que achou "giro" ter uma mãe "hippie", achou "piada" ao meu sucesso com os alunos, "diverte-o" eu ser ( ou ter a mania que sou) intelectual, irrita-o eu atulhar a casa de livros... Gostamos das mesmas bebidas, temos os mesmos defeitos e limitaçãos, somos demasiado parecidos : eu na versão fantasiosa; ele na pragmática... )
Ontem à noite pareceste-me cansada, Mãe; estava a pensar nisso quando me fui deitar. Dever-me-ia preocupar mais com tudo isto? Por vezes parece ser mais fácil fazer-te perguntas pelo papel, tipo como te sentes e como estão a correr as coisas com o médico e isso. Estou atrasada para a escola. O Michael vai lá ter comigo mais tarde, por isso não me parece que jante em casa. Bjs.
Por que não convidas o Michael para jantar cá um dia destes? Teremos de escolher uma noite em que eu não esteja de banco. Esta noite senti-me bastante só, sem te ter por perto. O Peter não é grande conversador! Sei que é mais fácil fazer perguntas por escrito. Estou a tentar descobrir algumas das respostas. Mãe
A Vida na Porta do Frigorífico não era apenas uma história sobre o cancro da mama, nem a história de uma relação. Foi, para mim, uma história acerca de duas mulheres que acabam por conhecer-se uma à outra, como eu vim a conhecer a minha mãe à medida que me fui tornando adulta...
Seja como for, éramos tão diferentes e nessa diferença tão perigosos um para o outro, que se alguém por acaso quisesse calcular por antecipação como eu, o filho que se desenvolvia devagar, e tu, o homem feito, se comportariam um em relação ao outro, poderia supor que tu simplesmente me esmagarias sob os pés, a ponto de não sobrar nada de mim.
Sempre me foi impossível entender a tua absoluta insensibilidade em relação à mágoa e ao vexame que conseguias causar-me com os teus juízos; era como se não tivesses qualquer ideia do teu poder... Eu vivia numa vergonha permanente...
Tu, porém, proibiste-me a palavra desde cedo,a tua ameaça « Nem te atrevas a ripostar!» e a mão levantada ainda hoje me acompanham desde essa altura.
Irritam-me os amores convencionais, seja qual for o vínculo. Os mais convencionais dos convencionalmente convencionais é o filho/a gostar do papá e da mamã. Pode ser que isso aconteça,regra geral acontece, ainda bem que sim, mas não é obrigatório. Já tive de me desculpar por gostar da carta de Kafka ao pai. " Não te chocou?" Não, não e não...Que provincianismo afetivo confundir todos os pais com o nosso querido e amado paizinho e todas as mães com a doce mulher que nos coube, em sorte ou destino, como transportadora para este mundo...
Êxitos e afastamentos...
Sentir-se superior e ver-se tratado pelo Destino como inferior aos ínfimos — quem pode vangloriar-se de estar homem em tal situação. Se eu um dia pudesse adquirir um rasgo tão grande de expressão, que concentrasse toda a arte em mim, escreveria uma apoteose do sono. Não sei de prazer maior, em toda a minha vida, que poder dormir. O apagamento integral da vida e da alma, o afastamento completo de tudo quanto é seres e gente, a noite sem memória nem ilusão, o não ter passado nem futuro (...)
Às vezes, sinto uma náusea física, que pode ser de me curvar, mas que transcende os números e a desilusão. A vida desgosta-me como um remédio inútil. E é então que eu sinto com visões claras como seria fácil o afastamento deste tédio se eu tivesse a simples força de o querer deveras afastar.
Vivemos pela acção, isto é, pela vontade. Aos que não sabemos querer — sejamos génios ou mendigos — irmana-nos a impotência. De que me serve citar-me génio se resulto ajudante de guarda-livros? Quando Cesário Verde fez dizer ao médico que era, não o Sr. Verde empregado no comércio, mas o poeta Cesário Verde, usou de um daqueles verbalismos do orgulho inútil que suam o cheiro da vaidade. O que ele foi sempre, coitado, foi o Sr. Verde empregado no comércio. O poeta nasceu depois de ele morrer, porque foi depois de ele morrer que nasceu a apreciação do poeta.
Agir, eis a inteligência verdadeira. Serei o que quiser. Mas tenho que querer o que for. O êxito está em ter êxito, e não em ter condições de êxito. Condições de palácio tem qualquer terra larga, mas onde estará o palácio se o não fizerem ali?
Tenho por intuição que para as criaturas como eu nenhuma circunstância material pode ser propícia, nenhum caso da vida ter uma solução favorável. Se já por estas razões me afasto da vida, esta contribui também para que eu me afaste. Aquelas somas de factos que, para os homens vulgares, inevitabilizariam o êxito, têm, quando me dizem respeito, um outro resultado qualquer, inesperado e adverso.
Onde um outro venceria, não pelo seu esforço, mas por uma inevitabilidade das coisas, eu nem por essa inevitabilidade, nem por esse esforço venço ou venceria. Nasci talvez espiritualmente, num dia curto de Inverno. Chegou cedo a noite ao meu ser. Só em frustração e abandono posso realizar a minha vida. No fundo, nada disto é estóico. É só nas palavras que há a nobreza do meu sofrimento. Queixo-me, como uma criada doente. Ralo-me como uma dona de casa. A minha vida é inteiramente fútil e inteiramente triste.
Só o Tédio, que é um afastamento, e a Arte, que é um desdém, douram de uma semelhança de contentamento...
Incompreendida vontade absorta
Em nada querer... Prolixo afastamento
Do escrúpulo e da vida do momento...
Mas é o fumo do cigarro o que mais espiritualmente me reconstrui momentos passados. Ele apenas roça a minha consciência de ter paladar. Por isso mais [...] me evoca as horas que morri, mais longínquas as faz presentes, mais nevoentas quando me envolvem, mais etéreas quando as corporizo. Um cigarro mentolado, um charuto barato toldam de suavidade alguns meus momentos. Com que subtil plausibilidade de sabor-aroma reergo os cenários mortos e empresto outra vez as [...] de um passado, tão século dezoito sempre pelo afastamento malicioso e cansado, tão medievais sempre pelo inevitavelmente perdido.
A minha vida, tragédia caída sob a pateada dos anjos e de que só o primeiro acto se representou.
Amigos, nenhum. Só uns conhecidos que julgam que simpatizam comigo e teriam talvez pena se um comboio me passasse por cima e o enterro fosse em dia de chuva. O prémio natural do meu afastamento da vida foi a incapacidade, que criei nos outros, de sentirem comigo. Em torno a mim há uma auréola de frieza, um halo de gelo que repele os outros. Ainda não consegui não sofrer com a minha solidão. Tão difícil é obter aquela distinção de espírito que permita ao isolamento ser um repouso sem angústia.(...)Compreendi que era impossível a alguém amar-me, a não ser que lhe faltasse de todo o senso estético — e então eu o desprezaria por isso; e que mesmo simpatizar comigo não podia passar de um capricho da indiferença alheia.
Os portões do meu afastamento abrangem para parques de infinito, mas ninguém passa por eles, nem no meu sonho — mas abertos sempre para o inútil e de ferro eternamente para o falso...
Tudo vai recomeçar...Sinto-o. "Queixo-me, como uma criada doente. Ralo-me como uma dona de casa. A minha vida é inteiramente fútil..."
Ele, que durante tanto tempo havia sido o dono da sua vontade, era agora o elemento passivo, receptivo, executivo, cuja vontade estava suspensa para que se pudesse realizar uma vontade comum que flutuava no ar sem estar expressa.
A liberdade existe e também a vontade existe; mas o livre -arbítrio não existe, embaterá no vácuo.pois uma vontade que tenha por alvo a própria liberdade.
Mas ele declarava insistentemente que isto dava no mesmo. A faculdade de se desembaraçar de si próprio, dizia ele, de se tornar um instrumento, de obedecer, no sentido mais absoluto e mais perfeito da palavra, era apenas o inverso do outro poder, da faculdade de querer e de comandar. Comandar e obedecer constituem juntos um só princípio, uma unidade indissolúvel. Aquele que sabe obedecer sabe comandar...
Nós vimo-la fraquejar sob os golpes repetidos, sob as intimações encarniçadas. Assistimos à queda desta fortaleza com um interesse objetivo, misturado a diversos sentimentos, com uma compaixão e alguma satisfação cruel. Se o compreendi bem, este senhor foi vencido por causa do caráter negativo de sua posição de combate. É verdade, a alma não pode viver de não querer. Não querer fazer alguma coisa é insuficiente para preencher uma vida. Não querer alguma coisa está bem próximo de não querer mais nada, e logo, de fazer assim mesmo o que uma outra vontade impõe.
Are we sleep-walking through our waking state or wake- walking through our dreams?
Pensar incomoda como andar à chuva Quando o vento cresce e parece que chove mais.
Ser amado é sentir que alguém gosta de nós de um modo diferente, saber que se tem um significado diferente, perceber que esse alguém deseja a nossa companhia porque ela é diferente. Amar é ser descoberto por alguém que , depois, procura e, sempre que encontra, descobre mais qualquer coisa que o faz desejar continuar a procurar.
Amar é ser cativado por um ser diferente e deixá-lo continuar a ser como é- não invadir a sua personalidade, não agredir a sua intimidade, nunca lhe retirar a liberdade de ficar ou de partir, de ir e de voltar...
Amar não tem nem poderá nunca ter a ver com casamento, com vida em comum, com repartir despesas: isso é coabitar, é um contrato como outro qualquer: "arrendo o apartamento x que inclui a pessoa y". Amar é procurar, descobrir...Ninguém procura no meio da banca da cozinha, ninguém procura o que está ali, rotineiramente, disponível, sempre, sempre disponível, como um objeto. Ninguém descobre o que vê todos, todos os dias...Isso pode ser muita coisa, isso pode ter muito nome bonito, mas não é amor...
O pastor amoroso perdeu o cajado, E as ovelhas tresmalharam-se pela encosta, E, de tanto pensar, nem tocou a flauta que trouxe para tocar. Ninguém lhe apareceu ou desapareceu. Nunca mais encontrou o cajado. Outros, praguejando contra ele, recolheram-lhe as ovelhas. Ninguém o tinha amado, afinal...
Alberto Caeiro :um pensador disfarçado de pastor...Um pensador que, afinal, desejou o amor? Um pensador que tem medo do amor?
Todos dias agora acordo com alegria e pena. Antigamente acordava sem sensação nenhuma; acordava. Tenho alegria e pena porque perco o que sonho E posso estar na realidade onde está o que sonho. Não sei o que hei-de fazer das minhas sensações. Não sei o que hei-de ser sozinho. Quero que ela me diga qualquer coisa para eu acordar de novo. Quem ama é diferente de quem é É a mesma pessoa sem ninguém.
Passei toda a noite, sem dormir, vendo, sem espaço, a figura dela, E vendo-a sempre de maneiras diferentes do que a encontro a ela. Faço pensamentos com a recordação do que ela é quando me fala, E em cada pensamento ela varia de acordo com a sua semelhança. Amar é pensar. E eu quase que me esqueço de sentir só de pensar nela. Não sei bem o que quero, mesmo dela, e eu não penso senão nela. Tenho uma grande distracção animada. Quando desejo encontrá-la Quase que prefiro não a encontrar, Para não ter que a deixar depois. Não sei bem o que quero, nem quero saber o que quero. Quero só Pensar nela. Não peço nada a ninguém, nem a ela, senão pensar.
Será este "pastor amoroso" fernando pessoa? Será que todos ocultamos "um pastor amoroso"? Será que é o medo de parecer frágil, sentimental, sensível que nos impele a esconder o "pastor amoroso"? Será que esse medo desendadeia uma raiva inexplicável?
O amor é uma companhia.
Já não sei andar só pelos caminhos,
Porque já não posso andar só.
Um pensamento visível faz-me andar mais depressa
E ver menos, e ao mesmo tempo gostar bem de ir vendo tudo.
Mesmo a ausência dela é uma coisa que está comigo.
E eu gosto tanto dela que não sei como a desejar.
Se a não vejo, imagino-a e sou forte como as árvores altas.
Mas se a vejo tremo, não sei o que é feito do que sinto na ausência dela.
Todo eu sou qualquer força que me abandona.
Toda a realidade olha para mim como um girassol com a cara dela no meio.
Quando eu não te tinha Amava a Natureza como um monge calmo a Cristo. Agora amo a Natureza Como um monge calmo à Virgem Maria, Religiosamente, a meu modo, como dantes, Mas de outra maneira mais comovida e próxima ... Vejo melhor os rios quando vou contigo Pelos campos até à beira dos rios; Sentado a teu lado reparando nas nuvens Reparo nelas melhor — Tu não me tiraste a Natureza ... Tu mudaste a Natureza ... Trouxeste-me a Natureza para o pé de mim, Por tu existires vejo-a melhor, mas a mesma, Por tu me amares, amo-a do mesmo modo, mas mais, Por tu me escolheres para te ter e te amar, Os meus olhos fitaram-na mais demoradamente Sobre todas as cousas. Não me arrependo do que fui outrora Porque ainda o sou.
Penso em ti e dentro de mim estou completo. Corre pelos vagos campos até mim uma brisa ligeira. Penso em ti, murmuro o teu nome; e não sou eu: sou feliz. Amanhã virás, andarás comigo a colher flores pelo campo, E eu andarei contigo pelos campos ver-te colher flores.
Agora que sinto amor Tenho interesse no que cheira.Nunca antes me interessou que uma flor tivesse cheiro. Agora sinto o perfume das flores como se visse uma coisa nova. Sei bem que elas cheiravam, como sei que existia. São coisas que se sabem por fora. Mas agora sei com a respiração da parte de trás da cabeça. Hoje as flores sabem-me bem num paladar que se cheira. Hoje às vezes acordo e cheiro antes de ver.
(...(Vejo melhor os rios quando vou contigo Pelos campos até à beira dos rios; Sentado a teu lado reparando nas nuvens reparo nelas melhor — Tu não me tiraste a Natureza...Tu mudaste a Natureza...Trouxeste-me a Natureza para o pé de mim, Por tu existires vejo-a melhor, mas a mesma, Por tu me amares, amo-a do mesmo modo, mas mais, Por tu me escolheres para te ter e te amar, Os meus olhos fitaram-na mais demoradamente Sobre todas as coisas. Não me arrependo do que fui outrora Porque ainda o sou.
Talvez quem vê bem não sirva para sentir E não agrada por estar muito antes das maneiras. É preciso ter modos para todas as coisas, E cada coisa tem o seu modo, e o amor também.... Amei, e não fui amado, o que só vi no fim, Porque não se é amado como se nasce mas como acontece. Ela continua tão bonita de cabelo e boca como dantes, E eu continuo como era dantes, sozinho no campo. Como se tivesse estado de cabeça baixa, Penso isto, e fico de cabeça alta E o dourado sol seca a vontade de lágrimas que não posso deixar de ter. Como o campo é vasto e o amor interior...! Olho, e esqueço, como seca onde foi água e nas árvores desfolha. Eu não sei falar porque estou a sentir. Estou a escutar a minha voz como se fosse de outra pessoa, E a minha voz fala dela como se ela é que falasse...
O pastor amoroso perdeu o cajado, E as ovelhas tresmalharam-se pela encosta, E, de tanto pensar, nem tocou a flauta que trouxe para tocar. Ninguém lhe apareceu ou desapareceu. Nunca mais encontrou o cajado. Outros, praguejando contra ele, recolheram-lhe as ovelhas. Ninguém o tinha amado, afinal...
Fechou os olhos, abandonando-se, de corpo e alma, sem consciência de outra coisa que não fosse a pressão tenebrosa dos seus lábios que se entreabriam suavemente. A sua pressão exercia-se tanto sobre o seu cérebro como sobre os seus lábios, como se fossem o veículo de um vago discurso; e, entre eles, sentiu uma pressão desconhecida e tímida, mais tenebrosa que o enlanguescimento do pecado, mais suave do que um som ou um perfume.
Uma tentativa inútil: andar atrás no tempo... Uma tentativa ainda mais inútil: andar atrás do tempo ... Uma atividade inútil: recordar...O tempo reduz a existência humana a uma inutilidade frustrante, sem qualquer sentido. O homem está condenado a ser inútil...
Será inútil dizer que quase tudo é inútil? Eis um problema.
Ser exacto em ciência é errar num tom de voz mais firme que os outros. Dito de outro modo: pegas no alvo com as tuas duas mãos e atiras o seu centro contra a lâmina da flecha.
Eis a exactidão científica.
Podem alcançar-se, a partir do ódio ou do amor, resultados científicos idênticos.
Embelezar é uma outra metodologia científica. A belez é um dos gritos de Eureka.
A linguagem utiliza a ciência para alcançar a ilusão da Verdade,tal como a linguagem utiliza a arte para alcançar a ilusão de uma certa beleza.
O olhar daquele que ama para o objecto do seu amor é igual ao olhar do cientista para o objecto do seu estudo.
Todos os animais são iguais, mas alguns animais são Is iguais do que outros.
Durante o ano inteiro os bichos trabalharam feito escravos. Mas trabalhavam felizes; não mediam esforços ou sacrifícios, cientes de que tudo quanto fizessem reverteria em benefício deles próprios e dos de sua espécie, que estavam por vir, e não em proveito de um bando de preguiçosos e aproveitadores seres humanos.
-Encaremos a realidade: a nossa vida é miserável, penosa e curta. Nascemos, somos alimentados apenas com a comida necessária para nos mantermos vivos, e aqueles de entre nós que têm capacidade para isso, são forçados a trabalhar até ao limite das suas forças; e, no preciso momento em que a nossa utilidade chega ao fim, somos abatidos com terrível crueldade. Nenhum animal em Inglaterra, depois do primeiro ano de idade, conhece o significado da felicidade ou do ócio.
O vazio desenhava desde sempre a forma do teu rosto
Todas as coisas serviram para nos ensinar
A ardente perfeição da tua ausência
Epidauro
O cardo floresce na claridade do dia. Na doçura do dia se abre o figo. Eis o país do exterior onde cada coisa é:
trazida à luz
trazida à liberdade da luz
trazida ao espanto da luz
Eis-me vestida de sol e de silêncio. Gritei para destruir o Minotauro e o palácio. Gritei para destruir a sombra azul do Minotauro. Porque ele é insaciável. Ele come dia após dia os anos da nossa vida. Bebe o sacrifício sangrento dos nossos dias. Come o sabor do nosso pão a nossa alegria do mar. Pode ser que tome a forma de um polvo como nos vasos de Cnossos. Então dirá que é o abismo do mar e a multiplicidade do real. Então dirá que é duplo. Que pode tornar-se pedra com a pedra alga com a alga. Que pode dobrar-se que pode desdobrar-se. Que os seus braços rodeiam. Que é circular. Mas de súbito verás que é um homem que traz em si próprio a violência do toiro. Só poderás ser liberta aqui na manhã d’Epidauro. Onde o ar toca o teu rosto para te reconhecer e a doçura da luz te parece imortal. A tua voz subirá sozinha as escadas de pedra pálida. E ao teu encontro regressará a teoria ordenada das sílabas — portadoras limpas da serenidade.
Assim o amor
Espantando meu olhar com teus cabelos
Espantando meu olhar com teus cavalos
E grandes praias fluidas avenidas
Tardes que oscilavam demoradas
E um confuso rumor de obscuras vidas
E o tempo sentado no limiar dos campos
Com seu fuso sua faca e seus novelos
Em vão busquei eterna luz precisa
Ítaca
Quando as luzes da noite se reflectirem imóveis nas águas verdes de Brindisi
Deixarás o cais confuso onde se agitam palavras passos remos e guindastes
A alegria estará em ti acesa como um fruto
Irás à proa entre os negrumes da noite
Sem nenhum vento sem nenhuma brisa só um sussurrar de búzio no silêncio
Mas pelo súbito balanço pressentirás os cabos
Quando o barco rolar na escuridão fechada
Estarás perdida no interior da noite no respirar do mar
Porque esta é a vigília de um segundo nascimento
O sol rente ao mar te acordará no intenso azul
Subirás devagar como os ressuscitados
Terás recuperado o teu selo a tua sabedoria inicial
Emergirás confirmada e reunida
Espantada e jovem como as estátuas arcaicas
Com os gestos enrolados ainda nas dobras do teu manto
Janela rente ao mar e rente ao tempo
— Ó mãos poisadas sobre um Junho antigo
De ano em ano de hora em hora
Caminho para a frente e cega me persigo
Quem me consolará do meu corpo sepultado?
Não sei de que cor são os navios
quando naufragam no meio dos teus braços
sei que há um corpo nunca encontrado algures
e que esse corpo vivo é o teu corpo imaterial (...)
Não sei de que cor é essa linha
onde se cruza a lua e a mastreação
mas sei que em cada rua há uma esquina
uma abertura entre a rotina e a maravilha
há uma hora de fogo para o azul
a hora em que te encontro e não te encontro
há um ângulo ao contrário
uma geometria mágica onde tudo pode ser possível
há um mar imaginário aberto em cada página
não me venham dizer que nunca mais
as rotas nascem do desejo
e eu quero o cruzeiro do sul das tuas mãos
quero o teu nome escrito nas marés
nesta cidade onde no sítio mais absurdo
num sentido proibido ou num semáforo
todos os poentes me dizem quem tu és.
Aula de Matemática
Prá finalizar, vamos recordar
Que menos por menos dá mais amor
Se vão as paralelas
Ao infinito se encontrar
Por que demoram tanto dois corações a se integrar?
Se infinitamente, incomensuravelmente,
Eu estou perdidamente apaixonado, apaixonado por você...
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