Não é neccessário vivermos ao lado de alguém para nos sentirmos ligados a esse alguém mais do que a qualquer outra pessoa...

domingo, 1 de janeiro de 2017

Depressões , Inércias e AbSurdos...

Que estou eu para aqui a fazer, toda a gente a festejar e a divertir-se, em suas casas, nas ruas, nos bailes, nos teatros e nos cinemas, nos casinos, nos cabarés, ao menos que eu vá ao Rossio ver o relógio da estação central, o olho da tempo, o ciclope que não atira com penedos mas com minutos e segundos, tão ásperos e pesados como eles, e que eu tenho de ir aguentando, como aguentamos todos nós, até que um último e todos somados me rebentem com as tábuas do barco, mas assim não, a olhar para o relógio, aqui, aqui sentado, sobre mim próprio dobrado, aqui sentado, e, tendo rematado o solilóquio, vestiu a gabardina, pôs o chapéu, deitou mão ao guardachuva,enérgico, um homem é logo outro homem quando toma uma decisão.(...)Ricardo Reis regressa ao hotel. Não faltam por essa cidade lugares onde a festa continue, com luzes, vinho espumoso, ou verdadeiro champanhe, e animação delirante, como os jornais não se esquecem de escrever, mulheres fáceis ou não tanto, directas e demonstrativas umas, outras que não dispensam certos ritos de aproximação, porém este homem não é um destemido experimentador de aventuras, conhece-as de ouvir contar, se ousou alguma vez, foi entrada por saída...

Depressões e inércias...

"Ano novo, vida nova...". Imaginei, por momentos, um outro romance, tipo saramago, um ensaio sobre a verdade, em que todos os homens perdessem a capacidade de mentir... Seria o caos social e existencial, seria o fim do mundo, deste mundo. Nestes períodos obrigatoriamente festivos para a outra gente, em que a minha faceta antissocial se intensifica, sinto uma vontade incontrolável de dizer tudo o que penso aos ídolos de pés de barro da terrinha medíocre onde me enterrei.
E eu? Será que aguentaria as consequências das minhas verdades? Será que resistiria às verdades que ia ter de ouvir?

A nossa verdade é uma mentira...

Encontrei uma solução para me ocupar na época depressiva do fim do ano : registei as mensagens votivas que iam aparecendo no facebook. Após uma breve análise, uma evidência: predominam as imagens. Sim, porque uma imagem vale por mil palavras; uma imagem com vocábulos cativantes, em português do brasil, então, tem um impacto incomensurável, mas a língua oficial é, indiscutivelmente, o inglês...Pelos vistos, o português desta velha europa está tão fora de moda como o francês, outrora trés chic, que só subsiste no réveillon...
Fora tão persistente e perseverante como o senhor josé, organizaria um dossiê mais extenso que o processo da casa pia ou o do engenheiro josé sócrates... Assim, para memória futura, fica apenas uma notícia assaz insólita:" Santuários de Fátima e do Cristo-Rei marcam «réveillon» com oração e fogo-de-artifício" ; maria leal, uma coisa repelente que dizem que canta, tem estatuto de convidada num programa que já foi credível...Adoro a comiseração superior com que as pseudointelectuaislisboetasdeumapseudoesquerdafestiva, sempremuitoeufóricassebempagas pactuam e promovem a mediocridade porque é "giro"...

31 de dezembro ,23:30 - continente e ilhas vão ser iluminados por fogo de artifício que, "este ano" , será , certamente, " o mais espetacular de sempre".
Como é que há quem faça quilómetros, atravesse oceanos, para ver fogo de artifício? Como é que há quem saia de casa para ir gelar no meio de milhares de palermas a olhar para o fogo fátuo dos pirotécnicos...É uma das minhas inúmeras implicâncias: embirro com esta arte sagrada no norte do país...

Pelo que acabei de constatar, esta importante medida cultural foi implementada também em alcobaça, para gáudio de todos: do ps ao cds, tudo se delicia com tamanha originalidade...Que ideia brilhante!!

Assim que se entrou no novo ano e, como é hábito, o silêncio foi interrompido por um foguetório insuportável...
Em criança, dizem, com o estalar estridente dos foguetes, fugia, assustada, tapava os ouvidos e começava a chorar. Hoje, já não me assusto, embora ainda estremeça perante esta manifestação ruidosa de euforia com que se pretende alegrar festas populares e outras efemérides desinteressantes. Nada há de mais primitivo e grosseiro do que esta sonora prova inequívoca de que o homem, intrinsecamente, pouco ou nada evoluiu...
Detesto foguetes porque quebram a magia de estar sozinha a sentir o pensamento. Sim porque há pensamentos que se captam com os cinco sentidos: veem-se como formas invisíveis; ouvem-se como significantes imaginários; cheiram-se como aromas inodoros; tocam-se como corpos palpáveis; saboreiam-se como matérias liquefeitas. Terei de refletir melhor sobre esta formulação do sensacionismo...Do "sensacionalismo", como diziam os maus alunos, que confundiam a ansiedade excessiva de álvaro de campos com jornais do tipo correio da manhã...Maus alunos e não só: na digna sala do indigno corpo docente, ouviam-se barbarismos como, "sensacionalismo de caeiro".(Nada melhor do que a ironia para atenuar a emoção ...)

De novo penso no título de uma narrativa, tipo GMT: kafka, foguetes e fogo de artifício - um banquete de sensações. A ação desenrola-se numa noite de fim de ano , em madrid ; as personagens são dois desconhecidos que nada têm em comum, exceto a indiferença face aos festejos e terem na mão um livro de kafka. Encontram-se na plaza del rey e o frio gelado da noite leva-os ao cabaré casablanca... Fora eu inspirada e ainda daqui saía um 2016, digno émulo do 1984 ou do 2666. Quem sabe? Pensando melhor, talvez pudesse originar um drama estático, inspirado em pessoa... Não permitirei, todavia, a intromissão de um terceiro velador: só pode ter dois intervenientes...


Um apelo anti -inércia, sem o sabor irritante da convenção, numa data convencional:

Para todos os anos que passaram e para os tantos que nos faltam

Dá pontapés de abraços
abraços aos molhos temperados de sorrisos
sorrisos do coração aos saltos
saltos tantos para partir pratos
na vertigem da mudança do tempo ouve os táxis a buzinar na estação
se necessário bebe
saúda o amor


Uma das preocupações maiores do homem, atingida a idade lúcida, é talhar-se, agente e pensante, à imagem e semelhança do seu ideal. Posto que nenhum ideal encarna tanto como o da inércia toda a lógica da nossa aristocracia de alma ante as ruidosidades e (...) exteriores modernas, o Inerte, o Inactivo deve ser o nosso ideal. Fútil? Talvez. Mas isso só preocupará como um mal aqueles para quem a futilidade é um atractivo.

Não achei razão nem lógica senão a um cepticismo que nem sequer busca uma lógica para se defender. Em curar-me disto não pensei — porque me havia eu de curar disso. E o que era ser são? Que certeza tinha eu que esse estado de alma deva pertencer à doença? Quem nos afirma que, a ser doença, a doença não era mais desejável, ou mais lógica ou mais (...)do que a saúde? A ser a saúde preferível, porque era eu doente se não por naturalmente o ser, e se naturalmente o era por que ir contra a Natureza, que para algum fim, se fim ela tem, me quereria decerto doente?Nunca encontrei argumentos senão para a inércia. Dia a dia mais e mais se infiltrou em mim a consciência sombria da minha inércia de abdicador. Procurar modos de inércia, apostar-me a fugir a todo o esforço quanto a mim, a toda a responsabilidade social(...) Esforcei-me porque todos os meus pensamentos, todos os capítulos quotidianos da minha experiência me fornecessem apenas sensações. Criei à minha vida uma orientação estética. E orientei essa estética para puramente individual. Fi-la minha apenas. Apliquei-me depois, no decurso procurado do meu hedonismo interior, a furtar-me às sensibilidades sociais. Lentamente me couracei contra o sentimento do ridículo. Ensinei-me a ser insensível quer para os apelos dos instintos, quer para as solicitações (...) Reduzi ao mínimo o meu contacto com os outros. Fiz o que pude para perder toda a afeição à vida (...) Do próprio desejo da glória lentamente me despi, como quem cheio de cansaço se despe para repousar.

Cansamo-nos de tudo, excepto de compreender.(...) Cansamo-nos de pensar para chegar a uma conclusão, porque, quanto mais se pensa, mais se analise, mais se distingue, menos se chega a uma conclusão. Caímos então naquele estado de inércia em que o mais que queremos é compreender bem o que é exposto — uma atitude estética, pois que queremos compreender sem nos interessar, sem que nos importe que o compreendido seja ou não verdadeiro, sem que vejamos mais no que compreendemos senão a forma exacta como foi exposto, a posição de beleza racional que tem para nós. Cansamo-nos de pensar, de ter opiniões nossas, de querer pensar para agir. Não nos cansamos, porém, de ter, ainda que transitoriamente, as opiniões alheias, para o único fim de sentir o seu influxo e não seguir o seu impulso.

A minha impaciência constantemente me quer arrancar desse sossego, e a minha inércia constantemente me detém nele. Medito, então, em uma modorra de físico, que se parece com volúpia apenas como o sussurro de vento lembra vozes, na eterna insaciabilidade dos meus desejos vagos, na perene instabilidade das minhas ânsias impossíveis. Sofro, principalmente, do mal de poder sofrer. Falta-me qualquer coisa que não desejo e sofro por isso não ser propriamente sofrer.

Desejaria construir um código de inércia para os seres superiores nas sociedades modernas.A sociedade governar-se-ia espontaneamente e a si própria, se não contivesse gente de sensibilidade e de inteligência. Acreditem que é a única coisa que a prejudica. As sociedades primitivas tinham uma feliz existência mais ou menos assim. Pena é que a expulsão dos superiores da sociedade resultaria em eles morrerem, porque não sabem trabalhar. E talvez morressem de tédio, por não haver espaços de estupidez entre eles. Mas eu falo do ponto de vista da felicidade humana. Cada superior que se manifestasse na sociedade seria expulso para a ilha, a Cidade dos superiores. Os superiores seriam alimentados, como animais em jaula, pela sociedade normal. Acreditem: se não houvesse gente inteligente que apontasse os vários mal-estares humanos, a humanidade não dava por eles. E as criaturas da sensibilidade fazem sofrer os outros por simpatia. Por enquanto, visto que vivemos em sociedade, o único dever dos seres superiores é reduzir ao mínimo a sua participação na vida da tribo.(...) Toda a sua atitude deve ser colocar a alma de modo que a passagem das coisas, dos acontecimentos não o incomodem. Se o não fizer terá que se interessar pelos outros, para cuidar de si próprio.

Sempre que podem, sentam-se defronte do espelho. Falam connosco e namoram-se de olhos a si mesmos. Por vezes, como nos namoros, distraem-se da conversa. Fui-lhes sempre simpático, porque a minha aversão adulta pelo meu aspecto me compeliu sempre a escolher o espelho como coisa para onde virasse as costas. Assim, e eles de instinto o reconheciam tratando-me sempre bem, eu era o rapaz escutador que lhes deixava sempre livres a vaidade e a tribuna. Em conjunto não eram maus rapazes; particularmente eram melhores e piores. Tinham generosidades e ternuras insuspeitáveis a um tirador de médias, baixezas e sordidezes difíceis de adivinhar por qualquer ente humano normal. Miséria, inveja e ilusão — assim os resumo, e nisso resumiria aquela parte desse ambiente que se infiltra na obra dos homens de valor que alguma vez fizeram dessa estância de ressaca um pousio de enganados.(...) Uns têm graça, outros têm só graça, outros ainda não existem. A graça dos cafés divide-se em ditos de espírito sobre os ausentes e ditos de insolência aos presentes. A este género de espírito chama-se ordinariamente apenas grosseria. Nada há mais indicador da pobreza da mente do que não saber fazer espírito senão com pessoas.

AbSurdos...

Penso em ti no silêncio da noite, quando tudo é nada, e os ruídos que há no silêncio são o próprio silêncio, Então, sozinho de mim, passageiro parado (...) inutilmente penso em ti.(...) E é neste sossego absurdo de mim e de tudo que penso em ti.

Em nós tudo é falso...A única verdade é o que eu sinto perante a nossa falsidade.

Visto que talvez nem tudo seja falso, que nada, ó meu amor, nos cure do prazer quase-espasmo de mentir. Requinte último! Perversão máxima! A mentira absurda tem todo o encanto do perverso com o último e maior encanto de ser inocente. A perversão de propósito inocente — quem excederá, ó o requinte máximo disto? A perversão que nem aspira a dar-nos gozo, que nem tem a fúria de nos causar dor, que cai para o chão entre o prazer e a dor, inútil e absurda como um brinquedo mal feito com que um adulto quisesse divertir-se! E quando a mentira começar a dar-nos prazer, falemos a verdade para lhe mentirmos. E quando nos causar angústia, paremos, para que o sofrimento nos não signifique nem perversamente prazer...(...)E eu que digo isto — por que escrevo eu este livro? Porque o reconheço imperfeito. Calado seria a perfeição; escrito, imperfeiçoa-se; por isso o escrevo. E, sobretudo, porque defendo a inutilidade, o absurdo — eu escrevo este livro para mentir a mim próprio, para trair a minha própria teoria. E a suprema glória disto tudo, meu amor, é pensar que talvez isto não seja verdade, nem eu o creia verdadeiro.

ABSURDO - Tornarmo-nos esfinges, ainda que falsas, até chegarmos ao ponto de já não sabermos quem somos. Porque, de resto, nós o que somos é esfinges falsas e não sabemos o que somos realmente. O único modo de estarmos de acordo com a vida é estarmos em desacordo com nós próprios. O absurdo é (o) divino. Estabelecer teorias, pensando-as paciente e honestamente, só para depois agirmos contra elas — agirmos e justificar as nossas acções com teorias que as condenam — talhar um caminho na vida, e em seguida agir contrariamente a seguir por esse caminho. Ter todos os gestos e todas as atitudes de qualquer coisa que nem somos nem pretendemos ser, nem pretendemos ser tomados como sendo.Comprar livros para não os ler; ir a concertos nem para ouvir a música nem para ver quem lá está; dar longos passeios por estar farto de andar e ir passar dias no campo só porque o campo nos aborrece.

APOTEOSE DO ABSURDO - Falo a sério e tristemente; este assunto não é para alegria, porque as alegrias do sonho são contraditórias e entristecidas e por isso aprazíveis de uma misteriosa maneira especial. Sigo às vezes em mim, imparcialmente, essas coisas deliciosas e absurdas que eu não posso poder ver, porque são ilógicas à vista — pontes sem donde nem para onde, estradas sem princípio nem fim, paisagens invertidas (...) — o absurdo, o ilógico, o contraditório, tudo quanto nos desliga e afasta do real e do seu séquito disforme de pensamentos práticos e sentimentos humanos e desejos de acção útil e profícua. O absurdo salva de chegar apesar do tédio àquele estado de alma em que começa por se sentir a doce fúria de sonhar. E eu chego a ter não sei que misterioso modo de visionar esses absurdos — não sei explicar, mas eu vejo essas coisas inconcebíveis à visão.

CASCATA - A criança sabe que a boneca não é real, e trata-a como real até chorá-la e se desgostar quando se parte. A arte da criança é a de irrealizar. Bendita essa idade errada da vida, quando se nega a vida por não haver sexo, quando se nega a realidade por brincar, tomando por reais a coisas que o não são! Que eu seja volvido criança e o fique sempre, sem que me importem os valores que os homens dão às coisas nem as relações que os homens estabelecem entre elas. Eu, quando era pequeno, punha muitas vezes os soldados de chumbo de pernas para o ar...(...) Acordo para saber que existo... Um grande tédio incerto gorgoleja erradamente fresco ao ouvido, pelas cascatas, cortiçada abaixo, lá ao fundo estúpido do jardim.

Há quem, estando distraído, escreva riscos e nomes absurdos no mata-borrão de cantos entalados. Estas páginas são os rabiscos da minha inconsciência intelectual de mim. Traço-as numa modorra de me sentir, como um gato ao sol, e releio-as, por vezes, com um vago pasmo tardio, como o de me haver lembrado de uma coisa que sempre esquecera.Quando escrevo, visito-me solenemente. Tenho salas especiais, recordadas por outrem em interstícios da figuração, onde me deleito analisando o que não sinto, e me examino como a um quadro na sombra.

Se penso, tudo me parece absurdo; se sinto, tudo me parece estranho; se quero, o que quer é qualquer coisa em mim. Sempre que em mim há acção, reconheço que não fui eu. Se sonho, parece que me escrevem. Se sinto, parece que me pintam. Se quero, parece que me põem num veículo, como a mercadoria que se envia, e que sigo com um movimento que julgo próprio para onde não quis que fosse senão depois de lá estar.

Mas este horror que hoje me anula é menos nobre e mais roedor. É uma vontade de não querer ter pensamento, um desejo de nunca ter sido nada, um desespero consciente de todas as células do corpo e da alma. E o sentimento súbito de se estar enclausurado numa cela infinita. Para onde pensar em fugir, se só a cela é tudo? E então vem-me o desejo transbordante, absurdo, de uma espécie de satanismo que precedeu Satan, de que um dia — um dia sem tempo nem substância — se encontre uma fuga para fora de Deus e o mais profundo de nós deixe, não sei como, de fazer parte do ser ou do não-ser.

Etimologicamente, o vocábulo absurdo tem origem na linguagem musical... Em latim, ab - surdus significava "fora do tom ou da harmonia" , portanto, " som desagradável ao ouvido". Por extensão semântica, este adjetivo, derivado de surdo, adquire um novo sentido e passa a significar " irracional, inconcebível, incompreensível, ilógico, contraditório, incongruente". Em síntese, a palavra que originalmente se relacionava com o ouvido, portanto com o sensorial, deslocou-se para o domínio mental. Esta mudança ocorre ainda no latim, como se pode atestar em cícero, o que comprova a tendência dos romanos para associarem a atividade sensorial a faculdades intelectuais. Outros exemplos: obediente, "aquele que ouve"; vidente, " aquele que vê"...

O maior absurdo é a estupidez de um ser lúcido e inteligente " destoar" ... Nada é mais absurdo do que a consciência do absurdo e a incapacidade de reagir...


Hans Hansen gostava um bocadinho dele quando estavam só os dois, ele sabia-o. Mas assim que um terceiro entrava em cena,envergonhava-se e sacrificava-o. E ele ficava de novo sozinho. Pensou no rei Filipe.; O rei tinha chorado.


Hans leria o Don Carlos* e então teriam algo só deles, algo sobre o qual nem j. , nem qualquer outro poderiam conversar. Que bem se compreendiam um ao outro. Quam sabe, conseguiria também levá-lo a escrever versos... Não, não, isso ele não queria. Hana não devia tornar-se parecido com ele, devia permanecer como era, tão claro e forte como todos o amavam, e Tonio mais do que os outros.



* Don Carlos , uma obra de schiller, enquadra-se ,pelo tema, no movimento romântico" Sturm und Drang", mas, pela forma, apresenta uma estrutura clássica, pois é constituído por cinco atos. O argumento baseia-se no amor do píncipe don carlos por élisabeth de valois, mulher de seu pai, filipe II. O rei,um tirano dominado pelos ciúmes, acabará por mandar matar o seu filho.

*Don Carlos é uma ópera em cinco atos, composta por verdi, com libreto, em francês, de camille du locle e joseph méry, baseada na peça Don Carlos, infante de espanha, de schiller. A história é baseada em conflitos na vida de carlos, príncipe das astúrias, após o seu noivado com elisabeth de valois que acabou por casar com o pai de carlos, filipe II de espanha, como parte do tratado de paz que terminou a guerra italiana de 1551-1559 entre as Casas de habsburgo e valois.


Pois ele tinha-se tornado esperto e adulto, percebera o que havia de especial em si e estava cheio de escárnio pela existência baixa e grosseira que tanto tempo o tinha conservado no seu meio.

Tinha um livro sobre os joelhos , mas não lia uma única linha. Saboreava um profundo esquecimento, uma suspensão redentora sobre o espaço e tempo e só por vezes sentia como se o seu coração fosse atravessado por uma dor , um curto e agudo sentimento de saudade ou arrependimento; mas estava demasiado indolente e ensimesmado para se interrogar sobre o nome ou origem de tal sensação.

É necessário deixar de algum modo de fazer parte da humanidade, ser algo inumano, assumir uma posição estranhamente distante e imparcial em relação ao humano, para que se tenha condições e, acima de tudo, vontade de representá-lo, de jogar com ele, configurá-lo com bom gosto e impacto.[…]A partir do momento em que se torna homem e começa a sentir, o artista está acabado.

Há algo a que chamo náusea do conhecimento, Lisaweta. Um estado em que basta ao homem ver algo com clareza para se sentir mortalmente repugnado (e sem nenhuma disposição para perdoar), o caso de Hamlet, o dinamarquês, esse literato típico. Ele sabia o que significava ser levado ao conhecimento sem ter nascido para isso. Ver claro, ainda que através doi véu de lágrimas do sentimento, reconhecer, notar, observar e ter de deixar de lado com um sorriso aquilo que se observou ainda no momento em que as mãos se estreitam, os lábios se unem, o olhar se extingue cego pelo sentimento… Isso é infame, Lisaweta, é vil, é revoltante… Mas de que adianta revoltar -se?

Está muito longe de ser um artista, minha cara, aquele cuja paixão suprema e mais profunda é o refinado, o excêntrico, o satânico, aquele que desconhece o anseio nostálgico da inocência, da simplicidade, da vida e de um pouco de amizade, dedicação, confiança e felicidade humana.

Encontro-me entre dois mundos e não me sinto bem em nenhum e por isso as coisas são para mim um pouco difíceis. Vocês, os artistas, chamam -me burguês, e os burgueses são tentados a prender-me…não sei qual dos dois me ofende mais amargamente.

Mergulho o meu olhar num mundo ainda por nascer, apenas um esboço que precisa ser ordenado e configurado, vejo um enxame de sombras humanas que acenam para mim para que eu as exorcize e liberte: figuras trágicas e figuras ridículas, e outras que são as duas coisas aos mesmo tempo – e por estas tenho especial afeição. Mas o meu amor mais profundo e oculto pertence a esses seres de vida límpida, aos felizes amáveis e comuns.(...) Não troce deste amor, Lisaweta; ele é bom e fecundo. É feito de nostalgia ,de uma , inveja melancólica, de um leve toque de desprezo, de uma felicidade muito casta.


O que é o Absurdo?. O absurdo é a razão lúcida que constata os seus limites.

O último absurdo ou o absurdo? Às 13h55m de 4 de janeiro de 1960, um automóvel sai da estrada, a pouco mais de cem quilómetros de Paris. À direita do motorista , com um bilhete de comboio no bolso, está Albert Camus.

A maneira mais absurda de se morrer é de acidente de carro...

Chega sempre um momento na história em que quem se atreve a dizer que dois e dois são quatro é condenado à morte.

Não lhe parece um grande atrevimento da sua parte escrever um livro passado num continente que não é o seu, num século que não lhe pertence, o XIX, ainda por cima abordando um tema tão delicado como a escravatura ou a religião?

Talvez. Outros fá-lo-iam certamente muito melhor. Em relação a esses o que eu sinto não é inveja, mas um embaraço que me tolhe… Ainda assim, posso dizer que a verdade não me interessa grande coisa. Como dizia o velho Aristóteles só a verosimilhança serve ao drama. Só a ficção tem de fazer sentido. A vida, já se sabe, não tem sentido nenhum. E eu neste romance sou uma espécie de Deus, criei o meu próprio universo, só espero que ele seja coerente com os parâmetros que eu própria defini… Mas se a realidade está também ela tão cheia de absurdos, achei que mais verosímil que este deus, que sou eu própria, também criasse o seus próprios absurdos…


Mas afinal Não se Pode Morar nos Olhos de Um Gato é um livro sobre quê?

Sobre alteridade. Sobre a dificuldade em nos colocarmos na pele daquele que está em posição desfavorável. Sobre a facilidade com que julgamos o outro com base na cor da pele, na aparência física e intelectual, na ascendência social – ou seja, julgamos o outro com base naquilo que somos. E isso nunca pode dar bons resultados. E depois acontecem imensas coisas.


Post scriptum: não fui à casablanca, mas escrevi mais uma página do meu romance...

A vida está cheia de uma infinidade de absurdos que nem sequer precisam de parecer verosímeis porque são verdadeiros.

ABSURDO
Tornarmo-nos esfinges, ainda que falsas, até chegarmos ao ponto de já não sabermos quem somos. Porque, de resto, nós o que somos é esfinges falsas e não sabemos o que somos realmente. O único modo de estarmos de acordo com a vida é estarmos em desacordo com nós próprios. O absurdo é (o) divino. Estabelecer teorias, pensando-as paciente e honestamente, só para depois agirmos contra elas — agirmos e justificar as nossas acções com teorias que as condenam — talhar um caminho na vida, e em seguida agir contrariamente a seguir por esse caminho. Ter todos os gestos e todas as atitudes de qualquer coisa que nem somos nem pretendemos ser, nem pretendemos ser tomados como sendo. Comprar livros para não os ler; ir a concertos nem para ouvir a música nem para ver quem lá está; dar longos passeios por estar farto de andar e ir passar dias no campo só porque o campo nos aborrece.



Um mundo que se pode explicar mesmo que com parcas razões é um mundo familiar. Ao contrário, porém, num universo subitamente privado de luzes ou ilusões, o homem sente-se um estrangeiro. Esse exílio não tem saída, pois é destituído das lembranças de uma pátria distante ou da esperança de uma terra prometida. Esse divórcio entre o homem e sua vida, entre o ator e o seu cenário é que é propriamente o sentimento do absurdo.

Mas só há um mundo. A felicidade e o absurdo são dois filhos da mesma terra. São inseparáveis. O erro seria dizer que a felicidade nasce forçosamente da descoberta absurda. Acontece também que o sentimento do absurdo nasça da felicidade. - Acho que tudo está bem-, diz Édipo e essa frase é sagrada. Ressoa no universo altivo e limitado do homem. Ensina que nem tudo está perdido, que nem tudo foi esgotado. Expulsa deste mundo um deus que nele entrara com a insatisfação e o gosto das dores Inúteis. Faz do destino uma questão do homem, que deve ser tratado entre homens. Toda a alegria silenciosa de Sísifo aqui reside. O seu destino pertence-lhe.

Falo a sério e tristemente; este assunto não é para alegria, porque as alegrias do sonho são contraditórias e entristecidas e por isso aprazíveis de uma misteriosa maneira especial.
Sigo às vezes em mim, imparcialmente, essas coisas deliciosas e absurdas que eu não posso poder ver, porque são ilógicas à vista — pontes sem donde nem para onde, estradas sem princípio nem fim, paisagens invertidas (...) — o absurdo, o ilógico, o contraditório, tudo quanto nos desliga e afasta do real e do seu séquito disforme de pensamentos práticos e sentimentos humanos e desejos de acção útil e profícua. O absurdo salva de chegar apesar do tédio àquele estado de alma em que começa por se sentir a doce fúria de sonhar.
E eu chego a ter não sei que misterioso modo de visionar esses absurdos — não sei explicar, mas eu vejo essas coisas inconcebíveis à visão.


A mania do absurdo e do paradoxo é o animal spirits dos tristes. Como o homem normal, diz disparates por vitalidade, e por sangue dá palmadas nas costas de outros, os incapazes de entusiasmo e de alegria dão cambalhotas na inteligência, a seu frio modo fazem os gestos quentes da vida.

Hoje estou no fundo de uma depressão sem fundo. O absurdo da frase falará por mim. Estou num daqueles dias em que nunca tive futuro. Há só um presente imóvel com um muro de angústia em torno...Isto não é bem loucura, mas a loucura deve dar um abandono ao com que se sofre, um gozo astucioso dos solavancos da alma, não muito diferentes destes.

Como as grandes obras, os sentimentos profundos sempre significam mais do que o que têm consciência de dizer. A constância de um movimento ou de uma repulsão dentro da alma reconhece -se em hábitos de fazer ou de pensar e persegue-se em consequências que a própria alma ignora. Os grandes sentimentos trazem junto com eles o seu universo, esplêndido ou miserável. Com a sua paixão, aclaram um mundo exclusivo onde reencontram o seu próprio clima. Há um universo do ciúme, da ambição, do egoísmo ou da generosidade. Um universo, isto é, uma metafísica e um estado de espírito. O que é verdadeiro para sentimentos já especializados sê -lo-á mais ainda para emoções, no fundo, a um tempo tão indeterminadas, tão confusas e tão “certas”, tão distantes e tão “presentes” quanto aquelas que o belo nos desperta ou que o absurdo nos suscita.

Antes de encontrar o absurdo, o homem quotidiano vive com finalidades, conta com o amanhã. Age como se fosse livre. Vislumbrado o absurdo, tudo se abala. A maneira de agir como se tudo fosse provido de um sentido encontra-se desmentida pelo absurdo de uma morte possível. Pensar no futuro, fixar um objetivo, ter preferências, tudo isso impõe a crença na liberdade. Mas, no momento absurdo, essa liberdade de Ser, que é a única a poder fundar uma Verdade, não existe. A morte revela-se como única realidade.

Absurdemos a vida, de leste a oeste.

Afinal Que vida fiz eu da vida? Nada. Tudo interstícios, Tudo aproximações, Tudo função do irregular e do absurdo, Tudo nada.

A imaginabilidade é um critério para a absurdidade.
A imaginação mede-se, quantifica-se, através de uma distância que vai do máximo de previsibilidade ...até ao máximo de imprevisibilidade e de impossibilidade de existência no mundo.

Esta flor é como o meu sentir, não é impossível, mas é de uma previsibilidade de um grau tão ínfimo que confina com o absurdo.

Decidir imaginar é precisamente decidir ver de outra maneira.

O absurdo perfeito tenta ser mudo, mas o silêncio possui uma das linguagens mais ensurdecedoras quando se trata de rejeição e de indiferença perante outrem....


Absurdemos a vida, de leste a oeste.

Afinal Que vida fiz eu da vida? Nada. Tudo interstícios, Tudo aproximações, Tudo função do irregular e do absurdo, Tudo nada.

A imaginabilidade é um critério para a absurdidade.
A imaginação mede-se, quantifica-se, através de uma distância que vai do máximo de previsibilidade ...até ao máximo de imprevisibilidade e de impossibilidade de existência no mundo.

Esta flor é como o meu sentir, não é impossível, mas é de uma previsibilidade de um grau tão ínfimo que confina com o absurdo.

Decidir imaginar é precisamente decidir ver de outra maneira.

O absurdo perfeito tenta ser mudo, mas o silêncio possui uma das linguagens mais ensurdecedoras quando se trata de rejeição e de indiferença perante outrem....



Um mundo que se pode explicar mesmo que com parcas razões é um mundo familiar. Ao contrário, porém, num universo subitamente privado de luzes ou ilusões, o homem sente-se um estrangeiro. Esse exílio não tem saída, pois é destituído das lembranças de uma pátria distante ou da esperança de uma terra prometida. Esse divórcio entre o homem e sua vida, entre o ator e o seu cenário é que é propriamente o sentimento do absurdo.

Mas só há um mundo. A felicidade e o absurdo são dois filhos da mesma terra. São inseparáveis. O erro seria dizer que a felicidade nasce forçosamente da descoberta absurda. Acontece também que o sentimento do absurdo nasça da felicidade. - Acho que tudo está bem-, diz Édipo e essa frase é sagrada. Ressoa no universo altivo e limitado do homem. Ensina que nem tudo está perdido, que nem tudo foi esgotado. Expulsa deste mundo um deus que nele entrara com a insatisfação e o gosto das dores Inúteis. Faz do destino uma questão do homem, que deve ser tratado entre homens. Toda a alegria silenciosa de Sísifo aqui reside. O seu destino pertence-lhe.

Falo a sério e tristemente; este assunto não é para alegria, porque as alegrias do sonho são contraditórias e entristecidas e por isso aprazíveis de uma misteriosa maneira especial.
Sigo às vezes em mim, imparcialmente, essas coisas deliciosas e absurdas que eu não posso poder ver, porque são ilógicas à vista — pontes sem donde nem para onde, estradas sem princípio nem fim, paisagens invertidas (...) — o absurdo, o ilógico, o contraditório, tudo quanto nos desliga e afasta do real e do seu séquito disforme de pensamentos práticos e sentimentos humanos e desejos de acção útil e profícua. O absurdo salva de chegar apesar do tédio àquele estado de alma em que começa por se sentir a doce fúria de sonhar.
E eu chego a ter não sei que misterioso modo de visionar esses absurdos — não sei explicar, mas eu vejo essas coisas inconcebíveis à visão.


A mania do absurdo e do paradoxo é o animal spirits dos tristes. Como o homem normal, diz disparates por vitalidade, e por sangue dá palmadas nas costas de outros, os incapazes de entusiasmo e de alegria dão cambalhotas na inteligência, a seu frio modo fazem os gestos quentes da vida.

Hoje estou no fundo de uma depressão sem fundo. O absurdo da frase falará por mim. Estou num daqueles dias em que nunca tive futuro. Há só um presente imóvel com um muro de angústia em torno...Isto não é bem loucura, mas a loucura deve dar um abandono ao com que se sofre, um gozo astucioso dos solavancos da alma, não muito diferentes destes.

Como as grandes obras, os sentimentos profundos sempre significam mais do que o que têm consciência de dizer. A constância de um movimento ou de uma repulsão dentro da alma reconhece -se em hábitos de fazer ou de pensar e persegue-se em consequências que a própria alma ignora. Os grandes sentimentos trazem junto com eles o seu universo, esplêndido ou miserável. Com a sua paixão, aclaram um mundo exclusivo onde reencontram o seu próprio clima. Há um universo do ciúme, da ambição, do egoísmo ou da generosidade. Um universo, isto é, uma metafísica e um estado de espírito. O que é verdadeiro para sentimentos já especializados sê -lo-á mais ainda para emoções, no fundo, a um tempo tão indeterminadas, tão confusas e tão “certas”, tão distantes e tão “presentes” quanto aquelas que o belo nos desperta ou que o absurdo nos suscita.

Antes de encontrar o absurdo, o homem quotidiano vive com finalidades, conta com o amanhã. Age como se fosse livre. Vislumbrado o absurdo, tudo se abala. A maneira de agir como se tudo fosse provido de um sentido encontra-se desmentida pelo absurdo de uma morte possível. Pensar no futuro, fixar um objetivo, ter preferências, tudo isso impõe a crença na liberdade. Mas, no momento absurdo, essa liberdade de Ser, que é a única a poder fundar uma Verdade, não existe. A morte revela-se como única realidade.

Acontece-me às vezes, e sempre que acontece e quase de repente, surgir-me no meio das sensações um cansaço tão terrível da vida que não há sequer hipótese de acto com que dominá-lo. Para o remediar o suicídio parece incerto, a morte, mesmo suposta a inconsciência, ainda pouco. É um cansaço que ambiciona, não o deixar de existir — o que pode ser ou pode não ser possível —, mas uma coisa muito mais horrorosa e profunda, o deixar de sequer ter existido, o que não há maneira de poder ser.
Creio entrever, por vezes, nas especulações, em geral confusas, dos índios qualquer coisa desta ambição mais negativa do que o nada. Mas ou lhes falta a agudeza de sensação para relatar assim o que pensam ou lhes falta a acuidade de pensamento para sentir assim o que sentem. O facto é que o que neles entrevejo não vejo. O facto é que me creio o primeiro a entregar a palavras o absurdo sinistro desta sensação sem remédio.


Que há de mais absurdo que o progresso, já que o homem, como está provado pelos fatos de todos os dias, é sempre igual e semelhante ao homem, isto é, sempre em estado selvagem.

Derrota!- Ó sonho desprendido, ó luar errado,nunca em meus versos poderei cantar, como ansiara, até ao espasmo e ao oiro,toda essa beleza inatingível.Essa beleza pura!

Ah que bom que era ir daqui de caída Prà cova por um alçapão de estouro! A vida sabe-me a tabaco louro. Nunca fiz mais do que fumar a vida. E afinal o que quero é fé, é calma, E não ter estas sensações confusas. Deus que acabe com isto! Abra as eclusas — E basta de comédias na minh’alma!

Fecho, cansado, as portas das minhas janelas, excluo o mundo e um momento tenho a liberdade. Amanhã voltarei a ser escravo; porém agora, só, sem necessidade de ninguém, receoso apenas que alguma voz ou presença venha interromper-me, tenho a minha pequena liberdade, os meus momentos de excelsis. Na cadeira, aonde me recosto, esqueço a vida que me oprime. Não me dói senão ter-me doído.

Vem-me agora à pena a palavra «absurdo»; há bocadinho, no jardim, não a encontrei, mas também não a procurava, não precisava dela: ia pensando sem palavras, sobre as coisas, com as coisas. O absurdo não era uma ideia na minha cabeça, nem um sopro da voz, mas aquela longa serpente morta a meus pés, aquela serpente de madeira. Serpente ou unha de carnívoro ou raiz ou garra de abutre, pouco importa. E sem formular claramente nenhum pensamento, eu compreendia que tinha encontrado a chave da Existência, a chave das minhas Náuseas, da minha própria vida. De facto, tudo quanto pude alcançar em seguida me fez voltar à noção desse absurdo fundamental. Absurdo: outra palavra, afinal; debato-me com palavras; no jardim cheguei a atingir as coisas. Mas gostava de fixar aqui o caráter absoluto daquele absurdo. Um gesto, um acontecimento no pequeno mundo colorido dos homens nunca é absurdo senão relativamente: em relação às circunstâncias que o acompanham. As palavras dum doido, por exemplo, são absurdas em relação à situação em que ele se encontra, mas não em relação ao seu delírio. Mas eu, ainda agora, tive a experiência do absoluto: o absoluto ou o absurdo. Aquela raiz, não havia nada em relação a que ela não fosse absurda. Oh! Como poderei fixar isso com palavras? Absurda: em relação às pedras, aos tufos de erva amarela, à lama seca, à árvore, ao céu, aos bancos verdes. Absurda, irredutível; nada - nem sequer um delírio profundo e secreto da natureza - podia explicá-la. É claro que eu não sabia tudo, não tinha visto a semente germinar nem a árvore crescer. Mas, diante daquela espessa massa rugosa, nem a ignorância nem o saber tinham importância: o mundo das explicações e das razões não é o da existência. Um círiculo não é absurdo; explica-se muito bem pela rotação dum segmento de recta em torno de uma das suas extremidades. Mas também um círculo não existe. Aquela raiz, pelo contrário, existia na medida em que eu não podia explicá-la. Nodosa, inerte, sem nome, fascinava-me, enchia-me os olhos, chamava-me constantemente a atenção para a sua própria existência. Por mais que eu repetisse: «É uma raiz» - o artifício não surtia efeito. Eu via bem que não se podia passar da sua função de raiz, de bomba aspirante, àquilo, àquela pele dura e compacta de foca, àquele aspecto oleoso, caloso, pertinaz. A função não explicava nada: permitia que se soubesse por alto o que era uma raiz, mas não aquela raiz. Aquela, com a sua cor, a sua forma, o seu movimento petrificado, estava... abaixo de qualquer explicação. Cada uma das suas qualidades lhe escapava um pouco, escorria para fora dela, se tornava meio sólida, uma coisa quase; cada uma era de mais na raiz, e o cepo inleho dava-me então a impressão de sair um pouco para fora de si próprio, de se negar, de se perder num estranho excesso. Raspei com o calcanhar aquela garra preta: tinha vontade de a esfolar um poucochinho. Por nada, por desafio, para fazer surgir no couro curtido o cor-de-rosa absurdo duma escoriação. Para brincar com o absurdo do mundo. Mas quando afastei o pé vi que a casca tinha permanecido preta.
Preta? Senti a palavra esvaziar-se, despojar-se do seu sentido com uma rapidez extraordinária. Preta? A raiz. não era preta, não era a cor preta que havia sobre aquele pedaço de madeira - era... outra coisa: o preto, como o círculo, não existia. Olhava para a raiz: era mais que preta ou quase preta? Mas depressa cessei de me interrogar, porque tinha a impressão de estar em terra conhecida. Sim, já tinha escrutado, com aquela inquietação, objectos inomináveis, já tinha procurado - em vão - pensar alguma coisa acerca deles: e já lhes tinha sentido as qualidades, frias e inertes, esquivarem-se, esgueirarem-se-me por entre os dedos. Os suspensórios de Adolphe, no outro dia, no Rendez-vous dos Ferroviários. Não eram roxos. Revi as duas manchas indefiníveis sobre a camisa. E a pedra,
a famosa pedra que eu quisera deitar à água, a origem de toda esta história: não era... não me lembrava bem, ao certo, do que ela recusava ser. Mas não me tinha esquecido da sua resistência passiva. E a mão do Autodidacta... tinha-a encontrado e apertado, um dia, na Biblioteca, e depois tinha tido a impressão de que não era exactamente uma mão. Tinha-me lembrado dum grande verme branco, inas também não era isso. E a transparência equívoca do copo de cerveja no Café Mably. Equívocos: eis o que eram os sons, os perfumes, os sabores. Quando nos passavam rapidamente pelo nariz, como lebres acorrentadas, e não lhes prestávamos demasiada atenção, podiam-se achar naturalíssimos e tranquilizadores; podia-se pensar que havia no mundo azul verdadeiro, vermelho verdadeiro, verdadeiro odor de amêndoa ou de violeta. Mas, assim que os retínhamos um instante, esse sentimento de naturalidade e de segurança era substituído por uma profunda indisposição: as cores, os sabores, os cheiros, nunca eram verdadeiros, nunca eram simplesmente eles próprios e apenas eles próprios.





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