Não é neccessário vivermos ao lado de alguém para nos sentirmos ligados a esse alguém mais do que a qualquer outra pessoa...

segunda-feira, 13 de março de 2017

Página de um diário e notas soltas...

Esculpi o ser que poderia ter sido , mas nunca fui...

Um encontro, uma apresentação...

Todos querem saber para onde vamos quando morremos. Eu tive uma antevisão. Estava na sala de estar da minha mãe em Pūpū-kea, na North Shore de O‘ahu, a falar ao telefone com o meu médico, quando as luzes se apagaram de repente. Aparentemente, caí no chão. Não houve uma caminhada em direção à luz, nenhum ponto luminoso no fim do longo túnel da vida. Aquele novo lugar era veludo negro, tranquilo e em paz...

O meu amigo Kolohe Blomfield está de pé, atento. O Kolohe é um frequentador habitual muito respeitado na North Shore, agora um salva-vidas de longa data, e um tipo que eu admiro. Quando regresso ainda a tossir, ele vem ter comigo a correr. «Meu, nunca vi um wipeout como aquele.» Penso que ele quer dizer que sou invencível, que aguento tudo o que o mar me puser à frente. Tenho 22 anos, 67 quilos, e estou exausto.

Por sorte, o Jeff estava lá para me amparar. Estou no chão, fico ali um minuto ou uma hora, confortado pela escuridão, abençoadamente sem dores. Nunca estive num lugar tão tranquilo. Não me apetecia voltar. De repente, oiço o meu irmão Liam gritar e dizer o meu nome. A voz dele desperta-me, mas, ao recuperar a consciência, a dor acompanha-me, e penso: «Ah, não; neste lugar não, esta dor não.» Lentamente, percebo que posso não voltar a surfar...

Deixá-la ir, a nota desprendida
D'um canto extremo... e a última esperança...
E a vida... e o amor... Deixá-la ir, a vida!


Uma explicação...

Quarenta dias, porém, a carne fraca o prendeu ali. Nem mesmo ele poderia dizer como descera do Líbano para o cais de embarque e, depois, na Arca, por tanto tempo recebera das mãos servis de Noé a ração quotidiana. Mas pudera vencer-se. Conseguira, enfim, superar o instinto da própria conservação, e abrir as asas de encontro à imensidão terrível do mar.
A insólita partida foi presenciada por grandes e pequenos num respeito calado e contido. Pasmados e deslumbrados, viram-no, temerário, de peito aberto, atravessar o primeiro muro de fogo com que Deus lhe quis impedir a fuga, sumir-se ao longe nos confins do espaço. Mas ninguém disse nada. O seu gesto foi naquele momento o símbolo da universal libertação. A consciência em protesto ativo
contra o arbítrio que dividia os seres em eleitos e condenados.
Mas ainda no íntimo de todos aquele sabor de resgate, e já do alto, larga como um trovão, penetrante como um ralo, terrível, a voz de Deus:
– Noé, onde está o meu servo Vicente?
Bípedes e quadrúpedes ficaram petrificados...


Horas e horas a Arca navegou assim, carregada de incertezas e terror. Iria Deus obrigar o corvo a regressar à barca? Iria sacrificá-lo, pura e simplesmente, para exemplo? Ou que iria fazer? E teria Vicente resistido à fúria do vendaval, à escuridão da noite e ao dilúvio sem fim? E, se vencera tudo, a que paragens arribara? Em que sítio do universo havia ainda um retalho de esperança? Ninguém dava resposta às próprias perguntas. Os olhos cravaram-se na distância, os corações apertavam-se num sentimento de revolta impotente, e o tempo passava...

Vicente, porém, vivia. À medida que a barca se aproximava, foi-se clarificando na lonjura a sua presença esguia, recortada no horizonte, linha severa que limitava um corpo, e era ao mesmo tempo um perfil de vontade. Chegara! Conseguira vencer! E todos sentiram na alma a paz da humilhação vingada.

Três vezes uma onda alta, num arranco de fim, lambeu as garras do corvo, mas três vezes recuou. A cada vaga, o coração frágil da Arca, dependente do coração resoluto de Vicente, estremeceu de terror. A morte temia a morte. Mas em breve se tornou evidente que o Senhor ia ceder. Que nada podia contra aquela vontade inabalável de ser livre. Que, para salvar a sua própria obra, fechava, melancolicamente, as comportas do céu.

Mas ninguém disse nada. O seu gesto foi naquele momento o símbolo da universal libertação. A consciência em protesto ativo contra o arbítrio que dividia os seres em eleitos e condenados.A rapidez com que a miúda percebeu o conceito de arbítrio e que o Vicente era um eleito foi a plenitude possível...

Uma leitura...

— Se eu quisesse, enlouquecia. Sei uma quantidade de histórias terríveis. Vi muita coisa, contaram-me casos extraordinários, eu próprio... Enfim, às vezes já não consigo arrumar tudo isso. Porque, sabe?, acorda-se às quatro da manhã num quarto vazio, acende-se um cigarro... Está a ver? A pequena luz do fósforo levanta de repente a massa das sombras, a camisa caída sobre a cadeira ganha um volume impossível, a nossa vida... compreende?... a nossa vida, a vida inteira, está ali como... como um acontecimento excessivo... Tem de se arrumar muito depressa. Há felizmente o estilo. Não calcula o que seja? Vejamos: o estilo é um modo subtil de transferir a confusão e violência da vida para o plano mental de uma unidade de significação. Faço-me entender? Não? Bem, não aguentamos a desordem estuporada da vida. E então pegamos nela, reduzimo-la a dois ou três tópicos que se equacionam. Depois, por meio de uma operação intelectual, dizemos que esses tópicos se encontram no tópico comum, suponhamos, do Amor ou da Morte. Percebe? Uma dessas abstracções que servem para tudo. O cigarro consome-se, não é?, a calma volta. Mas pode imaginar o que seja isto todas as noites, durante semanas ou meses ou anos? Uma vez fui a um médico.
– Doutor, estou louco – disse. – Devo estar louco.
– Tem loucos na família? – perguntou o médico. – Alcoólicos, sifilíticos?
– Sim, senhor. O pior. Loucos, alcoólicos, sifilíticos, místicos, prostitutas, homossexuais. Estarei louco?
O médico tinha sentido de humor, e receitou-me barbitúricos.
– Não preciso de remédios – disse eu. – Sei histórias tenebrosas acerca da vida. De que me serve barbitúricos? A verdade é que eu ainda não havia encontrado o estilo. Mas ouça, meu amigo: conheço por exemplo a história de um homem velho. Conheço também a de um homem novo. A do velho é melhor, pois era muito velho, e que poderia ele esperar? Mas veja, preste bem atenção. Esse homem velhíssimo não se resignaria nunca a prescindir do amor. Amava as flores. No meio da sua solidão tinha vasos de orquídeas.
O mundo é assim, que quer? É forçoso encontrar um estilo. Seria bom colocar grandes cartazes nas ruas, fazer avisos na televisão e nos cinemas. Procure o seu estilo, se não quer dar em pantanas. Arranjei o meu estilo estudando matemática e ouvindo um pouco de música. – João Sebastião Bach. Conhece o Concerto Brandeburguês n.º 5? Conhece com certeza essa coisa tão simples, tão harmoniosa e definitiva que é um sistema de três equações e três incógnitas. Primário, rudimentar. Resolvi milhares de equações. Depois ouvia Bach. Consegui um estilo. Aplico-o à noite quando acordo às quatro da madrugada. É simples: quando acordo aterrorizado, vendo as grandes sombras incompreensíveis erguerem-se no meio do quarto, quando a pequena luz se faz na ponta dos dedos, e toda a imensa melancolia do mundo parece subir do sangue com a sua voz obscura… Começo a fazer o meu estilo. Admirável exercício, este.(...) Perdão, seja um pouco mais honesto. Seja ao menos inteligente. Vê-se bem que não estou louco Eu, não. As crianças é que enlouquecem, e isso porque lhes falta um estilo.
Sabe de que lhe estive a falar? Da vida? Da maneira de se desembaraçar dela? Bem, o senhor não é estúpido, mas também não é muito inteligente. Conheço. Conheço o género. Talvez eu já tivesse sido assim. Pratica as artes com parcimónia: não a poesia, mas as poesias. Cultiva-se, evidentemente. Se calhar está demasiado na posse de um estilo. Mas, escute cá, a loucura, a tenebrosa e maravilhosa loucura... Enfim, não seria isso mais nobre, digamos, mais conforme ao grande segredo da nossa humanidade?
Talvez o senhor seja mais inteligente do que eu.


Notas soltas em volta destes passos de herberto helder ...

Apetecia-me ficar só. Comer aqui e ali em pequenos restaurantes e, no quarto, à noite, fumar um cigarro à janela, folhear um tratado de arqueologia. Não sentir ninguém nem falar nem me ver obrigado à condescendência ou à fraternidade. Sou um neurótico, vê-se logo. Um egoísta. Deixem-me. Não vou amar o mundo. Estou-me nas tintas.

Convivia com bastante gente. Claro, não amava ninguém.( ...) Mas uma força dramática parecia libertar-se agora da magnética e frágil trama entendida entre mim e as pessoas.

...cada criatura subtilmente se conjuga com os impulsos da destruição. Tecido de imperscrutáveis forças que de súbito se animam. É um jogo cerrado, difícil.

Eis a verdade: sou uma criatura devastada pelo egoísmo... Sentia-me a transbordar de experiências desordenadas e irrevogáveis. Um pouco enjoado de pequenas cidades descobertas à noite, quando se sai numa estação de caminho de ferro. Farto e gentes, costumes, acontecimentos. Viajar é idiota. Bom para a crassa primeira juventude.... Sou cruel? Ou frio. Para o caso tanto faz. ... Não gosto de ninguém.... Quero poupar-me à ignara massa de palavras que descreveriam a subtileza de quantos movimentos, o fulgor de quantas revelações, o ondulante espectáculo do nascimento e acção de um corpo.... Detesto em bloco a incapacidade humana em atingir a pureza ou a intensidade criada pela solidão.

Talvez pudesse ouvir passos junto à porta do quarto, passos leves que estacariam enquanto a minha vida, toda a vida, ficaria suspensa. Eu existiria então vagamente, alimentado pela violência de uma esperança, preso à obscura respiração dessa pessoa parada. Os comboios passariam sempre. E eu estaria a pensar nas palavras do amor, naquilo que se pode dizer quando a extrema solidão nos dá um talento inconcebível. O meu talento seria o máximo talento de um homem e devia reter, apenas pela sua força silenciosa, essa pessoa defronte da porta, a poucos metros, à distância de um simples movimento caloroso. Mas nesse instante ser-me-ia revelada a essencial crueldade do espírito. Penso que desejaria somente a presença incógnita e solitária dessa pessoa atrás da porta.



Uma nota inesperada, no " desassossego" de bernardo soares...

Ela canta e as suas notas soltas tecem
Penumbras de sentir no (...) ar...
Em torno as coisas todas entristecem
Só para que ela lhes possa ser luar.

Ó alma derramando-se invisível,
Ó natural requinte da expressão...
Rio de som em tua água
Vai boiando em silêncio (...) e insensível
E debruça-se a vê-lo o inextinguível
Esforço de ser perfeito de imperfeição.(...)



13-3-1913 (Quinta)
Dia perdido, excepto na surda acumulação de energia.— Escritório Lavado. Carta no escritório do Mayer. Depois fui à Brasileira; só fui jantar à meia-noite. Carta de Sá-Carneiro de manhã. Carta do Natal à noite.
(Diário de FP)

13-3-2017 ( Segunda)
Conheci o Mcnamara.Consegui que os alunos apresentassem um livro que nunca li. Escrevi uma notícia para o jornal escolar. Expliquei. Jantei. O benfica ganhou 4-0. Li, com prazer, Herberto Hélder.Observei.Esperei. Entristeci:"Dia perdido, exceto na surda acumulação de energia."
(Não Diário de IV)

Esculpi o ser que poderia ter sido , mas nunca fui...

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