Não é neccessário vivermos ao lado de alguém para nos sentirmos ligados a esse alguém mais do que a qualquer outra pessoa...

sábado, 4 de março de 2017

Desventuras e aventuras...

Desventuras...
À aldeia chamam-lhe Azinhaga, está naquele lugar por assim dizer desde os alvores da nacionalidade (já tinha foral no século décimo terceiro), mas dessa estupenda veterania nada ficou, salvo o rio que lhe passa mesmo ao lado (imagino que desde a criação do mundo), e que, até onde alcançam as minhas poucas luzes, nunca mudou de rumo, embora das suas margens tenha saído um número infinito de vezes.

A menos de um quilómetro das últimas casas, para o sul, o Almonda, que é esse o nome do rio da minha aldeia, encontra-se com o Tejo, ao qual (ou a quem, se a licença me é permitida), ajudava, em tempos idos, na medida dos seus limitados caudais, a alagar a lezíria quando as nuvens despejavam cá para baixo as chuvas torrenciais do inverno e as barragens a montante, pletóricas, congestionadas, eram obrigadas a descarregar o excesso de água acumulda. A terra é plana, lisa como a palma da mão, sem acidentes orográficos dignos de tal nome, um ou outro dique que por ali se tivesse levantado mais servia para guiar a corrente aonde causasse menos dano do que para conter o ímpeto poderoso das cheias. Desde tão distantes épocas a gente nascida e vivida na minha aldeia aprendeu a negociar com os dois rios que acabam por lhe configurar o carácter, o Almonda, que a seus pés desliza, o Tejo, lá mais adiante, meio oculto por trás da muralha de choupos, freixos e salgueiros que lhe vai acompanhando o curso, e um e outro, por boas ou más razões, omnipresentes na memória nas falas das famílias.


Como às vezes num dia azul e manso No vivo verde da planície calma...

Bela e vasta planície!
Desafogada dos raios do Sol, como ela se desenha aí no horizonte tão suavemente! que delicioso aroma selvagem que exalam estas plantas, acres e tenazes de vida, que a cobrem, e que resistem verdes e viçosas(...) A doçura que mete na alma a vista refrigerante de uma jovem seara do Ribatejo(...) ondulando lascivamente com a brisa temperada... A majestade sombria e solene de um bosque antigo e copado, o silêncio e escuridão de suas moitas mais fechadas, o abrigo solitário de suas clareiras, tudo é grandioso, sublime, inspirador de elevados pensamentos. Medita-se ali por força; isola-se a alma dos sentidos pelo suave adormecimento em que eles caem... e Deus, a eternidade - as primitivas e inatas ideias do homem - ficam únicas no seu pensamento...


É assim. Mas um rochedo em que me eu sente ao pôr do sol na gandra erma e selvagem, vestida apenas de pastio bravo, baixo e tosquiado rente pela boca do gado — diz-me coisas da terra e do céu que nenhum outro espetáculo me diz na natureza. Há um vago, um indeciso, um vaporoso naquele quadro que não tem nenhum outro.
Eu amo a charneca. E não sou romanesco, Romântico, Deus me livre de o ser...


Todo o amontoado irregular e montanhoso da cidade parece-me hoje uma planície, uma planície de chuva. Por onde quer que alongue os olhos tudo é cor de chuva, negro pálido.Tenho sensações estranhas, todas elas frias. Ora me parece que a paisagem essencial é bruma, e que as casas (é que) são a bruma que a vela. Uma espécie de anteneurose do que serei quando já não for gela-me corpo e alma. Uma como que lembrança da minha morte futura arrepia-me de dentro. Numa névoa de intuição sinto-me matéria morta, caído na chuva, gemido pelo vento. E o frio do que não sentirei morde o coração actual.



La actitud general de los españoles respecto al pasado viene a ser esta: “Los muertos no nos conciernen”. La gente que no está aquí, que carece de poder e influencia, que no hace el memo para distraernos, que no suelta idioteces en las redes para que reaccionemos con furia; la gente a la que ya no podemos zaherir ni poner zancadillas ni hacer daño, la que no forma parte de la bufonada perpetua que nos alimenta, del jolgorio zafio y la chanza malintencionada, la gente que no puede indignarnos porque lleva mucho o poco criando malvas, ¿qué nos importa? A los políticos, desde luego, sólo les interesan aquellos que pueden ser utilizados, o arrojados a la cara del contrario: Lorca y Machado por razones obvias, un poco Hernández y Cernuda, y pare usted de contar o casi. Pero ¿Cervantes? Ni siquiera sabemos si sería de derechas o de izquierdas, para qué nos sirve. Al Gobierno le han caído regañinas justas por su desidia, y sin embargo, ¿han oído decir una palabra sobre el autor del Quijote, en estos meses transcurridos de su año, a los dirigentes del PSOE, Podemos o Ciudadanos, no digamos a los de Unidad Popular, PNV, ERC (y eso que hay dementes muy serios que insisten en que Cervantes era un catalán más, escamoteado)? En realidad, en España se procura matar a los muertos, ya es bastante molestia que haya vivos ocupando sitio (“nuestro sitio”) como para encima hacérselo a los difuntos. Shakespeare está vivo y omnipresente no sólo en la cultura y en la sociedad inglesas, sino en el mundo entero. Cervantes no tanto, por mucho que unos cuantos todavía adoremos su simpática figura y su obra. ¿Cómo podría estarlo al mismo nivel que su contemporáneo, si en su país lo que se pretende es que se hunda de una vez en el hoyo y en el mayor olvido posible? Aquí ese es el sino de cuantos “dan su espíritu” y ya no alientan, sea desde ayer o desde hace cuatro enteros siglos.

Começo a ficar preocupado com os meus colegas escritores de todo o mundo e também com os cineastas, os dramaturgos, os compositores e todos os que se dedicam a atividades artísticas que, tradicionalmente, têm requerido concentração, esforço, continuidade, paciência, meditação e, muitas vezes, uma solidão imprescindível.

“La idea del escritor solitario está desapareciendo. El literato brasileño Paulo Coelho es partidario de la comunicación en Twitter y Facebook: ‘La to­rre de marfil ya no existe’, ha dicho”. Hombre, por lo que escriba o deje de escribir Coelho no ando preocupado, la verdad. Pero sí por otros autores, cuya literatura sigo y aprecio, si se relacio­nan en demasía con las multitudes; si empiezan a “compartir” (verbo de moda, y odioso donde los haya) lo que imaginan y escriben con otros, antes de haberlo acabado. O si, como ya ha­cen algunos, abren la puerta a los lectores para que opinen sobre su nuevo proyecto y sugieran y hasta “colaboren”, y encima presentan su disponibilidad como una innovación o una auda­cia. Ya los folletinistas del XIX se guiaban en sus entregas, a ve­ces, por las querencias y las peticiones del público: daban más papel a un personaje que había caído en gracia o variaban los acontecimientos para complacer a sus seguidores. Solían pifiar­la, en estos casos: edulcoraban las historias, las hacían previsibles. Las masas son previsibles y -como es lógico- gregarias, y lo que uno admira de un autor es, entre otras virtudes, su capaci­dad para sorprendernos y salirse de lo predecible. No sé, ¿se imaginan que Hitchcock hubiera consultado a sus fans si debía cargarse a la protagonista de Psicosis, con la que el espectador se ha identificado, antes de alcanzarse la mitad del metraje? Las multitudes se habrían llevado las manos a la cabeza y le habrían exigido que la mantuviera viva, sin duda, y Psicosis sería, como mínimo, una película mucho más convencional. ¿Se figuran a Flaubert preguntando si debía hacer morir a Emma Bovary o no? Conan Doyle mató a Sherlock Holmes Y tuvo que resucitar­lo, en gran medida porque escribía sus aventuras en prensa y la muchedumbre se amotinó, y también -cosa importante- por­que su propia madre lo conminó a devolverle la vida.(...)

Interrogo-me sobre o que se passa hoje no mundo para que tantos “se sintam obrigados a partilhar”, ... a deixarem-se vigiar e contro­lar... Se os escritores renunciarem a ser os donos dos mundos que inventam; se se vergam às preferências dos seus "clien­tes", já não os podem desassossegar; se abandonam as suas “torres de marfim”, passando a vida a responder a publicações e twits, não há dúvida : a literatura que nos intere­ssa e deslumbra tem os dias contados.

(Entrevista, muito contestada, concedida por Javier Marías...)


Esperai! Caí no areal e na hora adversa
Que Deus concede aos seus
Para o intervalo em que esteja a alma imersa
Em sonhos que são Deus.
Que importa o areal e a morte e a desventura
Se com Deus me guardei?
É O que eu me sonhei que eterno dura,
É Esse que regressarei.


Não há maior desventura do que a verdade...

Górgias, antigo Górgias, que dizias
Que se alguém algum dia compreendesse,
Atingisse a verdade, não podia
Comunicá-la aos outros — já entendo
O teu profundo e certo pensamento
Que ora não compreendia. Tenho em mim
A verdade sentida e compreendida,
Mas fechada em si mesma, que não posso
Nem pensá-la. Senti-la ninguém pode.



Aventuras...
Depois da Negra espalda del tiempo, é imperativo aventurar-me em mais uma tradução: as citações constantes de Todas las almas a isso me obrigam...
Prólogo de Elide Pittarello - Na primeira metade dos anos oitenta, Javier Marías viveu em Oxorf, tal como o narrador de Todas as almas , título que corresponde ao nome de um colégio daquela cidade.Durante dois anos, o autor de carne e osso foi leitor de espanhol na universidade, tal como a sua personagem de tinta e de papel. Não terminam aqui as coincidências(...)
É uma novela que, no seu tempo, desorientou mais do que um leitor, devido à ausência de uma intriga convencional - aquela que permite que se faça uma síntese do seu argumento - e a uma mistura insólita de verdade e de ficção, atestada, por exemplo, pela presença documental de fotografias.(...)
Como sempre sucede com as novelas de Javier Marías, o fim de Todas as almas não coincide com o desfecho da história. Pelo contrário, a última revelação marca o início de um novo enigma...

Comecei a ler, apetrechada, como é hábito, com um lápis bem afiadinho para assinalar as passagens mais significativas , e acontece-me algo inédito: as primeiras dez páginas são de tal intensidade que teria de as sublinhar do princípio ao fim. Espero não me desiludir, mas ,para já, é, de facto, uma maravilha. Depois da negra espalda, o ler em castelhano está a ser uma aventura aliciante: penso e sinto na língua do autor, o que é um privilégio...Estou com uma vontade enorme de ir a Oxford: seria o espaço ideal para ler esta novela...

Para falar deles, tenho também de falar de mim, e da minha permanência na cidade de Oxford. No entanto, o que fala não é o mesmo que esteve lá. Parece-o , mas não é o mesmo. Se a mim mesmo chamo " eu" , ou se utilizo o nome que me tem vindo a acompanhar desde que nasci e pelo qual alguns me recordarão, ou se conto coisas que coincidem com coisas que outros me atribuíram, ou se chamo "minha casa" à casa que antes e depois outros ocuparão, mas que eu ocupei durante dois anos, é somente porque prefiro falar na primeira pessoa, e não porque acredite que baste a faculdade da memória para que alguém continue a ser o mesmo, em diferentes tempos e em diferentes espaços. O que aqui conta o que viu e o que aconteceu não é aquele que o viu e a quem aconteceu, nem tão pouco o seu prolongamento , nem a sua sombra, nem o seu herdeiro, nem o seu usurpador.

Com efeito, Oxford é , sem dúvida, uma das cidades do mundo em que menos se trabalha, nela é muito mais determinante o facto de se estar que o de fazer ou, inclusivamente, de atuar.

Will, o antigo porteiro do edifício, ...não sabia, literalmente, o dia em que vivia, e assim, ninguém conseguia prever a data escolhida por ele e ainda menos saber o que a determinava, pois cada manhã estava num ano diferente, viajando no tempo para a frente e para trás , a seu bel prazer, ou, dizendo melhor, provavelmente por um mecanismo independente da sua vontade. Havia dias nos quais, mais do que acreditar que estava, na realidade estava mesmo em 1947, ou em 1914, ou em 1935, ou em 1960, ou em 1926, ou em qualquer um dos anos da sua longuíssima existência.(...) Nesse contínuo viajar ao longo da sua existência, quase tudo era insondável para os outros...(...) Por vezes pensava se a capacidade de Will para se deslocar no tempo , não abrangeria também o futuro( pelo menos o mais imediato, aquele que lhe restava de vida...

O meu papel nas aulas (...) consistia em fazer de grmática e dicionário falantes, com o consequente desgaste para os meus reflexos....Pouco a pouco, impelido pela impaciência e pelo desejo de agradar, não tive outro remédio senão ir inventado etimologias delirantes...confiando que nenhum aluno nem o colega que me acompanhava teriam curiosidade suficiente para comprovar, mais tarde, a veracidade das minhas informações.(...) A etimologia é uma ciência apaixonante, sendo uma pena que os estudantes, pobres rapazes sem discernimento, se esqueçam de noventa e cinco por cento das maravilhas que nos escutam, e que as nossas brilhantes descobertas só os deslumbrem durante escassos minutos,mais ou menos até ao fim da aula. Embora me sentisse mais impostor do que nunca , via a minha consciência em parte tranquilizada, pois considerei que as minhas etimologias" dementes" não eram muito mais disparatadas nem menos verosímeis do que as verdadeiras. (...) Os conhecimentos decorativos duram poucos minutos, sejam falsos, autênticos ou semiverdades. Às vezes, o saber verdadeiro acaba por ser indiferente, e , portanto, pode-se inventar à vontade.

Como não tinha o que fazer, porque não aprendera ofício algum, dei de encher a cabeça com fantasias. Estudara numa excelente escola pública de York, o meu pai desejava que eu seguisse a carreira de advogado, mas o desejo que me consumia era outro. Dedicar-me à vida do mar era coisa que me dominava inteiramente, pondo-me surdo às advertências e às solicitações serenas e doces da minha boa mãe. O meu pai, homem grave e enérgico, deu-me ótimos conselhos, para que deixasse de lado aquelas fantasias, mas tudo foi em vão. O chamamento do mar era coisa poderosa, que me atraía e subjugava.

Às vezes, macambúzio, ponho-me a pensar e pergunto-me se houve, por este mundo, aventureiro cujos infortúnios começassem mais cedo que os meus e durassem mais tempo.(...) Não fora eu filho ingrato e desobediente? Surdo às palavras dos meus pais? As lágrimas que verteram por mim, os salutares conselhos que me deram, as súplicas que me dirigiram, ansiosos e veementes - tudo, agora, me enchia de água os olhos, que me ardiam, abrasadores.

Contudo, o capitão, ao qual salvara a vida e o navio, conseguiu-me dos grandes da companhia a que seria duzentos libras esterlinas, como recompensa. Então, resolvi ir a Lisboa para me informar do que sucedera com as terras que possuía no Brasil e de como estavam os meus negócios. Segui com Sexta-Feira, que me acompanhava a toda parte e a quem queria como a um filho. Em Lisboa, fiquei a saber que tudo estava em ordem, do que muito me admirei: os meus sócios cuidaram dos meus interesses muito honestamente, depositando nos bancos tudo aquilo que me pertencia, bastando que eu desse a conhecer os meus direitos. Foi uma grande alegria. E logo, sem que precisasse de voltar ao Brasil, por intermédio dos meus sócios, tudo veio parar às minhas mãos, direitinho.


-Vou pelo bom caminho, como é costume, claro - resolveu João Sem Medo, embora desconfiado de tanta facilidade aparente. - O contrário seria idiota e doentio.
- Espera. Preciso de prevenir o guarda do Caminho da Felicidade por causa das formalidades da praxe. E só um minuto.
Quando chegou ao caminho da Felicidade, o guarda comunicou-lhe que ninguém poderia seguir o caminho asfaltado que leva à Felicidade Completa sem se sujeitar a um programa bem óbvio. Primeiro: consentir que lhe cortem a cabeça para não pensar, não ter opinião nem criar piolhos ou ideias perigosas. Segundo e último: trazer nos pés e nas mãos correntes de ouro...


Eu, ao contrário do protagonista, tenho medo de aventuras: serei uma inexistente maria com medo... Onde não sou o primeiro, prefiro não ser nada...


Ouve-me!, se é que ainda
Me podes tolerar.
Neste papel rasgado
Das arestas da minh'alma,
Ai!, as absurdas intrigas
Que te quisera contar!

Sei que me não entendes.
Sei que quanto melhor te revelar
O meu mundo profundo,
O fundo do meu mar,
Os limos do meu poço,
O antro que é só meu (sendo, apesar de tudo, nosso)
Menos me entenderás,
Tu..., - a minha metade!
Por isso me não és senão vaidade,
Meu amor!, meu pretexto
Deste miserável texto...

Entre eu e tu,
Tão profundo é o contrato
Que não pode haver disputa.
Não é pacto
Dum pobre aperto de mão:
Entre nós, - ou sim ou não.

Poderás amar-me assim,(Como explicar-me?!)
Por Qualquer Cousa que eu for,
Mas não por mim!, não a mim...!

Onde não sou o primeiro, prefiro não ser nada, não estar lá,
Onde não posso agir o primeiro, prefiro só ver agir os outros.
Onde não posso mandar, antes quero nem obedecer.


«Ou Tudo ou Nada» tem um sentido pessoal para mim.
Mas ser universal — não o posso, porque sou particular.(...)
Quando é que parte o último comboio, Walt?(...)
Que foi todo o meu ser? Uma grande ânsia inútil(...)
Vamo-nos embora de Ser.(...)
Partamos para onde se fique.
Ó estrada para não-haver...



A primeira nutrição literária da minha meninice foi a que se encontrava em numerosos romances de mistério e de aventuras horríveis. Pouco me interessavam os livros ditos para rapazes e que relatam vivências emocionantes. Não me atraía a vida saudável e natural. Anelava, não pelo provável, mas pelo incrível, nem sequer pelo impossível em grau, mas sim pelo impossível por natureza. A minha infância decorreu serena , recebi uma boa educação. Mas, desde que tenho consciência de mim mesmo, apercebi-me de uma tendência nata em mim para a mistificação, para a mentira artística. Junte-se a isto um grande amor pelo espiritual, pelo misterioso, pelo obscuro, que, ao fim e ao cabo, não era senão uma forma e uma variante daquela outra minha característica, e a minha personalidade será completa para a intuição.

... E trair aquele homem simples, sem interesse mas digno de amizade, seria para ela uma coisa quase criminal, uma coisa indigna não da pessoa dela, mas da sua inteligência. Era coisa possível só com a imaginação, mas ficando na imaginação. As mesmas qualidades de clareza de inteligência, que a levavam a devanear para longe daquele marido real, a levavam a respeitar, não a ele, mas a sua relação com ele. O homem banal vencia porque era banal. Poderia, sim, acontecer que um amor violento arrastasse aquela mulher, de repente, para fora dos eixos lentos da vida quotidiana e seria; mas esse amor ou teria que ter vindo mais cedo, ou que vir muito mais tarde, e mais cedo seria cedo, e mais tarde seria tarde; ou haveria de o causar alguém não inteiramente diferente daquele marido ocupador - alguém fogoso ou estranho, mas banal também, para que o passo do dever para a aventura se desse facilmente, e não fosse o trânsito da vida para o sonho ou de uma vida para outra vida, coisa que a própria dificuldade convertia em nada, nascendo a inércia da inércia.

Onde não sou o primeiro, prefiro não ser nada...

Prefácio de jorge de Sena: Ante uma obra como esta - da mais alta qualidade artística e da mais nobre categoria ética - uma obra que nos eleva à contemplação da dignidade do homem e do mundo em que é um ser pensante, através da mais avassaladora singeleza: devemos curvar-nos gratamente e fazer votos por que, numa tradução que procurei que fosse escrupulosa e fiel, pouco se tenha perdido de tão pura obra-prima, do seu poder encantatório, da sua frescura narrativa.

- O peixe também é meu amigo - disse em voz alta. - Nunca vi ou ouvi falar de um peixe desse tamanho. Mas tenho de o matar. É bom saber que não tenho de tentar matar as estrelas. Imagine o que seria se um homem tivesse de tentar matar a lua todos os dias, pensou o velho. A lua corre depressa. Mas imagine só se um homem tivesse de matar o sol. Nascemos com sorte.

Nessa tarde, havia no Terraço um grupo de turistas e, olhando para a água, entre latas de cerveja vazias e barracudas mortas, uma mulher viu a enorme espinha branca com a portentosa cauda à ponta, que arfava e balouçava na maré, enquanto o vento leste levantava um mar picado e cadenciado, fora da entrada do porto.
-Que é aquilo? - perguntou ela a um criado, e apontava para a longa espinha dorsal do grande peixe, que era apenas lixo à espera de que o levasse a maré.
- Tiburon - respondeu o criado. - Tubarão. -Queria explicar-lhe o que acontecera.
-Não supunha que os tubarões tivessem caudas tão belas, tão lindamente formadas.
- Nem eu - disse o companheiro dela.
Ao cimo da estrada, na sua cabana, o velho adormecera outra vez. Ainda dormia de bruços, e o rapaz estava sentado ao pé dele, a observá-lo. O velho estava a sonhar com os leões
.


Sem comentários: