- Porque não fazes nada?
- Eu faço...
- O quê?
- Um trabalho...
- Que trabalho?
- Penso.
Olho para a estante, percorro-me e descubro-me: gosto de livros porque não consigo gostar das pessoas, como gente, como seres humanos, só consigo, excecionalmente, gostar de indivíduos.
É muito fácil viver fazendo-se de idiota. Se o tivesse sabido antes, ter-me-ia declarado idiota desde a minha juventude, e poderia ser que, por esta altura, até fosse mais inteligente. Porém, quis ter engenho demasiado depressa, e eis-me aqui, agora, feito um imbecil.
Onde é que eu li aquilo de um condenado à morte que, no momento de morrer, dizia ou pensava que, se o deixassem viver num alto, numa rocha e num espaço tão reduzido que mal tivesse onde pousar os pés - e se à volta não houvesse mais que o abismo, o mar, trevas eternas, eterna solidão e tempestade perene -, e tivesse de ficar assim, em todo esse espaço de um archin, a sua vida toda, mil anos, a eternidade... preferiria viver assim do que morrer imediatamente? O que interessa é viver, viver, viver! Viver, seja como for, mas viver! O homem é covarde!
( Seria uma forma interessante de aferir uma existência: o número de centímetros que os livros de um determnado autor ocupam numa estante.. A olho nu, pessoa e heterónimos, gmt, saramago, eça, dosto e camões estarão em primeiro lugar.)
Fiódor Mikhailovitch Dostoiévski morre, em São Petersburgo, no dia 9 de fevereiro de 1881... 1+8 = 9 / 8-1=9, noves fora nada.
Conheci dostoiévski ( só muito, muito mais tarde, se tornaria " dosto"... ) da pior ou da melhor maneira possível: o primeiro romance que li foi crime e castigo.Nunca reli, nem tenciono fazê-lo.
Muito; havia já muito tempo que se enraizara e crescera nele toda a tristeza atual; nos últimos tempos acumulara -se e reconcentrara-se, assumindo a forma de uma horrível, bárbara e fantástica interrogação que lhe torturava o coração e a alma, reclamando uma resposta urgente. (...)Era evidente que agora não se tratava de ficar triste, de sofrer passivamente, fazendo apenas apreciações acerca da insolubilidade daqueles problemas, mas de fazer impreterivelmente qualquer coisa, imediatamente, o mais depressa possível. Fosse o que fosse, era preciso tomar uma decisão ou... "Ou renunciar completamente à vida!", exclamou de repente com raiva. "Aceitar o destino docilmente, tal como é, de uma vez para sempre, e abafar tudo no seu íntimo, renunciando a todo o direito à ação, a viver e a amar! "Compreende, meu senhor, o senhor compreende o que quer dizer isso de não ter para onde ir?", de repente veio-lhe à memória a pergunta que Marmieládov lhe dirigira na noite anterior. "Porque todo homem precisa de ter algum lugar aonde ir!"
Quem mente para si mesmo e dá ouvidos à própria mentira chega a um ponto em que não distingue nenhuma verdade nem em si, nem nos outros e, portanto , passa a desrespeitar -se a si e aos demais.
A perversidade deve não somente ser autorizada, mas reconhecida como a saída mais razoável de cada ateu.
Ele [Ivan Karamázov] declarou em tom solene que, em toda a face da Terra, não existe absolutamente nada que obrigue os homens a amar os seus semelhantes, que essa lei da natureza, que reza que o homem ame a humanidade, não existe em absoluto e que, se até hoje existiu o amor na Terra, este não se deveu a lei natural, mas tão-só ao facto de que os homens acreditavam na própria imortalidade. Ivan Fiodorovitch acrescentou […] que é nisso que consiste toda a lei natural, de modo que, destruindo-se nos homens a fé na sua imortalidade, neles se exaure de imediato não só o amor como também toda e qualquer força para que continue a vida no mundo. E mais: então não haverá mais nada amoral, tudo será permitido, até a antropofagia. Mas isso ainda é pouco, ele concluiu afirmando que, para cada indivíduo particular, por exemplo, como nós aqui, que não acredita em Deus nem na própria imortalidade, a lei moral da natureza deve ser imediatamente convertida no oposto total da lei religiosa anterior, e que o egoísmo, chegando até ao crime, não só deve ser permitido ao homem, mas até mesmo reconhecido como a saída indispensável, a mais racional e quase a mais nobre…
Traduções... “Se Deus não existe, tudo é permitido” é uma famosa falsa citação, cuja origem está num excerto, já quase do final do romance, no livro XI, capítulo 4, no momento em que Aliosha discute com Mítia sobre Rakitin. Mítia critica o cinismo do último e conta que o questionou, dizendo: “Sem Deus e sem vida futura? Quer dizer então que hoje em dia tudo é permitido, pode-se fazer tudo?” . Na tradução de Nina e Filipe Guerra, página 309, " Mas, então,como é que o homem vai viver? ... sem Deus e sem a vida eterna? Nesse caso tudo é permitido não é?". Em síntese:
1. “Se Deus não existe, tudo é permitido” , versão mais divulgada...
2. “Sem Deus e sem vida futura? Quer dizer então que hoje em dia tudo é permitido, pode-se fazer tudo?”
3. sem Deus e sem a vida eterna? Nesse caso tudo é permitido não é?".
Vi-me, envolvida, quase por acaso, numa polémica deveras interessante: parece que há tradutores que, despudoradamente, afirmam deturpar o texto...Interessou-me, mas não é meu objetivo , nestas minhas leituras, falar sobre tal assunto, até porque não sei russo...
Reli ultimamente, embora não na íntegra, e tenho andado a tentar ser aliócha...
Seguiu-se O jogador, um romance considerado " menor", que se revelou, na época, a minha escolha. Ainda recordo a emoção de jogar roleta, algo que só experimentaria anos mais tarde...
- Le jeu est fait! - gritou o croupier. A roleta girou e saiu o treze. Perdemos!
- Mais, mais, mais! Põe mais! - gritava a avó. Eu já não a contrariava e, encolhendo os ombros, apostei mais doze fredericos no zero. A roleta girou demoradamente. A avó tremia ao seguir o movimento da roleta. «Estará a pensar que sai outra vez o zero?» - pensava enquanto olhava espantado para ela. Do rosto dela irradiava a profunda convicção de que ia ganhar, a esperança certa de que iam já gritar zero! A bolinha imobilizou-se numa casa.
- Zero! - gritou o croupier.
- Viste!!! - a avó estava voltada para mim num triunfo louco.
Também eu era jogador - senti-o nesse mesmo instante. Tremiam-me as mãos e as pernas, andava-me a cabeça à volta.
Não somente se afastou da vida, dos seus interesses próprios e dos interesses sociais, dos seus deveres de homem e de cidadão, dos seus amigos (pois os tinha), não somente se afastou de todo e qualquer objetivo que não seja o de ganhar, como até mesmo das suas recordações...
Mas será possível,será possível que seja assim tão infantil? Será que não compreendo que sou um homem perdido? Mas, porque não poderia ressuscitar? Bastaria por uma vez ter caráter, e numa hora poderia mudar toda a minha vida.
Experimenta-se uma sensação muito especial quando, sozinho, numa terra estranha, longe de parentes e amigos, sem saber o que se vai comer dali a pouco, se aposta o último florim, exactamente o último! Ganhei e, vinte minutos depois, saía do casino com cento e setenta florins no bolso. Foi um facto! Eis o que, por vezes, pode significar o último florim! E se agora perdesse a coragem, se não me atrevesse a tomar uma decisão?
Amanhã, amanhã tudo isto acabará.
Li, em seguida, o eterno marido...
ele mesmo compreendia que o que havia tão cedo envelhecido não era a quantidade mas, por assim dizer, a qualidade dos anos, e que se se sentia enfraquecer antes da idade, era mais depressa por dentro do que por fora ...
de que servem tais recordações, quando não sei nem mesmo libertar-me suficientemente de mim no presente?
É uma dessas mulheres, pensava ele, que nasceram para ser infiéis. Não há risco de que mulheres dessa espécie caiam enquanto são donzelas: é lei de sua natureza esperarem para isso que estejam casadas. O marido é o primeiro amante delas, porém jamais antes do casamento. Não há mulheres mais honestas do que elas para o casamento.
O homem dessa espécie vem ao mundo e cresce apenas para se casar e, logo que casa, torna-se imediatamente algo de complementar da sua mulher. (...)E o maravilhoso é que com tudo isso não se podia dizer que aquele marido vivesse sob o chinelo de sua esposa. Natalia Vassílievna mostrava toda a aparência da mulher perfeitamente obediente e talvez ela própria estivesse convencida de sua obediência.
O isolamento torna o protagonista num idealista capaz de se apaixonar por mulheres que não existem realmente, mas que ,nem por isso, deixa de desejar, acreditando que um dia virá em que esse desejo se torne realidade, à semelhança de um sonho que se vive intensamente.
Assim, sentimos, por vezes, a tentação de nos cumprimentarmos, principalmente quando estamos ambos de bom humor. Recentemente, como não nos víssemos há já dois dias, ao terceiro, quando nos encontramos, íamos já a levar as mãos aos chapéus, mas reprimimos a tempo essa intenção.
Que seja claro o teu céu, que seja luminoso e sereno o teu doce sorriso e bendita sejas pelos minutos de felicidade e de alegria que deste a outro coração solitário e agradecido.Meu Deus! Um minuto inteiro de felicidade! Não será isso o bastante para preencher toda a vida de um homem!
( Quando li o estrangeiro de camus, pela primeira vez, tive a certeza de que já tinha lido esta ideia, mas, na época, não me consegui lembrar em que romance...Compreendi , então , que um homem que houvesse vivido um único dia, poderia sem custo passar cem anos numa prisão. Teria recordações suficientes para não se entediar.
Só há pouco tempo, ao reler noites brancas, tive a revelação...Fui feliz nesse momento.Fui-o outrora agora...
Certo homem(...) ia ser fuzilado por causa de uma ofensa política. Vinte minutos mais tarde, porém, era -lhe lida a comutação da pena de morte pela de degredo. Todavia, no intervalo entre as duas sentenças, vinte minutos, ou talvez um quarto de hora, teve ele a convicção firme de que ia morrer. Sempre o escutei sequiosamente, quando se punha a recordar as sensações dessa ocasião e, muitas vezes, depois, eu interrogava -o sobre isso. Lembrava-se de tudo com perfeita exatidão e costumava dizer que lhe era impossível esquecer aqueles vinte minutos. A vinte passos do cadafalso, rodeado de soldados e populares, havia três postes fincados no chão, pois eram vários condenados. Os três primeiros foram conduzidos até aos postes e amarrados, com a túnica dos condenados (um camisolão branco), os capuzes puxados bem por sobre os olhos para que nada vissem, sendo que então uma companhia de vários soldados se postou diante de cada poste. O meu amigo era o oitavo da lista e portanto tinha de ser um dos do terceiro turno. O padre se acercou de cada um, com a cruz. Ele só dispunha de cinco minutos mais para viver. Contou-me que aqueles cinco minutos lhe pareceram um infinito e vasto tesouro. Sentia tantas vidas naqueles cinco minutos que não precisava se incomodar com o último momento, tanto mais que havia subdividido o seu tempo da seguinte maneira: dois minutos para se despedir dos companheiros. Outros dois para o seu último pensamento . E, depois, o último, o quinto, para olhar em redor de si pela derradeira vez. Lembrava-se muito bem dessa extravagante subdivisão do seu tempo. Ia morrer aos vinte e sete anos, moço, forte e em plena saúde. Ao despedir -se dos camaradas ocorreu-lhe perguntar a um deles qualquer coisa inadequada à circunstância, e achou muito curiosa a resposta. Após as despedidas, vieram os tais dois minutos que reservara para pensar em si mesmo. Sabia de antemão em que devia pensar. Desejava atinar, da maneira mais clara e pronta possível, como é que estava existindo agora, isto é, vivendo, e como é que dentro de três minutos seria qualquer outra coisa, alguém ou nada! E isso, como e onde? Resolvera solucionar tudo, de vez, naqueles dois únicos e últimos minutos. Não longe dali havia uma igreja cuja cúpula dourada cintilava aos raios solares. Como se lembrava de se ter posto a fixar, fascinado, aquela cúpula fulgurante de luz! Não podia tirar os olhos de lá! Era como se aqueles raios fossem já a sua outra futura natureza, visto como, dentro de três minutos, ele de um certo modo se iria fundir neles…
A incerteza e um como que sentimento de pavor pelo mistério em que já estava quase ingressando foram terríveis. Disse-me, porém, que nada foi tão cruel naquele momento como este contínuo pensamento em forma de interrogação: “E se eu não morrer? Se eu for devolvido à vida? Ah! Que eternidade! Tudo seria meu! Eu transformaria cada minuto em outras tantas eternidades! Não desperdiçaria um segundo sequer! Contaria cada minuto que fosse passando, sem desperdiçar um único!” Disse-me que esta ideia lhe veio com tal furor que desejou ser imediatamente fuzilado, logo, logo!…
Os dois romances que se seguem já foram lidos pelo meu eu atual. Registo alguns sublinhados e uma apreensão...
Será que é possível,será que é concebível um homem ter qualquer respeito por si mesmo se no seu sentimento próprio de auto-humilhação ousou encontar prazer?
Eu inventava para mim fantasmas e fantasiava a minha vida para quê? Para ter uma vida.
Em qualquer dos casos,a civilização tornou o homem,senão mais sanguinário,de certeza sanguinário de maneira mais feia, mais ignóbil do que antes.
O que eu fazia ,sobretudo em casa era ler. Queria que as impressões exteriores viessem abafar o que fervia sem parar no interior de mim. E as únicas impressões exteriores, para mim, vinham da leitura.
Eram quase oito da manhã quando o conselheiro titular Iákov Petróvitch Góliádkin acordou do seu longo sono, bocejou, espreguiçou -se e, finalmente, abriu por completo os olhos.
Desconfiado,começou por verificar tudo o que tinha escrito - e não percebia nadado que escrevera. Por fim, o outro senhor Goliádkin, que até então tinha estado sentado e sisudo,levantou-se e desapareceu pela porta que dava para outra repartição.
Gostei, sem entusiasmo, sem emoção, mas gostei. Ficou-me uma apreensão: saramago terá conhecido este romance, quando escreveu o homem duplicado??
O homem que acabou de entrar no loja para alugar uma casse vídeo tem no seu bilhete de identidade um nome nada comum, de um sabor clássico que o tempo veio a tornar rançoso, nada menos que Tertuliano Máximo Afonso.
Comprei O Adolescente, folheei, informei-me sobre, mas , afinal, não acabei de ler...Registarei a sinopse oficial da wook, porque,assumidamente, tenho horror vacui (A minha paradoxal faceta barroca ...)
"O Adolescente (1874-1875) é o menos conhecido dos cinco longos romances produzidos por Dostoiévski, entre 1866 e 1880, o seu período de plena maturidade literária. Escrito na primeira pessoa, é a história de um filho ilegítimo. Mais um herói humilhado e ofendido, que cresceu entre estranhos, sem quase ter visto a mãe nos seus primeiros anos de vida, e atormentado por uma existência parental «dupla» - o pai biológico e o marido de sua mãe, que lhe deu o nome – divisão acentuada ainda pela diferença de estrato social entre essas figuras parentais. A história de Arkádi é assim uma espécie de «educação sentimental», extremamente complexa pela multiplicidade de contradições que dividem o jovem. Todos os grandes temas de Dostoiévski estão aqui presentes: a luta entre o Bem e o Mal, a Luz e as Trevas, a degradação moral inerente à condição humana e a possibilidade de redenção...Dostoiévski evidencia, nesta obra, os sinais terríveis que são o reflexo dessa dicotomia em todos os estratos da sociedade russa, nos meados do século XIX."
O meu horror vacui conduz-me, por mero acaso, a um grupo de que nunca ouvira falar e o tema darkness pareceu-me bem adequado para encerrar este dia dedicado a Fiódor Mikhailovitch Dostoiévski...
In darkness I will feel alright... You are so dark, You are so dark...
You don't know my mind You don't know my kind Dark necessities are part of my design... Do you want this love of mine The darkness helps to sort the shine Do you want it, do you want it now Do you want it all the time But darkness helps us all to shine Do you want it, do you want it now...
Post scriptum
Existe na minha estante, mas não o li nem me apetece fazê-lo. Nunca me cativou: nem no passado nem no presente ...
Fica uma breve nota e uma curiosidade: O livro Recordações da Casa dos Mortos resulta da experiência que Dostoiévski viveu na prisão de Omsk, na Sibéria. Curiosa a semelhança no modo de introduzir o romance , entre dosto e Hermann Hesse, em O Lobo das Estepes.
O dia decorrera como de resto os dias costumam decorrer; matara o tempo, matara-o com suavidade, com aquele meu modo primitivo e acanhado de levar a vida...
Mais uma similitude...
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