Não é neccessário vivermos ao lado de alguém para nos sentirmos ligados a esse alguém mais do que a qualquer outra pessoa...

segunda-feira, 10 de julho de 2017

Sonhos e sonhadores...

He llegado a soñar con las palabras.
Las palabras no me dejan dormir.
Me golpean desde atrás del decorado,
personajes subversivos
que hasta llegan a rasgar el telón
para cambiar siempre la obra.
Las palabras no esperan.
¿Hasta cuándo durarán?
Son como gotas de sangre
que van cayendo sobre el texto
y también a veces en el margen.
Pero no les bastan las figuras del día,
la vigilia ilustrada entre la vida y la muerte.
El texto es infinito
y también lo es el margen.
Quizá el texto debiera estar en el margen.
El sueño es una región abandonada
o por lo menos disponible
para la entrada necesaria del verbo.





Contento-me com o que tenho, que dá para combinações infinitas e sonhos sem número. Quem sabe, de resto, se à força de sonhar, eu não conseguirei ainda mais. Mas não vale a pena. Basto-me assim. Pulverização da personalidade. Não sei quais são as minhas ideias, nem os meus sentimentos nem o meu carácter.Se sinto uma coisa, vagamente a sinto na pessoa visualizada de uma qualquer criatura que aparece em mim. Substituí os meus sonhos por mim próprio. Cada pessoa é apenas o sonho de si próprio. Eu nem isso sou. Nunca ler um livro até ao fim, nem lê-lo a seguir e sem saltar. Não soube nunca o que sentia. Quando me falavam de tal ou tal emoção e a descreviam sempre senti que descreviam qualquer coisa da minha alma mas, depois, pensando, duvidei sempre. O que me sinto ser, nunca sei se o sou realmente, ou se julgo que o sou apenas. Sou uma personagem de dramas meus.
(...). Posso amar sem me recusarem ou me traírem, ou me aborrecerem. Posso mudar de amada e ela será sempre a mesma. E se quiser que me traia e se me esquive, tenho às ordens que isso me aconteça, e sempre como eu quero, sempre como eu o gozo. Em sonho posso viver as maiores angústias, as maiores torturas, as maiores vitórias. Posso viver tudo isso tal como se fora da vida: depende apenas do meu poder em tornar o sono vívido, nítido, real. Isso exige estudo e paciência interior.
Há várias maneiras de sonhar. Uma é abandonar-se aos sonhos, sem procurar torná-los nítidos, deixar-se ir no vago e no crepúsculo das suas sensações. É inferior e cansa, porque esse modo de sonhar é monótono, sempre o mesmo. Há o sonho nítido e dirigido, mas aí o esforço em dirigir o sonho trai o artifício demasiadamente. O artista supera, o sonhador como eu o sou, tem só o esforço de querer que o sonho seja tal, que tome tais caprichos... e ele desenrola-se diante dele assim como ele o desejaria, mas não poderia conceber se fatigaria de fazê-lo. Quero sonhar-me rei... Num acto brusco quero-o. E eis-me súbito rei dum país qualquer. Qual, de que espécie, o sonho mo dirá...Porque eu cheguei a esta vitória sobre o sonho — que os meus sonhos trazem-me sempre inesperadamente o que eu quero. Muitas vezes aperfeiçoo, ao trazê-la nítida, a vida cuja vaga ordem apenas resolveram.
Eu sou totalmente incapaz de idear convenientemente as Idades Médias de diversas épocas e de diversas Terras que tenho vivido em sonhos. Deslumbra-me o excesso de imaginação que desconhecia em mim e vou vendo. Deixo os sonhos ir... Tenho-os tão preciosos que eles excedem sempre o que eu espero deles São sempre mais belos do que eu quero. Mas isto só o sonhador aperfeiçoado pode esperar obter. Tenho levado anos a buscar sonhadoramente isto. Hoje consigo-o sem esforço...
A melhor maneira de começar a sonhar é mediante livros. Os romances servem de muito para o principiante. Aprender a entregar-se totalmente à leitura, a viver absolutamente com as personagens de um romance e eis o primeiro passo. Que a nossa família e as suas mágoas nos pareçam chilras e nojentas ao lado dessas, eis o sinal do progresso.
É preciso evitar o ler romances literários onde a atenção seja desviada para a forma do romance. Não tenho vergonha em confessar que assim comecei. É curioso mas os romances policiais, os (...) é que por uma (...) intuição eu lia... Nunca pude ler romances amorosos detidamente. Mas isso é uma questão pessoal, por não ter feitio de amoroso nem mesmo em sonhos. Cada qual cultive, porém, o feitio que tiver. Recordemo-nos sempre de que sonhar é procurarmo-nos. O sensual deverá, para suas leituras, escolher as opostas às que foram as minhas.
Quando a sensação física chega, pode dizer-se que o sonhador passou além do primeiro grau do sonho. Isto é, porque com sucesso sonhar combates, fugas, batalhas, nos deixa o corpo realmente moído, as pernas cansadas... O primeiro grau está assegurado. No caso do sensual, deverá ele [...] ter uma ejaculação qualquer com muitos desses [...].
Depois procurará trazer tudo isso para mental. A ejaculação no caso do sonho (que escolho para exemplo, porque é o mais violento e frisante) deverá ser senti-la sem se ter dado. O cansaço será ainda maior, mas o prazer é correspondentemente mais intenso.
No terceiro grau passa toda a sensação a ser mental. Aumenta o prazer e aumenta o cansaço, mas o corpo já nada sente, e em vez dos sonhos lassos, a inteligência a vida e o amor é que ficam umbrosos e frouxos...Chegando aqui é tempo de passar para o grau supremo do sonho.
O quarto grau é o construir romances para si próprio. Só deve tentar-se isto quando está perfeitamente mentalizado o sonho, como antes disse. Se não, o esforço individual em criar os romances, perturbaria a perfeita mentalização do gozo.
Terceiro grau.
Já entendida a imaginação, basta querer, e ela se encarregará de construir os sonhos por si.
Já aqui o cansaço é quase nulo mesmo mental. Há uma dissolução absoluta da personalidade. Somos mera cinza dotada de alma, sem forma — nem mesmo a da água que é a da vasilha que a contém.
Bem apontada esta (...) deixemos poder aparecer em nós, verso a verso desenrolando-se alheios e perfeitos. Talvez já não haja a força de os escrevermos... nem isso será preciso. Poderemos criar em segunda mão — imaginar em nós um poeta a escrever, e ele escrevendo de uma maneira, outro poeta entretanto escreveria de outra...
Eu posso escrever de inúmeras maneiras diversas, [...] todas.
O mais alto grau do sonho é quando criado um quadro com personagens — vivemos todas elas ao mesmo tempo — somos todas essas almas conjuntas e interactivamente. É incrível o grau de despersonalização e de encorajamento do espírito a que isto leva e é difícil confesso-o, fugir a um cansaço geral de todo o ser ao fazê-lo...
Este é o único [...] final. Não há nele fé, nem um Deus. Deus sou eu.


Nem no orgulho tenho consolação. De quê orgulhar-me se não sou o criador de mim-próprio.E mesmo que haja em mim de que envaidecer-me, quanto para me não envaidecer. Jazo a minha vida. E nem sei fazer com o sonho o gesto de me erguer, tão até à alma estou despido de saber ter um esforço. (...) Pessimista — eu não o sou. Ditosos os que conseguem traduzir para universal o seu sofrimento. Eu não sei se o mundo é triste ou mau nem isso me importa, porque o que os outros sofrem me é aborrecido e indiferente. Logo que não chorem ou gemam, o que me irrita e incomoda, nem um encolher de ombros tenho — tão fundo me pesa o meu desdém por eles — para o seu sofrimento.
Eu não sou pessimista. Não me queixo do horror da vida. Queixo-me do horror da minha. O único facto importante para mim é o facto de eu existir e de eu sofrer e de não poder sequer sonhar-me de todo por fora de me sentir sofrendo. Sonhadores felizes são os pessimistas. Formam o mundo à sua imagem e assim sempre conseguem estar em casa. A mim o que me dói mais é a diferença entre o ruído e a alegria do mundo e a minha tristeza e o meu silêncio aborrecido.
A vida com todas as suas dores e receios e solavancos deve ser boa e alegre, como uma viagem em velha diligência para quem vai acompanhado... Nem ao menos posso sentir o meu sofrimento como sinal de Grandeza. Não sei se o é. Mas eu sofro com coisas tão reles, ferem-me coisas tão banais, que não ouso insultar com essa hipótese a hipótese de que eu possa ter génio. A glória de um poente belo, com a sua beleza entristece-me. Ante eles eu digo sempre: como quem é feliz se deve sentir contente ao ver isto!
E este livro é um gemido. Escrito ele já o Só não é o livro mais triste que há em Portugal. Ao pé da minha dor todas as outras dores me parecem falsas ou mínimas. São dores de gente feliz ou dores de gente que vive e se queixa. As minhas são de quem se encontra encarcerado da vida, aparte...Entre mim e a vida...


Mas essa nossa superioridade não consiste naquilo que tantos sonhadores têm considerado como a superioridade própria. O sonhador não é superior ao homem activo porque o sonho seja superior à realidade. A superioridade do sonhador consiste em que sonhar é muito mais prático que viver, e em que o sonhador extrai da vida um prazer muito mais vasto e muito mais variado do que o homem de acção.Em melhores e mais directas palavras, o sonhador é que é o homem de acção.

Criei-me eco e abismo, pensando. Multipliquei-me aprofundando-me. O mais pequeno episódio — uma alteração saindo da luz, a queda enrolada de uma folha seca, a pétala que se despega amarelecida, a voz do outro lado do muro ou os passos de quem a diz junta aos de quem a deve escutar, o portão entreaberto da quinta velha, o pátio abrindo com um arco das casas aglomeradas ao luar — todas estas coisas, que me não pertencem, prendem-me a meditação sensível com laços de ressonância e de saudade. Em cada uma dessas sensações sou outro, renovo-me dolorosamente em cada impressão indefinida. Vivo de impressões que me não pertencem, perdulário de renúncias, outro no modo como sou eu.
(...)Os sonhos também serão talvez ou ainda outra dimensão em que vivemos, ou um cruzamento de duas dimensões; como um corpo vive na altura, na largura e no comprimento, os nossos sonhos, quem sabe, viverão no ideal, no eu e no espaço. No espaço pela sua representação visível; no ideal pela sua apresentação de outro género que a da matéria; no eu pela sua íntima dimensão de nossos. O próprio Eu, o de cada um de nós, é talvez uma dimensão divina. Tudo isto é complexo e a seu tempo, sem dúvida, será determinado. Os sonhadores actuais são talvez os grandes precursores da ciência final do futuro. Não creio, é claro, numa ciência final do futuro. Mas isso nada tem para o caso.


Fechei o livro. Devo ter sonhado aquilo há muito tempo, em criança. A informação ficou guardada em alguma gaveta abandonada do meu cérebro,anos a fio, até regressar sob a forma fantasiosa de um sonho.

Os sonhos são artefactos delicados. A maioria esfarela-se à luz como a pele dos vampiros, e depois nem cinzas. Poucas pessoas sabem sonhar.

Uma amiga disse-me uma vez que sonhar é o mesmo que viver, mas sem a grande mentira que é a vida.

Um gato não conta como companhia. Não se tem a companhia de um gato. Partilhar a casa com um gato é uma forma elegante de solidão. Fechei a porta da casa de banho , girei a chave , sentei-me na banheira e chorei.

—Sonhei com ele. Sonhei com ele, como acontecia antigamente, em Havana.
—Não pode ser.
—Há muita coisa que não pode ser. Em todo o caso, sonhei com o Hossi. Disse-me que você tem de encontrar o diário dele.
Eu sabia que Hossi escrevia um diário. Uma tarde conversámos sobre isso. Achei curioso que ambos escrevêssemos diários. Não é algo muito frequente. O hoteleiro discordou: disse-me que talvez não fosse um hábito em Luanda, até porque os luandenses são mandriões e desorganizados, mas que no tempo da guerrilha muita gente escrevia diários.


Quevedo é um poeta estranho, uma alma violenta em "claroescuro", um homem demoníaco com brilho angélico, um ser espantoso e torturado...A sua vida é um contínuo estertor, uma intensa agonia...Pícaro e estóico, de alma dorida, sempre desafiante. Crítico mordaz da mediocridade da vida cortesã , quevedo é, sem dúvida, o grande génio do barroco espanhol. Quevedo , um daqueles escritores de quem muitos falam, mas poucos leem...

Os sonhos , diz Homero, pertencem a Júpiter que os envia, e num outro lugar hão de crescer.É assim quando tocam em coisas importantes e piedosas ou as sonham reis e grandes senhores, como se depreende do que diz o doutíssimo e admirável Propércio , nestes versos: Nec tu sperne piis venientia somnia portis: cum pia veneruntsomnia, pondus habent. Digo isto a propósito de um sonho que considero ter caído do céu, nas noites anteriores, tendo fechado os olhos com o livro do santo Hipólito...

Há três géneros de homens no mundo: o que , por se acharem ignorantes, não escrevem, e estes merecem perdão por se terem calado e louvor por se conhecerem; outros que não comunicam o que sabem: a estes há que lamentar a condição e invejar o engenho, pedindo a Deus que lhes perdoe o passado e os emende no futuro; os últimos não escrevem por medo das más línguas: estes merecem repreensão...

Em horas inda louras, lindas
Clorindas e Belindas, brandas,
Brincam no tempo das berlindas,
As vindas vendo das varandas.
De onde ouvem vir a rir as vindas
Fitam a fio as frias bandas.


Mas em torno à tarde se entorna
A atordoar o ar que arde
Que a eterna tarde já não torna!
E em tom de atoarda todo o alarde
Do adornado ardor transtorna
No ar de torpor da tarda tarde.
E há nevoentos desencantos
Dos encantos dos pensamentos
Nos santos lentos dos recantos
Dos bentos cantos dos conventos...
Prantos de intentos, lentos, tantos
Que encantam os atentos ventos.


Às vezes, quando ergo a cabeça estonteada dos livros em que escrevo as contas alheias e a ausência de vida própria, sinto uma náusea física, que pode ser de me curvar, mas que transcende os números e a desilusão. A vida desgosta-me como um remédio inútil. E é então que eu sinto com visões claras como seria fácil o afastamento deste tédio se eu tivesse a simples força de o querer deveras afastar.Vivemos pela acção, isto é, pela vontade. Aos que não sabemos querer — sejamos génios ou mendigos — irmana-nos a impotência. De que me serve citar-me génio se resulto ajudante de guarda-livros? Quando Cesário Verde fez dizer ao médico que era, não o Sr. Verde empregado no comércio, mas o poeta Cesário Verde, usou de um daqueles verbalismos do orgulho inútil que suam o cheiro da vaidade. O que ele foi sempre, coitado, foi o Sr. Verde empregado no comércio. O poeta nasceu depois de ele morrer, porque foi depois de ele morrer que nasceu a apreciação do poeta. Agir, eis a inteligência verdadeira. Serei o que quiser. Mas tenho que querer o que for. O êxito está em ter êxito, e não em ter condições de êxito. Condições de palácio tem qualquer terra larga, mas onde estará o palácio se o não fizerem ali?



Febre! Febre! Estou trémulo de febre E de delírio, e ainda assim é grato Tudo isto a não sei que se passa Sem propósito de passar e... não, não, não... Fiquei fingindo que fujo... Fugirei... Onde estou? O que foi? que faço aqui? Arde-me a alma toda, arde-me arde
Como uma cousa que arde.(...) Não tornarei, eu sinto-o, a sentir O que sentia antigamente. Foi-se Não sei como, o interior do meu ser Com suas intuições, mas não se foi A memória terrível do horror Da minha vida antiga, perto e longe Já do que eu sou, nem o que o uso fez Ao sentimento e ao pensamento antigos;Ainda os tenho comigo.





Num ímpeto difuso de quebranto,
Tudo encetei e nada possuí...
Hoje, de mim, só resta o desencanto
Das coisas que beijei mas não vivi...




Nada me encanta já; tudo me aborrece, me nauseia. Os meus próprios raros entusiasmos, se me lembro deles, logo se me esvaem - pois, ao medi-los, encontro os tão mesquinhos, tão de pacotilha… Quer saber? Outrora, à noite, no meu leito, antes de dormir, eu punha-me a divagar. E era feliz por momentos, entressonhando a glória, o amor, os êxtases… Mas hoje já não sei com que sonhos me robustecer. Acastelei os maiores… eles próprios me fartaram: são sempre os mesmos - e é impossível achar outros… Depois, não me saciam apenas as coisas que possuo - aborrecem-me também as que não tenho, porque, na vida como nos sonhos, são sempre as mesmas. De resto, se às vezes posso sofrer por não possuir certas coisas que ainda não conheço inteiramente, a verdade é que, descendo-me melhor, logo averiguo isto: Meu Deus, se as tivera, ainda maior seria a minha dor, o meu tédio.


Tu és do sexo das formas sonhadas, do sexo nulo das figuras... Mero perfil às vezes, mera atitude outras vezes, outras gesto lento apenas — és momentos, atitudes, espiritualizadas em minha(s). Nenhum fascínio do sexo se subentende no meu sonhar-te, sob a tua veste vaga de madona dos silêncios interiores. Os teus seios não são dos que se pudesse pensar em beijar-se. O teu corpo é todo ele carne-alma, mas não é alma é corpo. A matéria da tua carne não é espiritual mas é espiritualidade (És a mulher anterior à Queda) […] O meu horror às mulheres reais que têm sexo é a estrada por onde eu fui ao teu encontro. As da terra, que para serem têm de suportar o peso movediço de um homem — quem as pode amar, que não se lhe desfolhe o amor na antevisão do prazer que serve o sexo […]? Quem pode respeitar a Esposa sem ter de pensar que ela é uma mulher noutra posição de cópula... Quem não se enoja de ter mãe por ter sido tão vulvar na sua origem, tão nojentamente parido? Que nojo de nós não punge a ideia da origem carnal da nossa alma — daquele inquieto corpóreo de onde a nossa carne nasce e, por bela que seja, se desfeia de origem e se nos enoja de nata. (...)
Quem sabe se sonhando-te eu não te crio, real noutra realidade; se não serás minha ali, num outro e puro mundo onde sem corpo táctil nos amemos, com outro jeito de abraços e outras atitudes essenciais de posse(s)? Quem sabe mesmo se não existias já e não te criei nem te vi apenas, com outra visão, interior e pura, num outro e perfeito mundo? Quem sabe se o meu sonhar-te não foi o encontrar-te simplesmente,se o meu amar-te não foi o pensar-em-ti, se o meu desprezo pela carne e o meu nojo pelo amor não foram a obscura ânsia com que, ignorando-te, te esperava, e a vaga aspiração com que, desconhecendo-te, te queria?
Não sei mesmo já [se] não te amei já, num vago onde cuja saudade este meu tédio perene talvez seja. Talvez sejas uma saudade minha, corpo de ausência, presença de Distância, fêmea talvez por outras razões que não as de sê-lo. Posso pensar-te virgem e também mãe porque não és deste mundo. A criança que tens nos braços nunca foi mais nova para que houvesses de a sujar de a ter no ventre. Nunca foste outra do que és e como não seres virgem portanto? Posso amar-te e também adorar-te porque o meu amor não te possui e a minha adoração não te afasta.(...) Realizadora dos absurdos, seguidora de frases sem nexo.


Por um lado, era a causa do seu idealismo excessivo e empolado, de uma personalidade oficiosa e orientada para o exterior cuja capacidade de amar, cuja nostalgia espiritual abarcavam tudo o que era grande e nobre à sua volta e se lhe entregavam e aliavam de forma tão íntima que Diotima despertava aquela impressão que tanto confundia os homens, de um sol de amor ardente, mas platónico, cuja descrição suscitara a curiosidade de Ulrich em a conhecer. Por outro lado, porém, o ritmo espaçado das relações conjugais tinha desenvolvido nela um hábito puramente fisiológico, com uma órbita própria, independente das partes mais elevadas do seu ser, como a fome de um trabalhador do campo cujas refeições são raras, mas substanciais.(...)Amava o marido, mas juntava-se a esse amor uma dose crescente de repulsa, e mesmo uma terrível afranta de alma só comparável aos sentimentos de Arquimedes, mergulhado nos seus grandes projetos, experimentaria se o soldado inimigo o não tivesse matado, mas lhe fizesse propostas sexuais obscenas.(...) Talvez isso tivesse provocado em Diotima apenas uma melancolia ou um acentuar do seu idealismo, se, infelizmente, não tivesse acontecido precisamente na altura em que o seu salão começou a criar-lhealgumas dificuldades de ordem espiritual.

Mas eu não conseguia dormir. Estava em mim uma suspeita, um assombro latente, uma subtil incompreensão. Porquê? Na adolescência sonhei muitas vezes que caminhava, com as mãos frias e vermelhas de sangue, através de uma aldeia onde havia casas de pedra sem portas nem janelas. A aldeia nunca mais acabava.Haveria algures uma casa iluminada.Uma casa com portas e janelas, iluminada por dentro. Nunca a encontrei.Acordava a tremer. O sonho repetiu-se ao longo de meses. Penso que nada significava ,ou significava tanto que nunca o entendi ,nem uma vida inteira bastaria para verdadeiramente entender. Não dormia.Impossível.(...) Não sei nada. Atrevo-me a acender um novo cigarro. E o terror entra silenciosamente na minha vida.

À noite tive um sonho incómodo onde se representavam umas escadas de pedra; no cimo delas, eu fazia um sinal imperceptível de despedida a alguém que se afastava em baixo. Atravessei portas que se abriam e fechavam à minha passagem sem eu lhes tocar... Durante o sonho, a mão direita agarrava um punhado de brasas.


O sonho é ver as formas invisíveis
Da distância imprecisa, e, com sensíveis
Movimentos da esperança e da vontade,
Buscar na linha fria do horizonte
A árvore, a praia, a flor, a ave, a fonte —
Os beijos merecidos da Verdade.


Em sonhos tornas-te real: só quando te sonho, te encontro, te sinto. Afinal, a tua perfeição está em mim , não em ti...Serás da matéria de que os sonhos são feitos? À medida que vou perdendo a capacidade de sonhar, desprendo-me de ti e nem sequer o lamento. Como sonho permanecerás...


Ai como eu te quero...

Sempre sonhos! E quanto mais ambiciosa e delicada é a alma, mais os sonhos se afastam do possível. Cada homem leva em si a sua dose de ópio natural, incessantemente segregada e renovada, e, do nascimento até a morte, quantas horas temos nós de alegria positiva e de ações bem-sucedidas e decididas? Viveremos nós, por acaso, passaremos nós alguma vez nesse quadro que o meu espírito pintou, nesse quadro que se parece contigo? Esses tesouros, esses móveis, esse luxo, essa ordem, esses perfumes, essas flores miraculosas, és tu. És tu, ainda, esses grandes rios, esses canais serenos. Tu os conduzes docemente em direção ao mar que é infinito, a refletir as profundezas do céu na limpidez de tua bela alma, e, quando fatigados pelas vagas e saciados dos produtos do Oriente, eles retornam ao porto natal, são ainda os meus pensamentos enriquecidos que voltam do infinito para ti.

Existe um país soberbo, um país idílico, dizem, chamado Cocagne, que eu sonho visitar. País singular, nascido nas brumas do nosso Norte e que se poderia chamar o Oriente do Ocidente… Um verdadeiro país de Cocagne, onde tudo é belo, rico, tranquilo, honesto; onde a vida é livre e doce de se respirar; de onde a desordem, a turbulência e o imprevisto são excluídos; onde a bondade está casada com o silêncio; onde a própria cozinha é poética, rica e excitante ao mesmo tempo; onde tudo se parece contigo... Conheces… esta nostalgia de um país que ignoramos, essa angústia vinda da curiosidade? É um lugar que se parece contigo, onde tudo é belo, rico, tranquilo, honesto; onde a fantasia construiu e decorou uma China ocidental, onde a vida é doce de se respirar, onde a felicidade está casada com o silêncio. É para lá que se deve ir viver, é para lá que se deve ir morrer. Sim, é para lá que se deve ir para respirar, sonhar e alongar as horas para o infinito...Que eles procurem, que pesquisem mais, que recuem sem cessar os limites da sua felicidade, estes alquimistas da horticultura! Eu encontrei a minha tulipa negra e a minha dália azul!Flor incomparável, tulipa reencontrada, dália alegórica, está lá, não é? Nesse belo país tão calmo e tão sonhador…Sonhos! Sempre sonhos!


Con cada vez que te veo nueva admiración me das, y cuando te miro más, aun más mirarte deseo... ¿Qué os admira? ¿Qué os espanta, si fue mi maestro un sueño, y estoy temiendo, en mis ansias, que he de despertar y hallarme otra vez en mi cerrada prisión? Y cuando no sea, el soñarlo sólo basta; pues así llegué a saber que toda la dicha humana, en fin, pasa como sueño, y quiero hoy aprovecharla el tiempo que me durare, pidiendo de nuestras faltas perdón, pues de pechos nobles es tan propio el perdonarlas.


O sebastianismo, fundamentalmente, o que é? É um movimento religioso, feito em volta de uma figura nacional, no sentido dum mito.No sentido simbólico D. Sebastião é Portugal: Portugal que perdeu a sua grandeza com D. Sebastião, e que só voltará a tê-la com o regresso dele, regresso simbólico - como, por um mistério espantoso e divino, a própria vida dele fora simbólica - mas em que não é absurdo confiar.
D. Sebastião voltará, diz a lenda, por uma manhã de névoa, no seu cavalo branco, vindo da ilha longínqua onde esteve esperando a hora da volta. A manhã de névoa indica, evidentemente, um renascimento anuviado por elementos de decadência, por restos da Noite onde viveu a nacionalidade. O cavalo branco tem mais difícil interpretação. Pode ser Sagitário, signo do zodíaco, e conviria, em tal caso, perceber o que a referência indica, perguntando, por exemplo, se há referência à Espanha , ou se há referência a qualquer trânsito de planeta no signo de Sagitário. O Apocalipse porém, fornece outra hipótese sobre este assunto. De difícil interpretação, também, é a Ilha.


O sebastianismo tem sido incompreendido. Tomado por uns como sendo uma mera superstição popular, por outros como um devaneio imperialista da decadência, o facto é que ele tem sido, em geral, tido por assunto desprezível e obscuro. Obscuro com certeza que é, para aqueles que não têm o fio condutor que os leve seguramente através do labirinto das profecias sebásticas. Desprezível está longe de ser — tanto pela razão, estritamente exotérica e sociológica, de que o sebastianismo é o único movimento profundamente nacional que tem havido entre nós…
O que seja propriamente o sebastianismo — hoje mais vigoroso do que nunca, na assombrosa sociedade secreta que o transmite cada vez mais ocultamente de geração em geração, guardado religiosamente o segredo do seu alto sentido simbólico e português, que pouco tem que ver com o D. Sebastião que se diz ter morrido em África, e muito com o D. Sebastião que tem o número cabalístico da Pátria Portuguesa —, eis o que não é talvez permitido desvendar. Mas, para interesse dos leitores, não é talvez mal cabido explicar qual a data marcada para o Grande Regresso, em que a Alma da Pátria se reanimará, se reconstituirá a íntima unidade da Ibéria, através de Portugal, se derrotará finalmente o catolicismo (outro dos elementos estrangeiros entre nós existentes e inimigo radical da Pátria) e se começará a realizar aquela antemanhã ao Quinto Império…
Mas que quer dizer esse Grande Regresso? O que é que regressa? O que significa, ao certo, essa Vinda de D. Sebastião? O próprio D. Sebastião o que significa? Perguntas são estas a que se não pode responder senão com o texto velado do Tertuliano: Aquelas coisas que estão veladas, descobertas, ficam destruídas…


É esse lugar de sonho, esse lugar ao abrigo do sonho, esse passado- presente que a “alma portuguesa” não quer abandonar... Portugal, imerso com doçura no mundo, natural e sobrenaturalmente maravilhoso, converteu-se em ilha-saudade.


Abandonemos Fátima por Trancoso. Esse humilde sapateiro de Trancoso é um dos mestres da nossa alma nacional, uma das razões de ser da nossa independência, um dos impulsionadores do nosso sentimento imperial… Que Portugal tome consciência de si mesmo… Quebremos com Roma. Deitemos fora esse fardo de trevas e de desalento que há séculos pesa, mais ou menos, sobre as nossas inteligências e sobre as nossas decisões. Não precisamos dos sete montes de Roma: também aqui, em Lisboa, temos sete montes. Edifiquemos sobre estes a nossa Igreja. Deixemo-nos de importar Deus, porque Deus [...] esse nacionalismo inquinado de fé católica, esse patriotismo viciado de uma religião estranha. Não queremos estrangeiros. No sentimento patriótico não deve existir elemento que não seja nosso. Expulsemos pois o elemento romano. Se há que haver religião no nosso patriotismo, extraiamo-la desse mesmo patriotismo. Felizmente temo-la: o sebastianismo.

A manhã de nevoeiro. Por manhã entende-se o princípio de qualquer coisa nova — época, fase, ou coisa semelhante. Por nevoeiro entende-se que o Desejado virá “encoberto”; que, chegando, ou chegado, se não perceberá que chegou. A primeira vinda, 1640, mostra isto bem: a data marca o princípio de uma dinastia, e a vinda de D. Sebastião foi “encoberta”, foi através de nevoeiro, pois julgando todos — em virtude de sua simbologia primitiva — que o Encoberto era D. João IV, em verdade o Encoberto era o facto abstracto da Independência, como aqui se viu. Na Segunda Vinda, em 1888, por pouco que possamos compreender, compreendemos contudo que a profecia tradicional se cumpre: sabemos que 1888 é “manhã”, porque é o princípio do Reino do Sol — por onde se notará que melhor não pode haver para que se simbolize por “manhã”—, e, estando nós já a 37 anos dessa data, sem que ainda possamos compreender o que nela se deu, não pode haver dúvida do carácter encoberto, nevoento, da Vinda Segunda de D. Sebastião.

O defeito, a fraqueza, do sebastianismo tradicional reside, não em ele, senão em a deficiência e a fraqueza de seus intérpretes. Ignorantes, decadentes, ensinados a crer pelo espírito católico, esperavam de fora o Encoberto, aguardavam inertes a salvação externa. O Encoberto, porém, é um conceito nosso; para que venha, é preciso que o façamos aparecer, que o criemos em nós através de nós. É com ânsia quotidiana, com uma vontade de hora a hora, que em nossa alma o devemos erguer, de ali o projectando para o mundo chamado externo... Não há homens salvadores. Não há Messias. O máximo que um grande homem pode ser é um estimulador de almas, um despertador de energias alheias...

Ao que nós chegámos. Uma coisa é esperar o aparecimento de um rei falecido há séculos, outra é contar com um heleno para nos conseguir melhores condições de vida. Que é feito das fantasias tradicionais portuguesas? Onde estão as ilusões nacionais de antanho? É certo que a probabilidade de Portugal beneficiar da acção de Alexis Tsipras acaba por ser maior do que a do regresso de D. Sebastião, mas quão fracos têm de ser os nossos mitos para que um grego de 40 anos os substitua tão facilmente?

Flui, indeciso na bruma, / Mais do que a bruma indeciso,/ Um ser que é coisa a achar / E a quem nada é preciso. Tenho em mim como uma bruma / Que nada é nem contém / A saudade de coisa nenhuma...

Adoro interpretar. É tão mais real que a vida.

Ninguém sabe que coisa quer, Ninguém conhece que alma tem, Nem o que é mal nem o que é bem. (Que ânsia distante perto chora?) Tudo é incerto e derradeiro. Tudo é disperso, nada é inteiro... Nunca será a hora...

Porque curiosamente, onde menos te encontro é onde tu exististe. Desprendeste-te donde estiveste e é em mim que mais me acontece tu estares. Mas nem sempre. Quantos dias se passam sem tu apareceres. E às vezes penso é bom que assim seja para eu aprender a estar só. Mas de outras vezes rompes-me pela vida dentro e eu quase sufoco da tua presença. Ouço-te dizer o meu nome e eu corro ao teu encontro e digo-te vai-te, vai-te embora. Por favor. E eu sinto-me logo tão infeliz. E digo-te não vás. Fica. Para sempre. Há em mim uma luta entre o desejo de que te esqueça e o de endoidecer contigo.

O que nós não somos – porque nada o é – como realidade somo-lo se como ausência o amamos, e, através desse amor, lhe conferimos existência, apenas, mas sem limites, saudosa...


Esperai! Caí no areal e na hora adversa Que Deus concede aos seus Para o intervalo em que esteja a alma imersa Em sonhos que são Deus. Que importa o areal e a morte e a desventura Se com Deus me guardei? É O que eu me sonhei que eterno duraÉ Esse que regressarei

Haverá rasgões no espaço Que dêem para outro lado, E que, um deles encontrado, Aqui, onde há só sargaço, Surja uma ilha velada, O país afortunado Que guarda o Rei desterrado Em sua vida encantada?

Só te sentir e te pensar Meus dias vácuos enche e doura. Mas quando quererás voltar? Quando é o Rei? Quando é a Hora?




There's a rhythm in rush these days Where the lights don't move And the colors don't fade Leaves you empty with nothing but dreams In a world gone shallow...

Diálogo na Sombra
A . — Quisera saber como és feito por dentro ... Como é a tua vontade por dentro, que coisas há naquela parte do teu sentir que tu não medes que sentes.
E . — Tão feminina nisso ... E és da matéria das coisas irreais!
A . — Quando levantas um braço eu queria saber porque coisas do além, tu levantas esse braço ... O que há por detrás de o tu quereres levantar e de saberes porque o queres levantar? Vim contigo há tanto e não sei quem tu és... Reparo às vezes nos pequenos gestos que fazes e vejo quão pouco sei de ti ...
E . — Eu próprio não sei quem eu sou ... Meus gestos são entes estranhos quando reparo neles, e sombras incertas quando não reparo. São uma perpétua revelação a mim próprio. Sou tão exterior a conhecer‑me como o mundo externo ... Entre o meu querer erguer um braço e ele erguer‑se vai um intervalo divino ... Transponho, entre pensar e falar, um abismo sem fundo humano.
A . — Eu sou simples como uma pedra no caminho ou uma rosa numa roseira.
E . — És simples porque não te espelhas em ti. Uma pedra no caminho é (atónita) um mistério igual a Deus ... Uma rosa numa roseira é tão compreensível como a Vida ...
A . — Olho‑te e amo‑te e não te possuo nunca. Floriram em (...) as rosas do meu jardim ... Acompanho‑te e perco‑te sempre que olho para ti.
E . — Eu próprio não me acompanho ... como poderás tu acompanhar‑me? Vejo meus pés andar como quem vê passar um cortejo humano nas distâncias e na noite ... Reparo na minha sombra como numa face desconhecida que espreitou de fora à janela da minha moradia ... Não compreendo nada ... Não compreendo nada.
A . — Mas há coisas que tu compreendes e que nunca me confessas. Falas‑me dos teus amores e dos teus desejos mas eu sinto que guardas para ti, fechada na mão, uma jóia qualquer do teu sentimento. Porquê se eu te amo e se somos um só?
E . — Porque nunca somos um só. Aquilo que eu não te digo, apesar de habitarmos juntos este palácio e juntos pensarmos neste jardim. Segredo‑o a mim quando estou mais só e nem ergo a voz, para que me não ouça não sei quem que me não pode ouvir.
A . — Sou a tua Alma e a mim‑próprio não me contas tudo! Passou ontem uma brisa leve pelo jardim. Trouxe perfumes de outros jardins.


... na aventura de um livro levado a bom termo, ou na vida feliz de um escritor, deve haver, por vezes, um pouco de sombra, alguém que não deixa passar a frase inexacta ...;alguém que volte a ler vinte vezes connosco...;alguém que tire por nós das estantes das bibliotecas os grossos tomos...;alguém que nos ampara, nos aprova, por vezes, nos combate...;alguém que não é a nossa sombra,nem o nosso reflexo,nem mesmo o nosso complemento,mas ela própria; alguém que nos deixa divinamente livres e, contudo, nos obriga a ser plenamente o que somos. Hospes Comesque.

No seu aspecto mais profundo,o meu conhecimento de mim próprio é obscuro,interior, inexpresso,secreto como uma cumplicidade. No seu aspecto mais impessoal, tão gelado como as teorias que eu posso elaborar acerca dos números:emprego o que tenho de inteligência para ver de longe e de mais alto a minha vida,que se torna então a vida de outro. A minha vida tem contornos menos firmes...é talvez o que eu não fui que a define com maior clareza...a vida fez-me sempre deslizar.A passagem dos meus dias parece compor-se de materiais diversos acumulados desordenadamente ...Animula Vagula...

E sempre no pingo de tempo que vinha nada acontecia se ela continuava a esperar o que ia acontecer.A única verdade é que vivo. Sinceramente, eu vivo. Quem sou? Bem, isso já é demais (...) Perco a consciência, mas não importa, encontro a maior serenidade na alucinação. É curioso como não sei dizer quem sou. Quer dizer, sei-o bem, mas não posso dizer. Sobretudo tenho medo de dizer, porque no momento em que tento falar não só não exprimo o que sinto como o que sinto se transforma lentamente no que eu digo.

Mesmo só em certo ponto do jogo perdia a sensação de que estava mentindo – e tinha medo de não estar presente em todos os seus pensamentos. Ela morreu assim que pôde.

Também me surpreendo, os olhos abertos para o espelho pálido, de que haja tanta coisa em mim além do conhecido, tanta coisa sempre silenciosa.

Em vez de me obter com a fuga, vejo-me desamparada, jogada num cubículo sem dimensões, onde a luz e a sombra são fantasmas inquietos. No meu interior encontro o silêncio procurado. Mas dele fico tão perdida de qualquer lembrança de algum ser humano e de mim mesma, que transformo essa impressão em certeza de solidão física. Se desse um grito – imagino já sem lucidez – minha voz receberia o eco igual e indiferente das paredes da terra. Sem viver coisas eu não encontrei a vida, pois? Mas, mesmo assim na solitude branca e limitada onde caio, ainda estou presa entre montanhas fechadas. (...) Liberdade é pouco. O que desejo ainda não tem nome.
Ainda não se cansara de existir e bastava-se tanto que às vezes, de grande felicidade, sentia a tristeza cobri-la como a sombra de um manto, deixando-a fresca e silenciosa como um entardecer. Ela nada esperava. Ela era em si, o próprio fim.

Um dia, depois de viver sem tédio muitos iguais, viu-se diferente de si mesma. Estava cansada. Andou de um lado para outro. Ela própria não sabia o que queria. Pôs-se a cantar baixinho, com a boca fechada. Depois cansou-se e passou a pensar em coisas. Mas não o conseguia inteiramente. Dentro de si algo tentava parar. Ficou esperando e nada vinha para ela. Vagarosamente entristeceu de uma tristeza insuficiente e por isso duplamente triste. Continuou a andar por vários dias e seus passos soavam como o cair de folhas mortas no chão. (...) Na verdade ela sempre fora duas, a que sabia ligeiramente que era e a que era mesmo, profundamente.

E foi tão corpo que foi puro espírito. Atravessou os acontecimentos e as horas imaterial, esgueirando-se entre eles com a leveza de um instante.
As coisas principais assaltavam-na em quaisquer momentos, também nos vazios, enchendo-os de significados.

A noite densa e escura foi cortada ao meio, separada em dois blocos negros de sono. Onde estava? Entre os dois pedaços, vendo-os – o que já dormira e o que ainda iria dormir – isolada no sem-tempo e no sem-espaço, num intervalo vazio. Esse trecho seria descontado de seus anos de vida.

O silêncio se prolongava à espera do que pudessem dizer. Mas nenhum dos dois descobria no outro o começo de uma palavra. Fundiam-se ambos na quietude.


Now, as the air grows cold The trees unfold And I am lost and not found...

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