Não é neccessário vivermos ao lado de alguém para nos sentirmos ligados a esse alguém mais do que a qualquer outra pessoa...

sexta-feira, 16 de fevereiro de 2018

era uma vez uma insónia...

Soñé que yo Soñé que vos Soñé que hablábamos...


Introdução

Cantiga de Amigo
Nem um poema nem um verso nem um canto
tudo raso de ausência tudo liso de espanto
e nem Camões Virgílio Shelley Dante
o meu amigo está longe
e a distância é bastante
.

Nem um som nem um grito nem um ai
tudo calado todos sem mãe nem pai
Ah não Camões Virgílio Shelley Dante!

o meu amigo está longe
e a tristeza é bastante.

Nada a não ser este silêncio tenso
que faz do amor sozinho o amor imenso.
Calai Camões Virgílio Shelley Dante:
o meu amigo está longe
e a saudade é bastante!


Today you were far away and I didn't ask you why What could I say I was far away You just walked away and I just watched you What could I say How close am I to losing you Tonight you just close your eyes and I just watch you slip away.
Hey, are you awake Yeah I'm right here Well can I ask you about today...




Desperto de sonhar-te Quando inda a noite é funda, E um céu estelar faz parte Do silêncio que inunda. Perdi poder amar-te E a treva me circunda. Talvez que relembrasse, Sonhando-te, outro ser, E aquilo que sonhasse Fosse tornar a ter. Mas despertei, e faz-se Claro em meu quarto a ver.Insónia de perder-te! Quem foste já não sei. Pela janela ver-te Cada astro a sua lei. Como, sem sonhar ter-te?...Porque não dormirei?

Desenvolvimento

Toda a noite, comigo entredesperto, a monotonia fria me insistiu nos vidros. Ora um rasgo de vento, em ar mais alto, açoitava, e a água ondeava de som e passava mãos rápidas pela vidraça; ora com som surdo só fazia sono no exterior morto. A minha alma era a mesma de sempre, entre lençóis como entre gente, dolorosamente consciente do mundo. Tardava o dia como a felicidade — àquela hora parecia que também indefinidamente. Se o dia e a felicidade nunca viessem! Se esperar, ao menos, pudesse nem sequer ter a desilusão de conseguir.(...) Nas paredes escuramente visíveis do meu quarto, se eu abria os olhos do sono falso, boiavam fragmentos de sonhos por fazer, vagas luzes, riscos pretos, coisas de nada que trepavam e desciam. Os móveis, maiores do que de dia, manchavam vagamente o absurdo da treva. A porta era indicada por qualquer coisa nem mais branca, nem mais preta do que a noite, mas diferente. Quanto à janela (eu só) a ouvia.(...) A solidão da minha alma alargava-se, alastrava, invadia o que eu sentia, o que eu queria, o que eu ia a sonhar. Os objectos vagos, participantes, na sombra, da minha insónia, passavam a ter lugar e dor na minha desolação.

Arrumar a vida, pôr prateleiras na vontade e na acção. Quero fazer isto agora, como sempre quis, com o mesmo resultado; Mas que bom ter o propósito claro, firme só na clareza, de fazer qualquer coisa! Vou fazer as malas para o Definitivo, Organizar Álvaro de Campos, E amanhã ficar na mesma coisa que antes de ontem — um antes de ontem que é sempre... Sorrio do conhecimento antecipado da coisa-nenhuma que serei. Sorrio ao menos; sempre é alguma coisa o sorrir...Olho dos papéis que estou pensando em arrumar para a janela por onde não vi a vendedeira que ouvi por ela, E o meu sorriso, que ainda não acabara, inclui uma crítica metafísica.Descri de todos os deuses diante de uma secretária por arrumar, Fitei de frente todos os destinos pela distracção de ouvir apregoando, E o meu cansaço é um barco velho que apodrece na praia deserta, E com esta imagem de qualquer outro poeta fecho a secretária e o poema...Como um deus, não arrumei nem uma coisa nem outra...


Espera-me uma insónia da largura dos astros,
E um bocejo inútil do comprimento do mundo.

Não durmo; não posso ler quando acordo de noite,
Não posso escrever quando acordo de noite,
Não posso pensar quando acordo de noite —
Meu Deus, nem posso sonhar quando acordo de noite!

Ah, o ópio de ser outra pessoa qualquer!

Não durmo, jazo, cadáver acordado, sentindo,
E o meu sentimento é um pensamento vazio.
Passam por mim, transtornadas, coisas que me sucederam
— Todas aquelas de que me arrependo e me culpo;
Passam por mim, transtornadas, coisas que me não sucederam
— Todas aquelas de que me arrependo e me culpo;
Passam por mim, transtornadas, coisas que não são nada,
E até dessas me arrependo, me culpo, e não durmo.


Nas grandes horas em que a insónia avulta
Como um novo universo doloroso,
E a mente é clara com um ser que insulta
O uso confuso com que o dia é ocioso,
Cismo, embebido em sombras de repouso
Onde habitam fantasmas e a alma é oculta,
Em quanto errei e quanto ou dor ou gozo
Me farão nada, como frase estulta.
Cismo, cheio de nada, e a noite é tudo.
Meu coração, que fala estando mudo,
Repete seu monótono torpor
Na sombra, no delírio da clareza,
E não há Deus, nem ser, nem Natureza
E a própria mágoa melhor fora dor.


Acordo de noite, muito de noite, no silêncio todo. São — tictac visível — quatro horas de tardar o dia. Abro a janela directamente, no desespero da insónia. E, de repente, humano, O quadrado com cruz de uma janela iluminada! Fraternidade na noite! Fraternidade involuntária, incógnita, na noite! Estamos ambos despertos e a humanidade é alheia. Dorme. Nós temos luz. Quem serás?

Ó madrugada, tardas tanto... Vem... Vem, inutilmente, Trazer-me outro dia igual a este, a ser seguido por outra noite igual a esta... Vem trazer-me a alegria dessa esperança triste, Porque sempre és alegre, e sempre trazes esperança, Segundo a velha literatura das sensações. Vem, traz a esperança, vem, traz a esperança. O meu cansaço entra pelo colchão dentro. Doem-me as costas de não estar deitado de lado. Se estivesse deitado de lado doíam-me as costas de estar deitado de lado. Vem, madrugada, chega!
Que horas são? Não sei.
Não tenho energia para estender uma mão para o relógio,
Não tenho energia para nada, para mais nada...
Só para estes versos, escritos no dia seguinte.
Sim, escritos no dia seguinte.

Todos os versos são sempre escritos no dia seguinte. Noite absoluta, sossego absoluto, lá fora. Paz em toda a Natureza. A Humanidade repousa e esquece as suas amarguras. Exactamente. A Humanidade esquece as suas alegrias e amarguras. Costuma dizer-se isto. A Humanidade esquece, sim, a Humanidade esquece, Mas mesmo acordada a Humanidade esquece. Exactamente. Mas não durmo.


Na noite terrível, substância natural de todas as noites,
Na noite de insónia, substância natural de todas as minhas noites, Relembro, velando em modorra incómoda,
Relembro o que fiz e o que podia ter feito na vida.
Relembro, e uma angústia
Espalha-se por mim todo como um frio do corpo ou um medo.
O irreparável do meu passado — esse é que é o cadáver!
Todos os outros cadáveres pode ser que sejam ilusão.
Todos os mortos pode ser que sejam vivos noutra parte.
Todos os meus próprios momentos passados pode ser que existam algures,
Na ilusão do espaço e do tempo,
Na falsidade do decorrer.
Mas o que eu não fui, o que eu não fiz, o que nem sequer sonhei;
O que só agora vejo que deveria ter feito,
O que só agora claramente vejo que deveria ter sido —
Isso é que é morto para além de todos os Deuses,
Isso — e foi afinal o melhor de mim — é que nem os Deuses fazem viver...
Se em certa altura
Tivesse voltado para a esquerda em vez de para a direita;
Se em certo momento
Tivesse dito sim em vez de não, ou não em vez de sim;
Se em certa conversa
Tivesse tido as frases que só agora, no meio-sono, elaboro —
Se tudo isso tivesse sido assim,
Seria outro hoje, e talvez o universo inteiro
Seria insensivelmente levado a ser outro também.
Mas não virei para o lado irreparavelmente perdido,
Não virei nem pensei em virar, e só agora o percebo;
Mas não disse não ou não disse sim, e só agora vejo o que não disse;
Mas as frases que faltou dizer nesse momento surgem-me todas,
Claras, inevitáveis, naturais,
A conversa fechada concludentemente,
A matéria toda resolvida...
Mas só agora o que nunca foi, nem será para trás, me dói.
O que falhei deveras não tem esperança nenhuma
Em sistema metafísico nenhum.
Pode ser que para outro mundo eu possa levar o que sonhei.
Mas poderei eu levar para outro mundo o que me esqueci de sonhar?
Esses sim, os sonhos por haver, é que são o cadáver.
Enterro-o no meu coração para sempre, para todo o tempo, para todos os universos.
Nesta noite em que não durmo, e o sossego me cerca
Como uma verdade de que não partilho,
E lá fora o luar, como a esperança que não tenho, é invisível p’ra mim.


Conclusão

(caeiro e reis não têm insónias. Prefiro as de campos às de pessoa, mas eu não tenho sonhos por haver: sonhei todos os sonhos que havia para sonhar; as de soares são insuperáveis como seres literários, mas as minhas - no momento em que a realidade e a ficção se interpenetram e eu me metamorfoseio em fautora de inexstências - são insónias de uma riqueza interior inexcedível...Não as sei dizer, como campos ou soares, mas vivencio uma forma superior de sentir...)


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