Não é neccessário vivermos ao lado de alguém para nos sentirmos ligados a esse alguém mais do que a qualquer outra pessoa...
domingo, 15 de abril de 2018
Lamentos e cruzes...
I don't know why nobody told you How to unfold your love I don't know how someone controlled you They bought and sold you...
À leve embriaguez da febre ligeira, quando um desconforto mole e penetrante e frio pelos ossos doridos fora e quente nos olhos sob têmporas que batem — a esse desconforto quero como um escravo a um tirano amado. Dá-me aquela quebrada passividade trémula em que entrevejo visões, viro esquinas de ideias e entre entrepolamentos de sentimentos me desconcerto.
Pensar, sentir, querer, tornam-se uma só confusa coisa. As crenças, as sensações, as coisas imaginadas e as actuais estão desarrumadas, são como o conteúdo misturado no chão, de várias gavetas subvertidas...
Darkness at the door to greet me...
Quero ignorado, e calmo
Por ignorado, e próprio
Por calmo, encher meus dias
De não querer mais deles.
Aos que a riqueza toca
O ouro irrita a pele.
Aos que a fama bafeja
Embacia-se a vida.
Aos que a felicidade
É sol, virá a noite.
Mas ao que nada espera
Tudo que vem é grato
Lamento por todos nós...
Há crimes de paixão e crimes de lógica. O código penal distingue um do outro, bastante comodamente, pela premeditação. Estamos na época da premeditação e do crime perfeito. Nossos criminosos não são mais aquelas crianças desarmadas que invocavam a desculpa do amor. São, ao contrário, adultos, e seu álibi é irrefutável: a filosofia pode servir para tudo, até mesmo para transformar assassinos em juízes.
Lamento pela Síria
No século VIII antes de Cristo, a Síria tentou coligar-se com Israel para conseguir assim resistir ao poderio imperialista da Assíria. No entanto, no ano de 732 a.C. a cidade de Damasco foi conquistada e destruída pelo rei assírio. A população civil sofreu as piores crueldades e indignidades. Crianças foram mortas à frente das mães, que por sua vez foram violadas e levadas para a escravatura. A população masculina foi morta ou acorrentada e deportada.
Sobre isto que aconteceu em 732 a.C., o autor da primeira parte do livro de Isaías escreveu esta «profecia», já depois dos factos ocorridos:
«Eis que Damasco será removida dentre as cidades
E se tornará uma ruína» (Isaías 17:1 LXX; cito o Volume III da minha tradução da Bíblia).
Embora estas palavras do profeta não tenham rigorosamente nada a ver com o que se passa hoje na Síria - ao contrário do que alegam alguns evangélicos fundamentalistas que as têm citado para demonstrar que a Bíblia prevê o que está a acontecer hoje - a verdade é que se está novamente a passar na Síria um horror que não é só secular: é milenar.
O horror da guerra é milenar; as crueldades impostas a inocentes, vítimas dos imperialismos de machos drogados com a sua masculinidade tóxica: tudo isto é uma tragédia humana que se repete hoje. No século VIII a.C. o nome tóxico era o do rei assírio Tiglath-Pileser; hoje os nomes tóxicos são Assad, Trump, Putin, etc. Os sírios de hoje, como os de há 2800 anos, sofrem na pele o horror da «vã cobiça», da «glória de mandar».
A Síria já foi sucessivamente conquistada pelos impérios dos assírios, persas, gregos, romanos, novamente persas, árabes... hoje sofre nas mãos de um criminoso chamado Assad e como foco de embate entre os impérios russo e americano. Pobre, pobre Síria.
«Ao cair da noite haverá lamentação» (Isaías 17:14).
A premissa embala-nos na direção de um thriller, mas a estranha missão que é imposta ao protagonista desta história desvia-nos por outros caminhos. O autor dispõe poucas peças no tabuleiro do jogo logo no prólogo: esta é a história de Erik Gould, um jazzman que respira música por todos os poros, e talvez a tenha até por dentro, na própria alma. A CIA estuda-o e, ao fim de inúmeros relatórios, chega à conclusão de que ele é a pessoa ideal para uma missão com o nome de código Jazz Ambassadors, urdida para levar ao bloco de Leste comunista a influência libertadora ocidental através da música. Essa operação diplomática, expliquemos desde já, existiu mesmo, e foi prolongada para lá da Guerra Fria.
Na verdade, Afonso Cruz engana-nos com esta missão e, em Nem Todas as Baleias Voam, acaba por nos guiar para temas como o amor e a morte, a arte ou a solidão. Gould partilha com o filho, Tristan, um dom insólito: a sinestesia. A ele dá-lhe para ver música por todo o lado e senti-la com outros sentidos, atribuindo cores às notas. O filho vê os sentimentos, os seus e os dos que o rodeiam, na forma de pessoas. Outras intrigas se cruzam numa teia de considerável imaginação. Erik lamenta o desaparecimento súbito do amor da sua vida, a russa Natasha, mãe de Tristan. Na verdade, Natasha será o móbil de um grande complô que vai acompanhar a missão do músico ao Leste...
Neste ponto é preciso fazer uma travagem e parar com os spoilers. O melhor é ficar com um pequeno exemplo da narrativa, quando os agentes da CIA que analisam as potencialidades de Gould para vir a ser um “embaixador do jazz” se deparam com uma das muitas surpresas que o protagonista tem para lhes dar. O músico tinha por hábito cortar-se para se infligir dor. Um dos agentes fala do seu corpo coberto de cicatrizes: “A meu ver”, diz ele ao superior, “completamente escusadas”. Fazia-o, continua o espião, “para se libertar da música”. O outro, perplexo, quis saber mais. A resposta, bem ao estilo de Afonso Cruz, é insólita: “Achava que estava a abarrotar de música, que ela já não lhe cabia no corpo, e cortava-se como quem faz uma sangria, para se libertar.” - in Visão
A realidade é apenas uma fantasia bem penteada...
Há metades que funcionam. Por exemplo, as meias doses nos restaurantes. Mas há outras metades que são o maior desastre, como um cirurgião que interrompe a operação a meio. E eu, sem a Natasha.
Se Tristan soubesse verbalizar as suas emoções, seria assim: Estou à espera de que a felicidade comece a crescer como os bebés no útero das mães e que um dia nasça e chore e queira mamar e nós eduquemos a felicidade e a levemos à escola para que saiba ler as letras das nossas veias e fazer contas de multiplicar com a nossa saliva, estou à espera de um beijo daqueles que são dirigidos somente a uma pessoa, e não daqueles que se dão a pensar em alguém que está longe, estou à espera que o dia chegue ao fim e que não comece outro, porque os dias são uma chatice. Mas Tristan não saberia verbalizar as suas emoções, portanto: ia comer primeiro.
«Cruz faz a apologia da escrita labiríntica, em que realidade e ficção se confundem; mas também nos diz que a visão do mundo é uma acumulação de visões parciais sobrepostas. E algumas delas imaginadas.»
Público
Eram isso os fantasmas, restos das pessoas que amámos, e a nossa casa ficava assim, repleta de assombrações modernas e antigas, densas e subtis. Tínhamos um protocolo com a memória, tínhamos assinado, juntamente com a dádiva da vida, o compromisso de carregar os mortos no nosso corpo, nos móveis da casa, nas paredes e na luz esmaecida dos candeeiros de estanho e de cobre, e cumpríamos esse contrato com um rigor e uma ética absolutamente notáveis, a ponto de, tantas vezes, chorarmos sem qualquer razão aparente.
Quando acordaram de manhã, na mesma cama, ela disse-lhe que queria ter um passado com ele. Não era um futuro, que é uma coisa incerta, mas um passado, que é isso que têm dois velhos depois de passarem uma vida juntos. Quando disse que queria ter um passado com alguém, queria dizer tudo. Não desejava uma incerteza, mas a História, a verdade.”
Sabe, sargento, a loucura, quando dá a um grande número de pessoas, chama-se sociedade contemporânea. Quando dá a uma pessoa só, interna-se essa pessoa.
A sabedoria vem com a idade, com a velhice, e suspeito que nos come os órgãos, pois quando mais sabemos das coisas, mais o fígado se queixa, mais os rins têm insuficiência, mais o coração pára. A sabedoria come tudo.”
Uma criança recém-nascida, julga-se infinita. Não sabe onde é que acaba, onde é que tem os seus limites. Depois, descobre os pés e fica fascinada. É um bebé que se depara com os seus limites: Ah, é então aqui que finda o meu corpo. E, aos poucos, o mundo vai-se tornando maior, porque a criança se vai tornando mais pequena: antes era tudo e agora não vá além dos pés. Vai-se contraindo. O ego vai-se arrepiando num pontinho e deixando espaço para que as coisas possam existir à sua volta. Surge o Eu e o Tu. A criança cria essa distância, e o melhor que se pode esperar é que essa distância mantenha alguma proximidade. Mas tudo isto faz parte do crescimento, tal como faz parte do encolhimento e da expansão do universo.”
Numa sociedade, se houver espaço, nunca há conflito.
Rosa nunca se sente única. Isso nunca lhe acontece na vida. Todos os seus momentos são minimizados com um "isso também já me aconteceu". A vida de Rosa é partilhada por todos e não tem nada de único. Todos os seres humanos são únicos, menos Rosa. Ela pertence a todos, como o pão da missa que se divide pela humanidade.
Diz o judaísmo que o inefável nome de Deus é composto por quatro letras. Que esse nome é um tabu, que impronunciável. Digo-vos que eles têm razão, e que isto é ciência da mais profunda. As letras que compõe o nome de Deus são quatro: A, T, C, G. Adenina, timina, citosina e guanina. É isso que faz o nosso código, um código gigante, uma palavra tão grande que é impronunciável.”
Uma relação de duas pessoas converteu-se numa de três, numa coisa mais triangular. Só uma relação que consegue formar um polígono consegue sobreviver, pensava Borja. Quando assenta em dois pontos, não resiste ao tempo, é um segmento de recta muito frágil. É um pontinho a olhar para outro pontinho, não tem a solidez do triângulo e, muito menos, da circunferência. Parte-se como um palito.”
Mesmo os lugares mais rarefeitos, como o espaço sideral e a estupidez humana, são preenchidos por alguma coisa: luz, metais leves, preconceitos, partículas e subpartículas dos átomos, radiações, chavões e telenovelas.
― Afonso Cruz, Jesus Cristo Bebia Cerveja
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“A vida das pessoas acaba assim e Matilde nem sequer tem consciência de que morreu uma das suas mortes. De cada vez que deixamos de ser percebidos, morremos. Quando somos enterrados deixamos de ser percebidos por toda a gente, mas quando os outros já não olham para nós, ficaram condenados para um número limitado de pessoas, a uma morte em tudo idêntica à outra. A nossa morte não acontece quando somos enterrados, acontece continuamente: os dentes caem, os joelhos solidificam, a pele engelha-se, os amigos partem. Tudo isso é a morte. O momento final é apenas isso, um momento.”
O tempo, nas relações, não anda necessariamente de trás para a frente, do passado para o futuro. É fácil verificar que uma mulher nova pode ser muito mais velhas do que um velho, e que um homem de idade impressionante pode ser uma criança. Nas relações, o tempo comporta-se de maneira diferente. O único relógio que mede o passar destes tempos são os sentimentos.”
As memórias são as cinzas das palavras, são mais pesadas do que os pensamentos e acabam por se deixar cair pelo corpo adentro, cinzeiro abaixo. As memórias devem ser procuradas, não na cabeça encanecida, mas no corpo. As memórias enraízam-se nos ossos, na pele, nas rugas.
- Ari, quando o vejo, lá no escuro (abro sempre uma fresta nos cortinados para espreitar), é uma luz na minha vida.
- É da lanterna...
- A sua lanterna ilumina-me a vida.
- É muito simpática. Eu nem mereço, só aponto a lanterna para o lugar...
- Só aponta a lanterna? Quem dera que na nossa vida houvesse um arrumador como o Ari, a apontar a lanterna para o lugar a que nos deveríamos dirigir, a iluminar o nosso caminho. Mas não, não temos ninguém. A minha mãe, que Deus a tenha, esperava isso do Senhor Jesus, mas nunca lhe vi a lanterna nem o vi arrumar coisa nenhuma.”
Margarida atingira os seus cinco anos. Uma idade fácil para as crianças, é aquela idade em que basta mostrar a mão aberta para dizer há quanto tempo calcorreia este mundo inabitado por Deus.
Melhoramos uma religião se o altar voltar a ser a mesa da refeição, tal como aconteceu na sua génese. Partilhar o pão para que, podendo todos ver a suas necessidades básicas cumpridas, se possam dedicar a encontrar Deus. Há dois tipos de Deus: o que nasce de barriga vazia, terroso, carnal, necessário para criar uma sensação de amparo e justiça num mundo em que não há nada disso. O segundo é um luxo, fruto de elucubrações. Não precisamos dele, mas ainda assim fazemo-lo existir. É feito de argumentos. Nasce de barrigas cheias. No primeiro acreditamos com o corpo, com o fígado, com o estômago, com os rins e com o sangue. No segundo acreditamos com a cabeça.
“Há dois tipos de Deus: o que nasce da barriga vazia e o que nasce da barriga cheia. O primeiro é vazio, terroso, carnal, necessário para criar uma sensação de amparo e justiça num mundo em que não há nada disso. O segundo é um luxo, fruto de elucubrações. Não precisamos dele, mas ainda assim fazemo-lo existir. É feito de argumentos. Nasce de barrigas cheias. No primeiro, acreditamos com o corpo, com o fígado, com o estômago, com os rins e com o sangue. No segundo acreditamos com a cabeça. O primeiro tem mãos, unhas encardidas, barbas e relâmpagos no voz. O segundo não tem forma, nem corpo, nem nome.
Depois da suas preces, o milagre havia acontecido: a Virgem, para não ir contra o livre-arbítrio, tão fundamental para a teologia da Igreja, decidira que, na impossibilidade de mudar o carácter de uma pessoa, apenas restaria a solução de a substituir, mas com as mesmas características que essa mesma pessoa deveria ter.”
Miss Whittemore sentia, em criança, que aquelas florinhas do campo eram capazes de atar as pessoas umas às outras, como as letras compões palavras, e imaginou fazer isso pelo mundo todo. Depois foi percebendo que o mundo não acabava nos muros da feitoria, como sempre achara. Então, entrou numa igreja e deixou uma flor no altar: Deus que distribuísse pelos homens.”
A natureza enche chouriços, não há espaços vazios nas suas tripas. (...) Há muita incompetência na forma como a natureza preenche os espaços, falta-lhe capacidade para se alojar nos espaços metafísicos.
Não confundas a vida com o teatro, dissera-me Rosa; e eu ouvia as mesmas palavras na boca da historiadora ao dizer-me que não devia confundir o que nasce da investigação histórica com o que realmente se passou, numa determinada época. A história do passado, somos nós que a fazemos, e não os seus protagonistas; e eu pensava nisto como se fosse uma aberração, pondo em causa todos os livros que lemos e por onde estudámos a evolução do mundo e das sociedades. Seria tudo uma pura ficção? Então, disse-lhe, a verdadeira história está nos romances, porque aí é onde o homem projecta a sua realidade, entre o que viveu e o que sonhou, sem qualquer preocupação de construir uma cena dominada pela verosimilhança que os acontecimentos conferem ao que se escreve.
Tal como, através do cristal, o olhar não encontra obstáculos para atingir o centro da própria transparência do objecto, e parece que passa para o outro lado numa ilusão óptica de transcendência, também os corpos ganham essa imateralidade onde é mais importante a sua função do que a sua essência.
Passos da Cruz- Fernando pessoa- é uma obra simbolista - mesmo que lhe chamem paúlica, sensacionista ou outra coisa qualquer.
Não sou eu quem descrevo.Eu sou a tela
E oculta mão colora alguém em mim.
Pus a alma no nexo de perdê-la
E o meu princípio floresceu sem fim.
Que importa o tédio que dentro de mim gela,
E o leve outono,e as galas,e o marfim,
E a congruência da alma que se vela
Como os sonhados pálidos de cetim?
Disperso...E a hora como um leque fecha-se....
Minha alma é um arco tendo ao fundo o mar...
O tédio?A mágoa?A vida?O sonho?Deixa-se...
E,abrindo as asas sobre Renovar,
A erma sombra do voo começado
Pestaneja no campo abandonado....
João da Cruz, o pai de Mariana, é uma personagem sensata e equilibrada, a única que possui traços realistas. Ferreiro de profissão e transformado em assassino numa briga, João da Cruz consegue de Domingos Botelho, pai de Simão, a liberdade. Em nome dessa dívida de gratidão, torna-se protetor do herói com palavras sempre oportunas, lúcidas, estratégicas, e com atos corajosos e violentos, quando necessário. A sua linguagem cheia de provérbios e ditados populares, a simplicidade de sua vida, somadas ao amor que dedica á filha, por quem vive, desfazem aos olhos do leitor os crimes que comete e os substituem por uma honradez, uma bondade inata. forte e viril, que nos parecem representativas da visão do autor a respeito das coroas rurais em Portugal.
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