Vendo-te recordei que as cidades mudam mas os campos são eternos. Chamam bíblicas às pedras e aos montes, porque são os mesmos, do mesmo modo que os dos tempos bíblicos deviam ter sido. -Bernardo Soares
Chegados de Budapeste. Dois vultos de noite. Duas manchas escuras sobre uma grande mancha escura. Mas as duas pequenas manchas escuras agem, têm um objectivo; a noite, essa — a grande mancha escura —, tudo indica que não; não tem objectivo.
Os traços, que no primeiro olhar pareciam gerais, tornavam‑se, a cada segundo que passava, indiscutíveis. Haviam encontrado o que procuravam. Era o rosto de Lenine, sem dúvida.
É ele. É ele.
A fealdade ali não entrava, nem o grotesco, nem o nojo, nem a violência, nem o disforme, nem a deficiência: um arquivo de imagens sobre a beleza, fotografias que apanhavam o calmo, o tranquilo, aquilo que no mundo das coisas e dos homens parecia ter uma duração cega, uma duração interminável: uma beleza sem ameaça...
Quando ninguém está a ver, o amor revela a sua barbatana escondida. Alguém que dá festas a um gato nas escadas do prédio, no espelho do elevador alguém que limpa as manchas do vidro. Na estrada, alguém que deixa passar o outro sem reclamar. Alguém que salva o amigo de uma piada sem graça que o faz corar. Atirar gelo para a água dos cães numa tarde de Verão. Cantar a música horrível, preferida da namorada, com uma vontade quase universal. Não meter pimenta no bife. Não ligar o telefone. Não perguntar.
Ainda que os moradores não fossem "artistas ", o bairro, no seu conjunto, era sem dúvida artístico...Tal era a maneira, a única maneira, de conceber o bairro como um todo. Teria de ser considerado não tanto uma oficina de artistas, mas antes como uma frágil, se bem que consumada obra de arte. Aquele que entrasse na atmosfera da sua sociedade sentir-se-ia como se tivesse entrado numa peça de teatro.
Dve ser bom viver neste bairro...
Quando Symesaiu para a rua iluminada pelas estrelas achou-a momentaneamente deserta. Apercebeu-se então( de modo estranho) de que o silêncio que o rodeava não era morto, mas vivo.
Não vê que demos xeque-mate um ao outro? -Eu não posso dizer à polícia que você é anarquista.Você não pode dizer aos anarquistas que eu sou polícia.(...) Em resumo,é um duelo intelectual dos dois a sós: a minha cabeça contra a sua.
O português é capaz de tudo, logo que não lhe exijam que o seja. Somos um grande povo de heróis adiados. Partimos a cara a todos os ausentes, conquistamos de graça todas as mulheres sonhadas, e acordamos alegres, de manhã tarde, com a recordação colorida dos grandes feitos por cumprir. Cada um de nós tem um Quinto Império no bairro, e um auto-D.Sebastião em série fotográfica do Grandela. No meio disto (tudo), a República não acaba. Somos hoje um pingo de tinta seca da mão que escreveu Império da esquerda à direita da geografia. É difícil distinguir se o nosso passado é que é o nosso futuro, ou se o nosso futuro é que é o nosso passado. Cantamos o fado a sério no intervalo indefinido. O lirismo, diz-se, é a qualidade máxima da raça. Cada vez cantamos mais um fado. O Atlântico continua no seu lugar, até simbolicamente. E há sempre Império desde que haja Imperador.
Como, nos dias de grandes acontecimentos no centro da cidade, Nos bairros quase-excêntricos as conversas em silêncio às portas A expectativa em grupos...Ninguém sabe nada. Leve rastro de brisa Coisa nenhuma que é real E que, com um afago ou um sopro Toca o que há até que seja...Magnificência da naturalidade. Coração. Que Áricas inéditas em cada desejo! Que melhores coisas que tudo lá longe! Meu cotovelo toca no da vizinha do eléctrico Com uma involuntariedade fruste Curto-circuito da proximidade... Ideias ao acaso Como um balde que se entornou — Fito-o é um balde entornado... Jaz: jazo..
Bairro da Liberdade, gente de casebres, pegado com Monsanto, vizinhos do Aqueduto, nem de graça se iria para lá. E, no entanto, a encosta da serra começou a povoar-se. Vinham famílias sacudidas pela miséria, abrigar-se comodamente, por cem mil réis de renda. Três cubículos de madeira velha, telhas em cima de vigas que o cair das chuvadas logo apodrecia, portas estreitas onde o gemido, o pranto ou a alegria eram vizinhos da rua - e tudo isto rodeado de um chão barrento, onde os homens, as mulheres e as crianças deixavam marcados os trilhos do seu caminho. Na cidade, no centro, ninguém lhes dava guarida. Gente pobre, carregada de filhos, enxovalhada na roupa que se traz todos os dias, morar em casas, era uma ousadia dos diabos...
Romance de natália correia, escrito em 1946, que tento ler há um tempo, mas sem sucesso...
Sinopse: Anoiteceu no Bairro revela, além do mais, a cuidada aprendizagem de uma tradição romanesca onde se cruzam as vozes de Dostoievski, aqui invocado, e os caminhos do romance naturalista urbano: nos tipos, na construção dos ambientes e dos retratos, nas situações. E vemos já a futura dramaturga a ensaiar aqui, com sucesso, a arte da representação teatral e da composição do diálogo.
Opinião de um leitor: Manifesto feminista e social: se, por um lado, vemos a completa estupidificação de algumas mulheres, por outro vemos a vontade de luta e de independência por parte de outras. E, numa fase mais avançada, e numa dimensão mais profunda, a luta de um povo, o português, que vive de costas para o futuro e virado para as histórias do passado que já se contam sem convicção. É preciso ter em conta que este romance foi publicado ainda em plena ditadura salazarista, o que certamente tem o seu peso. Mas, há uma enorme ousadia, um atrevimento revolucionário nestas linhas. Há o retrato realista dos podres de pessoas que vivem de aparências, há tudo o que normalmente se quer escamotear. Natália Correia tem aqui um texto que já demonstra muitas das características que haviam de se fazer notar ao longo de toda a sua carreira: na poesia, que incia no ano seguinte com "Rio de Nuvens", no romance, que retoma nos anos oitenta, e no teatro. Este é um romance sem poder suficente para competir com "A Madona" ou sem carisma suficiente para competir com "As Núpcias", mas é, certamente, o mais realista de todos, seguindo tanto uma linha ideológica mais queiroziana, mas tambem um pensamento ligado a Nietsze, e uma estrutura narrativa que remete a Dostoyevski ou Tolstoi.
Quase nada...
Epígrafe: Não posso apresentar a realidade dos factos, mas apenas a sua sombra...
Uma opinião: Jean Daragane, um sexagenário de hábitos reclusos e com memória nula, tem uma vida pacata, isolada e misantrópica, mas conserva a sua estabilidade existencial. Um dia, começa gradualmente a mergulhar num turbilhão de memórias e histórias do passado, que pareciam expulsas da sua vida, passando a ser uma sombra... A sombra permanece e parece ser a base da existência, não importa se estamos a falar da lembrança ou do esquecimento. Lembrar de um nome, de um encontro, de um tempo ou até de coisas da infância, no pensamento de Modiano, não tem a capacidade de alterar nada no presente, afinal o presente é também “quase nada” como marca temporal para poder ser mudado.
A impressão que se tem é que toda a obra gira em torno de um anacronismo dispendioso, ou seja, a confusão de tempos não tem como valia uma espécie de apresentação fragmentária do pensamento, dos sujeitos ou da materialidade do texto, mas sim uma incapacidade de organização do tempo do pensamento para que, este mesmo tempo, seja capaz de propor qualquer mudança nas coisas do mundo. Eis então porque a diferença entre “ser nada” e “quase nada” desloca esta ideia em apenas um ponto: o nada é uma estabilidade – do nada viemos e para o nada iremos, enquanto que o “quase nada” requer uma consciência processual da vida. Ser quase nada é montar uma zona de instabilidade constante. O que, no caso de Daragane, significa enfrentar um passado que, por mais que se busque, continuará nebuloso.
Por isso que o título Para Você não se Perder no Bairro é, de certa forma, irónico. Não há onde se perder, não há o que perder. A perda é dada de antemão e não pode ser recuperada. Trata-se de um livro complicado de ler, na medida em que os géneros não se definem. E, como curiosidade, a cada minuto após a leitura, parece que ele fica melhor.
No bairro do amor a vida é um carrossel
Onde há sempre lugar para mais alguém
O bairro do amor foi feito a lápis de cor
Por gente que sofreu por não ter ninguém...
O senhor Valéry dormia sempre de pé para não adormecer.
O primeiro homem a pedir permissão para dormir ali na casa de Walser naquela noite foi um dos eletricistas. Depois muitos outros repetiram o pedido.
De súbito uma borboleta. Calvino fecha as janela: não quer que ela saia.
O senhor Swendenborg não faltava a uma única palestra do senhor Eliot.
Era um livraria que vendia um único livro. Havia 100 mil exemplares numerados do mesmo livro. Como em qualquer outra livraria os compradores demoravam-se , hesitando no número a escolher.
Ia começar a entrevista. O senhor Breton sentou-se, puxou do cigarro, fumou um pouco. Ligou depois o gravador.
Fechou a porta por dentro. Depois sempre poderia dizer que estava numa reunião muito importante.
Como a realidade era para o senhor Juarroz uma matéria aborrecida ele só deixava de pensar quando era mesmo imprescindível.
Num parêntesis: é interessante pensar que o verbo sentir se refere à acção que fica depois de nos roubarem todas as outras acções...Sentir, poderíamos dizer, é a última hipótese do corpo.
Dez horas da manhã; os transparentes Matizam uma casa apalaçada; Pelos jardins estancam-se as nascentes, E fere a vista, com brancuras quentes, A larga rua macadamizada.
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