Não é neccessário vivermos ao lado de alguém para nos sentirmos ligados a esse alguém mais do que a qualquer outra pessoa...

quinta-feira, 6 de agosto de 2015

Gramáticas e arte...

O escritor foi sempre um funâmbulo cego e o leitor é apenas um espectador de passagem.

Obedeça à gramática quem não sabe pensar o que sente.

O próprio do prazer é não poder ser dito.

Nada preenche o vazio essencial que a escrita revela.

A escrita é uma escribatura. Encerra quem a pratica numa prisão transparente.

A palavra falada é um caso, por assim dizer, democrático. Ao falar, temos que obedecer à lei do maior número, sob pena de ou não sermos compreendidos ou sermos inutilmente ridículos. Se a maioria pronuncia mal uma palavra, temos que a pronunciar mal; diremos anecdóta, embora saibamos que se deve dizer anécdota. Se a maioria usa de uma construção gramatical errada, da mesma teremos que usar: diremos «has de tu compreender», embora saibamos que «has tu de compreender» é a fórmula verdadeira. Se a maioria caiu em usar estrangeirismos ou outras irregularidades verbais, assim temos que fazer: «match de football» diremos, e não «partida de bolapé». Os termos ou expressões que na linguagem escrita são justos, e até obrigatórios, tornam-se em estupidez e pedantaria, se d'eles fazemos uso no trato verbal. Tornam-se até em má-criação, pois o preceito fundamental da civilidade é que nos conformemos o mais possível com as maneiras, os hábitos, e a educação da pessoa com quem falamos, ainda que nisso faltemos às boas-maneiras ou a etiqueta, que são a cultura.

Suponhamos que vejo diante de nós uma rapariga de modos masculinos. Um ente humano vulgar dirá dela, «Aquela rapariga parece um rapaz». Um outro ente humano vulgar, já mais próximo da consciência de que falar é dizer, dirá dela, «Aquela rapariga é um rapaz». Outro ainda, realmente consciente dos deveres da expressão, mas mais animado do afecto pela concisão, que é a luxúria do pensamento, dirá dela, «Aquele rapaz». Eu direi, «Aquela rapaz», violando a mais elementar das regras da gramática, que manda que haja concordância de género, como de número, entre a voz substantiva e a adjectiva. E terei dito bem; terei falado em absoluto, fotograficamente, fora da chateza, da norma, e da quotidianidade. Não terei falado: terei dito.
A gramática, definindo o uso, faz divisões legítimas e falsas. Divide, por exemplo, os verbos em transitivos e intransitivos; porém, o homem de saber dizer tem muitas vezes que converter um verbo transitivo em intransitivo para fotografar o que sente, e não para, como o comum dos animais homens, o ver às escuras. Se quiser dizer que existo, direi «Sou». Se quiser dizer que existo como alma separada, direi «Sou eu». Mas se quiser dizer que existo como entidade que a si mesma se dirige e forma, que exerce junto de si mesma a função divina de se criar, como hei-de empregar o verbo «ser» senão convertendo-o subitamente em transitivo? E então, triunfalmente, antigramaticalmente supremo, direi «Sou-me». Terei dito uma filosofia em duas palavras pequenas. Que preferível não é isto a não dizer nada em quarenta frases? Que mais se pode exigir da filosofia e da dicção?
Obedeça à gramática quem não sabe pensar o que sente. Sirva-se dela quem sabe mandar nas suas expressões. Conta-se de Sigismundo, Rei de Roma, que tendo, num discurso público, cometido um erro de gramática, respondeu a quem dele lhe falou, «Sou Rei de Roma, e acima da gramática». E a história narra que ficou sendo conhecido nela como Sigismundo «super-grammaticam». Maravilhoso símbolo! Cada homem que sabe dizer o que diz é, em seu modo, Rei de Roma. O título não é mau, e a alma é ser-se.



Já não quero dicionários consultados em vão. Quero só a palavra que nunca estará neles nem se pode inventar.

Não se prende amor com pregos ao coração.Daí a fragilidade.

Bloom fingiu-se espontâneo.Fingiu duas vezes ser espontâneo,depois três,mas não conseguiu.
Não estás a ser espontâneo, disse Maria.
Ora vê - e Bloom repetiu a sua imitação falsa do espontâneo.
O que eu quero - disse Maria - é uma imitação verdadeira do espontâneo.


Pois não seria Então mais fácil que o Governo Dissolvesse o Povo e Elegesse outro?

Um homem tinha um bilhete para viagem para a própria alma,mas desconhecia o local de embarque.

O homem velho vestido de preto chora,na mão dois quilos de peras. Pego nelas, para o aliviar, mas não pego no resto porque não é possível: de que lado se segura na tristeza? A cinco centímetros de um homem que sobre tu nada podes sofrer,e o mundo dos homens é isto, o resto é estratégia e contratos de sobrevivência.


Escrever é ser habitado por um amontoado de fantasias, às vezes preguiçosas como lentos devaneios de uma sesta estival, às vezes agitadas e febris como o delírio de um louco. A cabeça do romancista caminha por si só; é possuída por uma espécie de compulsão efabuladora e isso às vezes é um dom e outras vezes, um castigo.

E é nestes minuciosos actos de esconder que a linguagem se torna ferramenta mais fácil de manipular: posso fazer tudo com a minha linguagem, mas não com o meu corpo. O que a minha linguagem esconde , di-lo o meu corpo... O meu corpo é uma criança teimosa, a minha linguagem - um adulto civilizado.

Calar e falar são formas de intervir no futuro.

Na Europa há vento, neve, luz, água, incêndios,/ e ainda gramática, sintaxe e bibliotecas, extensas./ Paralela à Natureza existe, pois, a linguagem./ E em tão erudito continente existem mais institutos/ públicos preocupados com...metáforas / do que preocupados com ciclones.

A vida... é ilegível. Acontece e desaparece. Não há inteligência que a descodifique: vem em linguagem-nada, surge no corpo como surge o dia, e como se dia e vida individual fossem materiais paralelos. A vida não surge em prosa nem em poesia — e a existência não fala inglês, apesar de tudo. A natureza dos acontecimentos resiste às invasões matreiras da publicidade e dos filmes. Já não é mau.



Não existe nada mais estranho e espinhoso do que a relação entre pessoas que só se conhecem de vista - que diariamente, mesmo hora a hora, se encontram, se observam e que têm assim de manter, sem cumprimentos e sem palavras, a aparência de desconhecimento indiferente, devido ao rigor dos costumes ou a caprichos pessoais. Entre elas existe inquietação e curiosidade exacerbada, a histeria da necessidade insatisfeita, anormalmente recalcada, de conhecimento e comunicação e sobretudo também uma forma de consideração tensa. Pois o ser humano ama e respeita o outro ser humano enquanto não está em posição de o julgar e o desejo é produto de um conhecimento insuficiente.

Ele era mais bonito do que as palavras podiam exprimir e Aschenbach sentiu dolorosamente, como tantas vezes antes, que a linguagem pode apenas louvar, mas não reproduzir, a beleza que toca os sentidos.

Nunca sentira tão docemente o desejo da palavra, nunca entendera tão bem a existência de Eros na palavra como naqueles deliciosos momentos perigosos em que estava sentado à mesa sob o toldo, olhando para o ídolo, ouvindo a música da sua voz e elaborando o seu pequeno ensaio à imagem da beleza de Tadzio.

Nada podeis contra o amor. Contra a cor da folhagem, contra a carícia da espuma, contra a luz, nada podeis.//Podeis dar-nos a morte, a mais vil, isso podeis - e é tão pouco.

Grandes mistérios habitam O limiar do meu ser, O limiar onde hesitam Grandes pássaros que fitam Meu transpor tardo de os ver.

A arte é bela porque é inútil. A vida é feia porque é toda fins, propósitos e intenções...

A arte é a notação nítida de uma impressão errada (falsa). (À notação nítida de uma impressão exacta chama-se ciência). O processo artístico é relatar essa impressão falsa, de modo que pareça absolutamente natural e verdadeira. Quando Ésquilo fala no “riso inúmero do mar”, diz uma coisa pavorosa de todos os pontos de vista, incluindo o quase-gramatical, que se indigna com a justaposição das palavras “riso inúmero”.

A sublimidade de desperdiçar uma vida que podia ser útil, de nunca executar uma obra que por força seria bela, de abandonar a meio caminho a estrada certa da vitória!Ah, meu amor, a glória das obras que se perderam e nunca se acharão, dos tratados que são títulos apenas hoje, das bibliotecas que arderam, das estátuas que foram partidas. Que santificados do Absurdo os artistas que queimaram uma obra muito bela, daqueles que, podendo fazer uma obra bela, de propósito a fizeram imperfeita, daqueles poetas máximos do Silêncio que, reconhecendo que poderiam fazer obra de todo perfeita, preferiram ousá-la de nunca a fazer. (Se fora imperfeita, vá.)Quão mais bela a Gioconda desde que a não pudéssemos ver! E se quem a roubasse a queimasse, quão artista seria, que maior artista que aquele que a pintou!Por que é bela a arte? Porque é inútil. Por que é feia a vida? Porque é toda fins e propósitos e intenções. Todos os seus caminhos são para ir de um ponto para o outro. Quem nos dera o caminho feito de um lugar donde ninguém parte para um lugar para onde ninguém vai! Quem dera a sua vida a construir uma estrada começada no meio de um campo e indo ter ao meio de um outro; que, prolongada, seria útil, mas que ficava, sublimemente, só o meio de uma estrada. A beleza das ruínas? O não servirem já para nada. A doçura do passado? O recordá-lo, porque recordá-lo é torná-lo presente, e ele nem o é, nem o pode ser — o absurdo, meu amor, o absurdo. E eu que digo isto — por que escrevo eu este livro? Porque o reconheço imperfeito. Calado seria a perfeição; escrito, imperfeiçoa-se; por isso o escrevo. E, sobretudo, porque defendo a inutilidade, o absurdo — eu escrevo este livro para mentir a mim próprio, para trair a minha própria teoria. E a suprema glória disto tudo, meu amor, é pensar que talvez isto não seja verdade, nem eu o creia verdadeiro.

A sensualidade com a sua animalidade directa deve ser excluída da arte. Essas coisas não são arte: são vida. A arte deve dar o material, mas tornado imaterial. O verso de Cesário. Isso é fotográfico, não pictural. E a fotografia não é arte porque reproduz exactamente a matéria. Só é arte pela escolha (do assunto, da posição, etc.) porque a arte é escolha.
Um assunto sexual deve ser tratado em arte de modo que não suscite desejo. Para suscitar desejos, serve melhor uma fotografia pornográfica.

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