Ano de 2017: além-tédio...
Para os comemoracionistas e os anti...Uma parte do pouco que tenho foi dado por Abril /Mesmo assim dou-vos Abril... ainda que com alma em-luta-dada / É certo que muitos tiram muito de muitos / Também certo que cada um só pode dar o que tem O meu único voto e viva para ABRIL
Não sou anti, mas também não sou comemoracionista... Sou, talvez, qualquer coisa de intermédio: o 25 de abril, em termos pessoais, nada me deu, mas também nada me tirou... E eu não sou animal social... Sempre tive uma grande capacidade, nem sempre entendida, de ser marginal, no sentido de conseguir viver à margem de realidade. Não sei como teria sido a minha vida de adulta, pessoal e profissionalmente, se não tivesse existido o 25 de abril, mas julgo que conseguiria ser tão ou tão pouco feliz como fui. Em termos materiais, sempre tive o que quero, porque só quero aquilo que posso ter...Em termos interiores, vivi, como sempre viveria: além -tédio...
Gostei deste abril que nos permitiu esta breve conversa…
Nada me expira já, nada me vive -
Nem a tristeza nem as horas belas.
De as não ter e de nunca vir a tê-las,
Fartam-me até as coisas que não tive.
Como eu quisera, emfim de alma esquecida,
Dormir em paz num leito de hospital...
Cansei dentro de mim, cansei a vida
De tanto a divagar em luz irreal.
Outrora imaginei escalar os céus
À força de ambição e nostalgia,
E doente-de-Novo, fui-me Deus
No grande rastro fulvo que me ardia.
Parti. Mas logo regressei à dor,
Pois tudo me ruiu... Tudo era igual:
A quimera, cingida, era real,
A propria maravilha tinha cor!
Ecoando-me em silêncio, a noite escura
Baixou-me assim na queda sem remédio;
Eu próprio me traguei na profundura,
Me sequei todo, endureci de tédio.
E só me resta hoje uma alegria:
É que, de tão iguais e tão vazios,
Os instantes me esvoam dia a dia
Cada vez mais velozes, mais esguios...
Liberdade é olhar a linha fria do horizonte e ver o invísivel...
Ano de 2016: e depois do adeus...
Certa manhã, após tantos desesperos, uma irreprimível vontade de viver virá anunciar-nos que tudo acabou e que o sofrimento não possui mais sentido do que a felicidade.
E depois do amor E depois de nós O dizer adeus O ficarmos sós
É estranha a sensação de vazio, de um vazio enorme, que me invade sempre no dia 25 de abril.. .Observo, absolutamente indiferente, sem emoção verdadeira.É assim desde 1974...
Não tenho sentimento nenhum politico ou social. Tenho, porém, num sentido, um alto sentimento patriotico. Minha patria é a lingua portuguesa. Nada me pesaria que invadissem ou tomassem Portugal, desde que não me incommodassem pessoalmente, Mas odeio, com odio verdadeiro, com o unico odio que sinto, não quem escreve mal portuguez, não quem não sabe syntaxe, não quem escreve em orthographia simplificada, mas a pagina mal escripta, como pessoa própria, a syntaxe errada, como gente em que se bata, a orthographia sem ípsilon, como escarro directo que me enoja independentemente de quem o cuspisse...
Foi a partir daí que desenvolvi, mais intensamente, uma talvez perniciosa identificação com um ser de papel que legitimava a minha forma de ser, o único que me compreendia: ricardo reis / fernando pessoa / bernardo soares.
Camus, mais propriamente o cínico jean-batiste-clamence, interpretado (deturpado?) à minha maneira também se tornou um aliado:
Às vezes, imagino o que dirão de nós os historiadores do futuro. Duas ideias lhes bastarão para definir o homem moderno: fornicava e lia jornais. Depois dessa forte definição, o assunto ficará, se assim me posso expressar, esgotado.
Ah! sob as sombras que sem querer nos amam,
Com um púcaro de vinho
Ao lado, e atentos só à inútil faina
Do jogo do xadrez,
Mesmo que o jogo seja apenas sonho
E não haja parceiro,
Imitemos os persas desta história,
E, enquanto lá por fora,
Ou perto ou longe, a guerra e a pátria e a vida
Chamam por nós, deixemos
Que em vão nos chamem, cada um de nós
Sob as sombras amigas
Sonhando, ele os parceiros, e o xadrez
A sua indiferença.
Cá entre nós, a servidão, de preferência sorridente, é pois inevitável. Mas não o devemos reconhecer.
Ano de 2015: letra L...
Não consigo falar sobre o 25 de abril, é um tema em que me sinto "estrangeira", clandestina, neste país de emoções e de convicções em que a outra gente se movimenta...Hoje é dia de hinos e loas à liberdade. Fico-me pela terminação...
L de love...
L de labirinto, loucura...
L de livro,leitura,liberdade...
L de légua...
L de lei,legalidade...
I give her all my love That's all I do And if you saw my love You'd love her too I love her.
And then while I'm away I'll write home everyday And I'll send all my loving to you.
Love, love me do You know I love you I´ll always be true So please, love me do Oh, love me do.
I love you, I love you, I love you That's all I want to say.
Passo tempos, passo silêncios, mundos sem forma passam por mim... Posso dormir, porque é manhã em mim. E sinto a minha boca sorrir, deslocando levemente as pregas moles da fronha que me prende o rosto. Posso deixar-me a vida, posso dormir, posso ignorar-me... E, através do sono novo que me escurece, ou lembro o galo que cantou, ou é ele, deveras, que canta segunda vez. Com que luxúria (...) e transcendente eu, às vezes, passeando de noite nas ruas da cidade, e fitando, de dentro da alma, as linhas dos edifícios, as diferenças das construções, as minuciosidades da sua arquitectura, a luz em algumas janelas, os vasos com plantas jazendo enjauladas nas sacadas — contemplando tudo isto, dizia, com que gozo de intuição que subia aos lábios da consciência este grito de redenção: mas nada disto é real!Do outro lado de mim, lá para trás de onde jazo, o silêncio da casa toca no infinito. Oiço cair o tempo, gota a gota, e nenhuma gota que cai se ouve cair. Oprime-me fisicamente o coração físico a memória, reduzida a nada, de tudo quanto foi ou fui. Sinto a cabeça materialmente colocada na almofada em que a tenho fazendo vale. A pele da fronha tem com a minha pele um contacto de gente na sombra. A própria orelha, sobre a qual me encosto, grava-se-me matematicamente contra o cérebro. Pestanejo de cansaço, e as minhas pestanas fazem um som pequeníssimo, inaudível, na brancura sensível da almofada erguida. Respiro, suspirando, e a minha respiração acontece — não é minha. Sofro sem sentir nem pensar. O relógio da casa, lugar certo lá ao fundo das coisas, soa a meia hora seca e nula. Tudo é tanto, tudo é tão fundo, tudo é tão negro e tão frio!
O que é um labirinto? Passagens ou divisões, dispostas tão confusamente que com dificuldade se acha a saída / Parque ou jardim cortado por caminhos tão entrelaçados que facilmente se perde a pessoa que nele penetrou/ Ouvido interno / Qualquer complicação que perturba o espírito.
Em mim te perco, aparição nocturna,
Neste bosque de enganos, nesta ausência,
Na cinza nevoenta da distância,
No longo corredor de portas falsas.
Perdi-me dentro de mim
Porque eu era labirinto,
E hoje, quando me sinto,
É com saudades de mim
Loucura? — Mas afinal o que vem a ser a loucura?… Um enigma… Por isso mesmo é que às pessoas enigmáticas, incompreensíveis, se dá o nome de loucos… Que a loucura, no fundo, é como tantas outras, uma questão de maioria. A vida é uma convenção: isto é vermelho, aquilo é branco, unicamente porque se determinou chamar à cor disto vermelho e à cor daquilo branco. A maior parte dos homens adoptou um sistema determinado de convenções: é a gente de juízo… Pelo contrário, um número reduzido de indivíduos vê os objectos com outros olhos, chama-lhes outros nomes, pensa de maneira diferente, encara a vida de modo diverso. Como estão em minoria… são doidos… Se um dia porém a sorte favorecesse os loucos, se o seu número fosse superior e o género da sua loucura idêntico, eles é que passariam a ser os ajuizados: «Na terra dos cegos, quem tem um olho é rei», diz o adágio: na terra dos doidos, quem tem juízo, é doido, concluo eu. O meu amigo não pensava como toda a gente… Eu não o compreendia: chamava-lhe doido… Eis tudo.
Nenhum homem considera livre a sua condição se ela não for ao mesmo tempo justa, nem justa se não for livre. Precisamente, não pode conceber-se a liberdade sem o poder de clarificar o justo e o injusto, de reivindicar todo o ser em nome de uma parcela de ser que se recusa a extinguir-se. Finalmente, tem de haver uma justiça, embora bem diferente, para se restaurar a liberdade, único valor imperecível da história...
I'm too tired to drive anyway, anyway right now. Do you care if I stayed?
Na realidade, todo leitor é, quando lê, o leitor de si mesmo. A obra não passa de uma espécie de instrumento ótico oferecido ao leitor a fim de lhe ser possível discernir o que, sem ela, não teria certamente visto em si mesmo.
Ler é uma doença? Ler é a cura? Ler é tudo? Ler é nada? Uma derrota. Só mais uma...Lê e relê a lição, mas não aprende. Talvez, agora... Quem sabe? (Tem de confessar que chegou a idealizar um harry com quem fugisse para uma ilha deserta, mas nunca "calhou"...Continuou sempre à procura...) A ansiedade transmigrou : um sentimento de frustração iniludível, uma dorida sensação de inutilidade...Ler e reler este retrato de um homem que, estranhamente, amo...Plegau sensin releg kai releg du, andho stres shanam.
A amizade, a amizade que diz respeito aos indivíduos, é sem dúvida uma coisa frívola, e a leitura é uma amizade. Mas pelo menos é uma amizade sincera, e o facto de ela se dirigir a um morto, a uma pessoa ausente, confere-lhe algo de desinteressado, de quase tocante.(...) Além disso, — desde as primeiras relações de simpatia, de admiração, de reconhecimento, as primeiras palavras que escrevemos, tecem à nossa volta os primeiros fios de uma teia de hábitos, de uma verdadeira maneira de ser, da qual já não conseguimos desembaraçar-nos nas amizades seguintes; sem contar que, durante esse tempo, as palavras excessivas que pronunciámos ficam como letras de câmbio que temos que pagar, ou que pagaremos mais caro ainda toda a nossa vida com os remorsos de as termos deixado protestar. Na leitura, a amizade é subitamente reduzida à sua primeira pureza.
Com os livros, não há amabilidade. Estes amigos, se passarmos o serão com eles, é porque realmente temos vontade disso. A eles, pelo menos, muitas vezes só os deixamos a contragosto. E quando os deixamos, não temos nenhum desse pensamentos que estragam a amizade: — Que terão eles pensado de nós? — Não tivemos falta de tacto? — Teremos agradado? — nem o medo de sermos esquecidos por um deles. Todas estas agitações da amizade expiram no limiar dessa amizade pura e calma que é a leitura. Também não há deferência; só rimos com o que diz Molière na exacta medida em que lhe achamos graça; quando ele nos aborrece, não temos medo de mostrar um ar aborrecido, e quando estamos decididamente fartos de estar com ele, pômo-lo no seu lugar tão bruscamente como se ele não tivesse nem génio nem celebridade. A atmosfera desta pura amizade é o silêncio, mais do que a palavra. Porque nós falamos para os outros, mas calamo-nos para connosco mesmos. É por isso que o silêncio não traz consigo, como a palavra, a marca dos nossos defeitos, das nossas caretas. Ele é puro, é verdadeiramente uma atmosfera. Entre o pensamento do autor e o nosso não interpõe elementos irredutíveis refractários ao pensamento, os nossos egoísmos diferentes. A própria linguagem do livro é pura (se o livro for digno desta palavra), tornada transparente pelo pensamento do autor que dele retirou tudo quanto não fosse ele próprio até o transformar na sua imagem fiel; cada uma das frases, no fundo, semelhante às outras, dado que todas são ditas através da inflexão única de uma personalidade; daí uma espécie de continuidade, que as relações da vida e o que estas associam ao pensamento como elementos que lhe são estranhos excluem e que permite muito rapidamente seguir o próprio fio do pensamento do autor, os traços da sua fisionomia que se reflectem neste espelho tranquilo. Sabemos apreciar os traços de cada um deles sem termos necessidade de que sejam admiráveis, pois é um grande prazer para o espírito distinguir essas pinturas profundas e amar com uma amizade sem egoísmo, sem frases, como dentro de nós mesmos.
Enquanto a leitura for para nós a iniciadora cujas chaves mágicas nos abrem, no fundo de nós próprios, a porta das habitações onde não teríamos conseguido penetrar, o papel dela na nossa vida será salutar. É perigoso ao invés quando, em vez de nos despertar para a vida pessoal do espírito, a leitura tende a substituí-la, quando a verdade deixa de nos surgir como um ideal que só podemos realizar através do progresso íntimo do nosso pensamento e do esforço do nosso coração, mas como uma coisa material, depositada entre as folhas dos livros, como um mel preparado pelos outros e que só temos de nos dar ao trabalho de alcançar nas prateleiras das estantes e de saborear em seguida passivamente num perfeito repouso de corpo e de espírito.
Se o gosto pelos livros aumenta com a inteligência, os perigos, como vimos, diminuem com ela. Um espírito original sabe subordinar a leitura à atividade pessoal. Ela é para ele apenas a mais nobre das distrações, sobretudo a mais enobrecedora, pois, só a leitura e o saber conferem «as boas maneiras» do espírito. O poder da nossa sensibilidade e da nossa inteligência, só o podemos desenvolver dentro de nós próprios, nas profundezas da nossa vida espiritual. Mas é nesse contacto com os outros espíritos que a leitura é, que se faz a educação das "maneiras" do espírito. Os letrados permanecem, apesar de tudo, como as pessoas notáveis da inteligência, e ignorar um determinado livro, uma determinada particularidade da ciência literária, será sempre, mesmo num homem de génio, uma marca de grosseria intelectual. A distinção e a nobreza consistem na ordem do pensamento também, numa espécie de franco-maçonaria de costumes, e numa herança de tradições…
Não há talvez dias da nossa infância que tenhamos tão intensamente vivido como aqueles que julgámos passar sem tê-los vivido, aqueles que passámos com um livro preferido. Tudo quanto, ao que parecia, os enchia para os outros, e que afastávamos como um obstáculo vulgar a um prazer divino: a brincadeira para a qual um amigo nos vinha buscar na passagem mais interessante, a abelha ou o raio de sol incomodativos que nos obrigavam a erguer os olhos da página ou a mudar de lugar, as provisões para o lanche que nos obrigavam a levar e que deixávamos ao nosso lado no banco, sem lhes tocar, enquanto, sobre a nossa cabeça, o sol diminuía de intensidade no céu azul, o jantar que motivara o regresso a casa e durante o qual só pensávamos em nos levantarmos da mesa para acabar, imediatamente a seguir, o capítulo interrompido, tudo isto, que a leitura nos devia ter impedido de perceber como algo mais do que a falta de oportunidade, ela pelo contrário gravava em nós uma recordação de tal modo doce (de tal modo mais preciosa no nosso entendimento atual do que o que líamos então com amor) que, se ainda hoje nos acontece folhear esses livros de outrora, é apenas como sendo os únicos calendários que guardámos dos dias passados, e com a esperança de ver reflectidas nas suas páginas as casas e os lagos que já não existem.
E por vezes em casa, na minha cama, muito depois do jantar, as últimas horas do serão abrigavam também a minha leitura, mas isso, apenas nos dias em que tinha chegado aos últimos capítulos de um livro, em que não faltava muito para chegar ao fim. Nessas alturas, arriscando-me a ser castigado se fosse descoberto e à insónia que, terminado o livro, se iria talvez prolongar durante toda a noite, assim que meus pais se deitavam eu voltava a acender a minha vela; (...) Então, era isto? este livro, não passava disto? Aqueles seres a quem havíamos dedicado mais atenção e ternura do que às pessoas da vida, nem sempre ousando confessar a que ponto os amávamos, mesmo quando os nossos pais nos encontravam a ler e pareciam sorrir da nossa emoção, fechando o livro, com uma indiferença simulada ou um aborrecimento fingido; esses seres por quem havíamos tremido e soluçado, não voltaríamos a vê-los nunca mais, não viríamos a saber mais nada deles.
Só gostava de viver numa cidade grande para ter acesso a livrarias a sério. Só livraria, não invejo a promiscuidade das fnacs e quejandas, em centros comerciais...
Gosto das livrarias que são simultaneamente ponto de encontro, em que se conversa sobre livros e leituras, com conhecidos e desconhecidos. São sempre interessantes os bibliófilos, sempre. Quando estive no rio de janeiro, ia a uma livraria na zona antiga, que me deliciava. Confesso que a auréola de que me rodeavam por ser "intelectual" europeia, licenciada em coimbra,também me agradava bastante. Gostavam de me ouvir falar sobre fernando pessoa e eça de queirós, os escritores portugueses que mais atraiam os outros frequentadores. Era uma sensação para o meu ego similar ao prazer físico que as tuas paLavras me provocavam... Como sou simpática, comprei uns livros de autores brasileiros que, por acaso, ainda não li...
Quer voltar ao Rio: não ao do samba, de copacabana e , muito menos, ao do cristo rei. Hei de voltar a este Rio...
Légua: a minha praia....
Mas a verdade é que não só nos países autocráticos como naqueles supostamente livres - como a Inglaterra, a América, a França e outros - as leis não foram feitas para atender à vontade da maioria, mas sim à vontade daqueles que detêm o poder.
A lei é a razão suprema da Natureza, que ordena o que se deve fazer e proíbe o contrário. Esta mesma razão, uma vez confirmada e desenvolvida pela mente humana, transforma -se em lei. Por isso, afirmam que a razão prática é uma lei cuja missão consiste em exigir as boas ações e vetar as más. (...) A lei é a força da natureza, é o espírito e a razão do homem dotado de sabedoria prática, é o critério do justo e do injusto. (...) Sem dúvida, para definir Direito, o nosso ponto de partida será a lei suprema que pertence a todos os séculos e já era vigente quando não havia lei escrita nem Estado constituído.
Se a justiça consiste na obediência às leis escritas e na conformação às instituições dos povos e, ainda, se (...) tudo deve ser medido pela regra da utilidade, então qualquer um que o julgue proveitoso tratará de desconhecer e de violar as leis.
Liberdade...
As mãos leves da Paulina, esgaravatando-lhe no pêlo, brandas e delicadas como carícias, sossegavam-no.Os olhos tristes e inteligentes da macaca pareciam dizer-lhe:-" A liberdade é assim. Só é bonita enquanto não a temos ou quando a perdemos. Como é jóia de custo e muito cobiçada, é preciso merecê-la e saber usá-la. Tu merece-la certamente porque és um amor de leão, mas ainda não sabes servir-te dela porque és uma criança. Quando cresceres e souberes, talvez deixes de a merecer. Com os homens acontece assim. Foi com eles que eu aprendi estas coisas da vida dos bichos.- Tenho sede! - murmurava o leão.- És livre. Podes procurar a tua água onde te apetecer. Mas tens de saber encontrá-la.- Tenho fome!- Soltou-se a corrente de ferro que te prendia - mas desapareceu o alguidar das sopas. Podes agora comer carne todos os dias. Simplesmente tens de saber conquistá-la.Tudo isto fazia uma enorme impressão no bestunto do Kurika. Nunca lhe tinha passado pela cabeça que não houvesse um alguidar com sopas e uma selha com água onde quer que estivesse. Também ele achava o mundo mal organizado.Deixou cair, desanimadamente, o focinho sobre as patas:- Tenho saudades do Janota!... O Conceição, afinal, não era má pessoa!... Ontem por esta hora estávamos todos juntos.Eles estão juntos em casa, como nós estamos juntos aqui. Mas eles são prisioneiros e nós somos livres.Quando nós soubermos ser livres como eles sabem ser prisioneiros... "
Ano de 1974: nós...
Acordei. Liguei o rádio e ouço o hino.Desliguei ,imediatamente, " Que parvoíce, o hino nacional nos discos pedidos." Como não cheguei a ouvir o " Aqui movimento das forças armadas", não me consciencializo do que se passa. Fui para o bar das letras, " houve uma revolução, não sabemos se foi de esquerda ou dos ultras do kaúlza…" "Há aulas ou não? Estou tapada por faltas". Fui aos direitos, não, não haveria aulas, desci até à praça, sozinha… Sozinha fiquei até hoje, no que diz respeito a este assunto. Senti-me olhada como um ser de outro planeta: a minha única preocupação, egoísta, mesquinha, eram as faltas...Não me libertaria deste estigma: fui uma espécie de estrangeiro condenado por não ter chorado no funeral da mãe...No meu caso, a condenação resultou de não ter dado vivas à revolução...
Ninguém tinha tempo para querer perceber quem eu era, como era, o que fazia ali, para além de não querer chumbar por faltas. Também por que motivo o fariam? Era considerada uma snobe, não dizia palavrões, odiava as praxes (antes de esse ódio ser considerado de esquerda), era inteligente, triunfei, pelas notas, naquele mundo de homens atrasados mentais (como a história o veio a provar), desprezava a demagogia popularucha em que eles se atolavam, era bonita e repelia-os quase com repulsa, vivia na minha cidadela ,com meia dúzia de pessoas que mereceram lá entrar...
Nunca consegui, não consigo nem nunca conseguirei comunicar o que se passa dentro de mim. Racionalmente, acredito e reconheço as dinâmicas sociais, como qualquer pessoa normal, mas é como se fosse um outro eu...O meu eu autêntico vive sem 25 de dezembro, sem 25 de abril, sem todos os 25 da história coletiva…
Nesse tempo, jogava xadrez, mal, sem inspiração (damas e poker eram a minha especialidade), mas jogava. Fui para casa sozinha, sentei-me em frente ao tabuleiro e ali fiquei, a mexer nas peças, a ouvir as notícias de um país que, por acaso, era o meu. Reconheci o salgueiro maia, "o quê, o maia de santarém, do são martinho na azinhaga, com quem dancei no baile de gala, era o herói do momento?". Telefonemas, emocionados, "viste o maia?", " vi e depois?".
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