O cansaço de todas as ilusões e de tudo o que há nas ilusões — a perda delas, a inutilidade de as ter, o antecansaço de ter que as ter para perdê-las, a mágoa de as ter tido, a vergonha intelectual de as ter tido sabendo que teriam tal fim. A consciência da inconsciência da vida é o mais antigo imposto à inteligência. Há inteligências inconscientes, brilhos do espírito, correntes do entendimento, mistérios e filosofias que têm o mesmo automatismo que os reflexos corpóreos, que a gestão que o fígado e os rins fazem de suas secreções.
Aceitar ser um mero reflexo é negar tudo o que se é; é abdicar de tudo o que se acreditava ser... Um braço que se estende ocupa espaço e torna-se, assim, uma escultura metafísica. Nunca pude deixar de dar a este facto insignificante uma importância alada sobre o quotidiano.
It's a reflector It's just a reflector Just a reflector But I see you on the other side It's just a reflector But I see you on the other side We all got things to hide It's just a reflector But I see you on the other side...
Quem me dera ser uma criança pondo barcos de papel num tanque da quinta, com um docel rústico de entrelaçamentos de parreira pondo xadrezes de luz e sombra verde nos reflexos sombrios da pouca água. Entre mim e a vida há um vidro ténue. Por mais nitidamente que eu veja e compreenda a vida, eu não lhe posso tocar.
Nunca vi em mim senão uma romaria de inconsciências para o outono das minhas intenções. As longas horas que tenho passado à beira do meu correr têm-me [...] rios sobre a existência. Com os meus passos treme a luz das estrelas. Um gesto da minha mão, que me oculta a lua um momento, mostra, com este meu assombro, quanto pode realmente significar. Destes pensamentos, tornados domésticos e quotidianos ao meu escrúpulo, adveio ao meu instinto que ele naufragava no porto. Pareceu-me sempre que ser era ousar; que querer era aventurar-se. Inércia soube-me a santidade, e não-querer a ter bons costumes. Construí assim uma moral burguesa do pensamento, um cuidado da comodidade e da decência através do respeito do mistério. A exagerada consciência, que sempre tive, dos meus momentos, doeu-me sempre a mistério e a divino. Nunca me compreendi sobretudo quando me surpreendi a viver as inconsciências dos meus instintos e a vulgar correcção dos meus reflexos nervosos.
Perdi-me pelos sistemas secundários, excitados da metafísica sistemas cheios de analogias perturbantes, de alçapões para a lucidez, pondo paisagens misteriosas onde reflexos de sobrenatural acordam mistérios nos contornos. Envelheci pelas sensações... Gastei-me gerando os pensamentos... E a minha vida passou a ser uma febre metafísica, sempre descobrindo sentidos ocultos nas coisas, brincando com o fogo das analogias misteriosas, procrastinando a lucidez integral […].Caí numa complexa indisciplina cerebral, cheia de indiferenças. Onde me refugiei? Tenho a impressão de que não me refugiei em parte nenhuma. Abandonei-me mas não sei a quê. Que sonhos tenho? Não sei. Forcei-me por chegar a um ponto onde nem saiba já em que penso, em que sonho, o que visiono. Parece-me que sonho cada vez de mais longe, que cada vez mais sonho o vago, o impreciso, o invisionável.
Narciso, durante uma caçada, encontra a ninfa Eco. Logo que o viu, uma paixão súbita se apoderou dela. Foi em sua perseguição, mas, como não podia falar, limitava-se a segui-lo. Até que Narciso, pressentindo alguém, exclama: — Ecquis adest? - Ela surge e abraça-se a ele que a repele... Eco, entristecida e envergonhada, refugia-se na floresta, deixando de comer. Todos, jovens e donzelas, se sentiam desprezados por Narciso, até que alguém lançou uma maldição: «Possa ele amar e não possuir o objeto dos seus desejos!" A deusa Nemesis ouve esta súplica e prepara-se para a satisfazer. Um dia, Narciso, extenuado após uma caçada, encontra um local maravilhoso, onde descansa e aproveitou para matar a sede num lago imaculado, que Ovídio descreve de forma pormenorizada, de modo dar-nos a perfeita sensação de um espelho. Ao matar a sede, mira-se e vê a sua bela imagem no lago... Apaixonana-se pela sua pessoa e não consegue afastar-se desse feitiço.... Moribundo, dirige as suas últimas palavras às árvores que o rodeiam e refere o seu desgosto pela paixão que o dominou, que nunca poderá concretizar. Na realidade, apesar de não haver grande distância entre eles, o ser amado era inantigível: quando estendia os braços, o ente querido também os estendia, quando sorria, ele também sorria, quando falava, do outro lado só havia um mexer de lábios sem som. Mas reconhece o seu erro, pois apaixonou-se por si próprio — Iste ergo sum — e em breve exalarão ambos o último suspiro...
Eco vem assistir aos seus últimos momentos: mesmo ao entrar nos Infernos, Narciso mirou-se nas águas do lago Estígio.
O mito de Narciso para Valéry traduz a pretensão de corporalizar, de reduzir a uma concreta imagem mítica, o mais antinatural, irreal e absoluto — o seu Eu: Mais moi, Narcisse aimé, je ne suis curieux Que de ma seule essence Tout autre n'a pour moi un coeur mystérieux Tout autre n" est qu' absence. Te voici, mon doux corps de lune et de rosée, O forme obéissante à mes vœux opposée ! Qu'ils sont beaux, de mes bras les dons vastes et vains ! Mes lentes mains, dans l'or adorable se lassent D'appeler ce captif que les feuilles enlacent; Mon cœur jette aux échos l'éclat des noms divins !... Du souffle que j'enseigne à tes lèvres, mon double, Sur la limpide lame a fait courir un trouble ! ...Tu trembles ! ... Mais ces mots que j'expire à genoux Ne sont pourtant qu'une âme hésitante entre nous,Entre ce front si pur et ma lourde mémoire ... Je suis si près de toi que je pourrais te boire, O visage ! ... Ma soif est un esclave nu ...jusqu'à ce temps charmant je m'étais inconnu, Et je ne savais pas me chérir et me joindre ! Mais te voir, cher esclave, obéir à la moindre Des ombres dans mon cœur se fuyant à regret, Voir sur mon front l'orage et les feux d'un secret, Voir, ô merveille, voir ! ma bouche nuancée Trahir... peindre sur l'onde une fleur de pensée, Et quels événements étinceler dans l'œil ! J'y trouve un tel trésor d'impuissance et d'orgueil, Que nulle vierge enfant échappée au satyre, Nulle ! aux fuites habiles, aux chutes sans émoi, Nulle des nymphes, nulle amie, ne m'attire Comme tu fais sur l'onde, inépuisable Moi !.
A criação literária mais genial, inspirada neste mito, é, indiscutivelmente, a de Wilde...
Acredito que se um homem vivesse a sua vida plenamente, desse forma a cada sentimento, expessão a cada pensamento, realidade a cada sonho, acredito que o mundo beneficiaria de um novo impulso de energia tão intenso que esqueceríamos todas as doenças da época medieval e regressaríamos ao ideal helénico, possivelmente até a algo mais depurado e mais rico do que o ideal helénico. Mas o mais corajoso homem entre nós tem medo de si próprio. A mutilação do selvagem sobrevive tragicamente na autonegação que nos corrompe a vida. Somos castigados pelas nossas renúncias. Cada impulso que tentamos estrangular germina no cérebro e envenena-nos. O corpo peca uma vez, e acaba com o pecado, porque a acção é um modo de expurgação. Nada mais permanece do que a lembrança de um prazer, ou o luxo de um remorso. A única maneira de nos livrarmos de uma tentação é cedermos-lhe. Se lhe resistirmos, a nossa alma adoece com o anseio das coisas que se proibiu, com o desejo daquilo que as suas monstruosas leis tornaram monstruoso e ilegal. Já se disse que os grandes acontecimentos do mundo ocorrem no cérebro. É também no cérebro, e apenas neste, que ocorrem os grandes pecados do mundo.
o tempo tem-lhe inveja e faz guerra aos seus lírios e às suas rosas. a bela aparência de Dorian Gray: são dons dos deuses...A noção de sua beleza dominava-o como uma revelação.
-Que tristeza!- murmurou Dorian.- Que tristeza!- repetiu, com os olhos cravados na sua efígie- Eu vou ficar velho, feio, horrível. Mas este retrato conservar-se-á eternamente jovem. Nele, nunca serei mais idoso do que neste dia de junho... Se fosse o contrário! Se eu pudesse ser sempre jovem, se o quadro envelhecesse!... Por isso, por esse milagre eu daria tudo!Sim, não há no mundo o que eu não estivesse pronto a dar em troca. Daria até a alma!
Estava cada vez mais enamorado da sua própria beleza, mais e mais empenhado em corromper a sua própria alma.
-Que horror, Dorian! Alguma coisa o transformou completamente. Por fora, ainda é o belo rapaz que, não há muito tempo, ia ao meu estúdio e posava diariamente para o seu retrato: um rapaz simples, afetuoso, sem afetação. A criatura mais inocente deste mundo. Agora, não sei o que lhe sucedeu. Fala como se não tivesse coração, como se desconhecesse a piedade.
É frequente desencadearem-se as verdadeiras tragédias da vida de uma maneira tão pouco artística que nos magoam com a sua crua violência, a sua tremenda incoerência, carecendo absolutamente de sentido, sem o mínimo estilo. Afectam-nos do mesmo modo que a vulgaridade. Causam-nos uma impressão de pura força bruta contra a qual nos revoltamos. Por vezes, porém, cruzamo-nos nas nossas vidas com uma tragédia repassada de elementos de beleza artística. Se esses elementos estéticos são autênticos, todo o episódio apela à nossa apreciação do efeito dramático. De repente deixamos de ser actores e passamos a espectadores da peça. Ou antes, somos ambas as coisas. Observamo-nos, e todo o encanto do espectáculo nos arrebata.
Dentro de mim me quis eu ver. Tremia, Dobrado em dois sobre o meu próprio poço... Ah, que terrível face e que arcabouço Este meu corpo lânguido escondia! Ó boca tumular, cerrada e fria, Cujo silêncio esfíngico bem ouço! Ó lindos olhos sôfregos, de moço, Numa fronte a suar melancolia! Assim me desejei nestas imagens. Meus poemas requintados e selvagens, O meu Desejo os sulca de vermelho: Que eu vivo à espera dessa noite estranha, Noite de amor em que me goze e tenha, ...Lá no fundo do poço em que me espelho!
Nunca me ofereceram narcisos...Talvez ninguém saiba que adoro narcisos. Fui à florista comprar um vasinho de narcisos. " São para oferta?". "Sim! São para mim." Como??" "Sou narcisista, percebe?" Não percebeu e, contrafeita, fez o embrulho de oferta...
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