Um salvador... Talvez, devagarinho, possas voltar a aprender...
Pela normalidade??
Pelas palavras...
A glória nocturna de ser grande não sendo nada! A majestade sombria de esplendor desconhecido... E sinto, de repente, o sublime do monge no ermo, do eremita no retiro, inteirado da substância do Cristo nas pedras e nas cavernas do afastamento do mundo. E na mesa do meu quarto sou menos reles, empregado e anónimo, escrevo palavras como a salvação da alma e douro-me do poente impossível de montes altos vastos e longínquos da estranha recebida por anel de renúncia em meu dedo evangélico, jóia parada do meu desdém estático.
Pelo amor ...
"L'amour n'a point de moyen terme; ou il perd, ou il sauve..."
Estava claro o céu, tépido o ar, e as bouças e montes floridos, O mês era de Dezembro, de 1863, em véspera de Natal. A gente das cidades pergunta-me em que país do mundo florescem, em Dezembro, bouças e montados.
Eu, homem sem família, sem mão amiga neste mundo, há trinta anos sozinho, sem reminiscências de carícias maternais, benquisto apenas de uns cães, que pareciam amar-me com a cláusula de eu os sustentar e agasalhar; eu, que, naquele tão festivo dia da nossa terra, não tinha colmado onde me esperasse um amigo pobre para me dar entre os seus um lugar no escabelo, nem parente abastado, que de mim se lembrasse à hora dos brindes com generosos vinhos em lúcidos cristais, eu vendo-me com lágrimas em minha sombra, assim me fora a contemplar a felicidade alheia pelas chãs e outeiros do devoto Minho.
D. Elvira era uma dama casada, que não tinha por seu marido aquele amor que dá ao peito de boa esposa arnês de aço contra as frechas de um cupido estranho. O marido, minimamente confiado em seus direitos, descuidou-se. Aqui está um mal enorme de onde vamos ver brotar uma enchente de benefícios à humanidade...
Eu carecia de um amigo, e não tinha nenhum a quem mostrasse as secretas dores, que escondera de todos. Tive ânsias de uma alma que me escutasse. Lembraram-me todos os que mais tinham convivido comigo. Sem exceção de um só, eram todos fúteis e incapazes de me pouparem à sua zombaria, se me vissem chorar. Sufoquei-me, atirei-me aos braços da minha algoz fantasia, deixei-me dilacerar pelo abutre da soberba, soberba de não ser ridículo em nenhuma das minhas desgraças.
O sentimento da piedade. Não podia ser amor, porque não há infâmia de alma que desça até aí. Ódio também não, que o ódio quer vingança, e eu dava-me já por vingado de a ver a resvalar, no plano inclinado, não sei até que ordem de abismos. Era piedade que eu sentia, e tanta que, se me viessem dizer que Palmira, dentro de um ano, perdera a formosura, que vendia, e os bens, que herdara, e se desgraçara até à extremidade de pedir o pão de cada dia, eu faria do meu pão dois quinhões, e um mandar-lho-ia sem insulto nem palavra recordadora do passado.
Agora sei que há sobre a Terra um homem feliz há dez anos, feliz para uma longa existência. Este gozo, que nem contado pelos evangelistas eu acreditaria, sei agora que existe, abaixo do reino dos justos, entre os homens, no mundo de 1863, no AMOR DE SALVAÇÃO!
Pelo humor ...
Então chegaram junto de Jesus uns fariseus que se interessavam por fiscalidade. E, talvez um pouco enfastiados de parábolas acerca do reino dos céus, quiseram saber a opinião do Messias a respeito do regime de tributação sobre dividendos agrícolas. E perguntaram-Lhe: “Mestre, devemos pagar o imposto a César ou não?” E Jesus disse: “Trazei-me uma moeda.” E os fariseus deram-Lhe uma moeda, embora com relutância, evidentemente, pois eram judeus. E então Jesus disse: “De quem é a figura que está nesta moeda?” E eles responderam: “É de César. Ainda precisais da moeda ou já podeis devolvê-la?” E Jesus disse: “Pois então dai a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus.” E ficou muito claro para todos que o Messias tinha dito “Pagai e não bufai”, mas de um modo mais elegante. E todos compreenderam que, embora tivesse vindo para nos salvar da morte, em relação aos impostos Ele nada podia fazer, pois a omnipotência tem limites e um deles é o fisco. E então passaram dois milénios de exegese bíblica, e ao que tudo indica aquela frase passou a ser interpretada como se Ele não tivesse dito “Dai a César o que é de César” mas sim “Tentai obter uma isenção fiscal total, por exemplo através da assinatura de uma Concordata.” E os imóveis da igreja católica passaram a estar isentos de IMI, incluindo os edifícios em cujas salas decorressem aulas de catequese. E aconteceu que, muitos anos depois de Jesus, o fisco veio a considerar que os edifícios e terrenos que a igreja arrenda a terceiros, ou que não utiliza para fins religiosos, não estão abrangidos pela Concordata. E houve grande lamento e ranger de dentes, porque as riquezas da igreja não contam como riquezas, tanto que Jesus contou a parábola do jovem rico e não a parábola da diocese rica, pois o Senhor deseja que os jovens ricos se despojem de todos os bens e que todas as dioceses ricas se despojem de todos os impostos sobre os bens. E, como os edifícios usados para fins religiosos estavam isentos de IMI, todos os contribuintes quiseram aceitar Cristo em seus corações, e transformar suas casas em templos, e ensinar catequese aos filhos em todas as assoalhadas, pois a promessa da vida eterna não os tinha convencido, mas a hipótese de uma isenção fiscal até converte o Diabo. Palavra da salvação.
Pela arte ...
Uma síntese disto tudo; a salvação
É porque existe o desejo, o olfato, e o medo,
e os vivos apaixonam-se por outros vivos,
e lembram-se, por vezes, do enorme número de mortos,
e dentro destes há alguns que os fazem desligar a luz e o trabalho,
e o quotidiano aí já não basta,
porque o coração tem em certos dias um orçamento incomportável.
E não basta então a mulher que amamos,
nem os filhos
– os que nos vão sobreviver no tempo –
e é preciso sair, e não basta sair para a rua e correr,
é preciso sair dos ossos,
fugir ao obrigatório, à casa,
encontrar dentro dos bolsos o bocado de uma carta, um mapa,
fragmento que possa reconstruir o caminho para a casa da infância,
onde Deus era chocolate e o resolvíamos, assim, de uma vez, porque o comíamos,
Porque mais tarde crescemos e ganhamos dinheiro, família, e alguns outros assuntos,
mas perdemos qualquer coisa de que é impossível falar, de que não sabemos falar.
E é por tudo isso,
e por quase tudo o que faltou dizer,
é por isso que é bom, por vezes,
suspender a noite e o coração,
e obrigar o cérebro à paragem surpreendente.
É por isso que é bom, por vezes,
ocuparmos o corpo no acto de sentar,
e pedir, então, à arte, à literatura, ao teatro,
que nos salve,
por enquanto,
antes de morrermos.
Pelo humanismo ...
Se vejo reaparecer, enquanto ele fala, todos os humanistas que conheci? Ah, conheci tantos! O humanista radical é amigo especialmente dos funcionários. O humanista dito «da esquerda» tem como preocupação principal a de conservar os valores humanos; não adere a nenhum partido para não trair o humano, mas as suas simpatias vão para os humildes; é aos humildes que consagra a sua bela cultura clássica. Em geral é viúvo e tem uns bonitos olhos sempre húmidos de lágrimas: nos aniversários chora. Gosta também dos gatos, dos cães e de todos os mamíferos superiores. O escritor comunista gosta dos homens desde o segundo plano quinquenal: castiga porque ama. Pudico, como todos os fortes, sabe esconder os seus sentimentos, mas sabe também, com um olhar, com uma inflexão da voz, fazer pressentir por trás das suas rudes palavras de justiceiro uma paixão ríspida e doce pelos seus irmãos. O humanista católico, o que chegou atrasado, o benjamim, fala dos homens com um ar maravilhado. «Que belo conto de fadas», diz ele, «que é a vida mais humilde, a dum estivador londrino, a duma operária que passa a vida a pespontar calçado!» Escolheu o humanismo dos anjos; escreve, para edificação dos anjos, longos romances tristes e belos, que obtêm frequentemente o prémio Femina. São estes os papéis grandes, os principais. Mas há outros, uma quantidade de outros: o filósofo humanista, que olha pelos seus irmãos como um irmão mais velho e que tem o sentido das responsabilidades: o humanista que ama os homens tais-quais são; o que os ama tais como deviam ser; o que quer salvá-los com o seu consentimento, e o que decide salvá-los mesmo contra vontade deles; o que tenta criar mitos novos, e o que se contenta com os antigos; o que, no homem, ama a sua morte; o que, no homem, ama a sua vida; o humanista alegre que traz sempre uma graça engatilhada; o humanista sombrio, que se encontra sobretudo em velas a mortos. Odeiam-se todos uns aos outros: como indivíduos, evidentemente - não como homens. Mas o Autodidata não sabe: fechou-os em si próprio, como gatos num saco de cabedal, e os humanistas vão-se dilacerando mutuamente, sem ele dar por isso. Já está a olhar para mim com menos confiança.
«O senhor não partilha os meus sentimentos?»
«Bem...»
Em face da sua expressão inquieta, um pouco rancorosa, arrependo-me um momento de o ter desiludido. Mas ele reata amavelmente:
«Eu sei: o senhor tem as suas pesquisas, os seus livros... Serve a mesma causa doutra maneira.»
Os meus livros, as minhas pesquisas... Que imbecil! Não podia ter dito uma inépcia maior.
«Não é esse o motivo por que escrevo.»
No mesmo instante, a cara do Autodidata transforma-se: dir-se-ia que farejou o inimigo. Nunca lhe tinha visto esta expressão. Qualquer coisa acaba de morrer entre nós.
Fingindo-se surpreendido, pergunta:
«Mas... se não sou indiscreto, então porque é que escreve?»
«Bem... não sei: por nada, por escrever.»
Não lhe custa esboçar um sorriso: pensa que me desconcertou :
«O senhor escreveria se estivesse numa ilha deserta? Não é sempre para ser lido que se escreve?»
Foi por hábito que ele deu à sua frase uma entoação interrogativa. Na realidade, tratava-se duma afirmação. O seu verniz de doçura e de timidez foi estalando: mal o reconheço. As suas feições deixam transparecer uma pesada obstinação: é um muro de suficiência. Ainda não me refiz da minha admiração, já o ouço dizer:
«Que me respondam:escrevo para certa categoria social, para um grupo de amigos.Muito bem.Talvez o senhor escreva para a posteridade.. Mas, queira ou não queira, para alguém escreve.»
Espera uma resposta. Como ela não vem, sorri discretamente.
«Talvez o senhor seja um misantropo?»
Eu sei o que este falacioso esforço de conciliação dissimula. É pouco, afinal, o que me pedem: simplesmente que aceite um rótulo. Mas é uma cilada: se consinto, o Autodidacta triunfa, e sou imediatamente contornado, reivindicado, ultrapassado, porque o humanismo toma à sua conta, e funde na mesma massa, todas as atitudes humanas. Se nos opomos a ele de frente, caímos no seu jogo; ele tira forças do que lhe é adverso. Existe uma raça de pessoas teimosas e curtas de vista, de salteadores, que perde com ele, a cada jogada: o humanismo digere todas as violências, os piores excessos dessa gente, fá-los numa linfa branca e espumosa. Digeriu o anti intelectualismo, o maniqueísmo, o misticismo, o pessimismo, o anarquismo, o egotismo; correntes que já só aparecem como etapas, como pensamentos incompletos que só nele encontram a sua justificação. A misantropia tem também o seu lugar neste concerto: não passa duma dissonância necessária à harmonia do conjunto. O misantropo é homem: logo, é preciso que o humanista seja, em certa medida, misantropo. Mas é um misantropo científico, que soube dosear o seu ódio, que, se começa por odiar os homens, é apenas para, mais tarde, poder amá-los melhor.
Não quero que me integrem, nem que o meu belo sangue vermelho vá engordar esse animal linfático: não vou cometer a tolice de me declarar «anti-humanista». Não sou humanista, eis tudo. «Acho», digo eu ao Autodidata, «que é tão impossível odiar os homens como amá-los.» O Autodidata olha-me com um ar protector e distante. Murmura, como se não prestasse atenção às próprias palavras:
«É preciso amá-los, é preciso amá-los...»
«Amar quem? As pessoas que estão aqui?»
«Estas também. Todas.»
Nisto, volta-se para o par de radiosa juventude: ali está o que é preciso amar. Contempla um momento o senhor de cabelos brancos. Depois dirige novamente para mim o seu olhar: leio-lhe na cara uma interrogação muda. Faço que não com a cabeça. Ele parece ter dó de mim.
«Mas o senhor», digo-lhe eu, irritado, «o senhor também não os ama.»
«Julga isso? Dê-me licença para não partilhar a sua opinião.»
De novo se tornou respeitoso, dos pés à cabeça; mas adopta a expressão irónica de alguém que estivesse imensamente divertido. Odeia-me. Bem mal teria eu feito em me comover com este maníaco. Interrogo-o por minha vez:
«Então o senhor ama os dois namorados que estão ali, por trás de si?»
Ele olha-os outra vez; reflecte:
«O senhor quer levar-me a dizer», replica ele, desconfiado, «que os amo sem os conhecer. Pois bem, confesso, não os conheço... A não ser, justamente, que o amor seja o verdadeiro conhecimento», acrescentou como uma expressão fátua.
«Mas de que é que gosta neles?»
«Vejo que são novos, e é essa mocidade que aprecio. Entre outras coisas...»
Interrompeu-se e pôs-se à escuta:
«Percebe o que estão a dizer?»
Se percebo! O rapaz, encorajado pela simpatia que o rodeia, conta, com uma voz cheia, um desafio de futebol que o seu grupo ganhou, o ano passado, contra um clube do Havre.
«Está-lhe a contar uma história», digo eu ao Autodidata.
«Ah! Não percebo bem. Mas ouço as vozes; uma voz doce e uma voz grave, alternadamente. É... é tão simpático.»
«Sim, mas eu, infelizmente, ouço também o que dizem.»
«E então?»
«E então, estão a representar uma comédia.»
«Sério? A comédia da mocidade, talvez?», sugere ele com ironia. «Permita-me que a considere muito proveitosa. Bastará representá-la para voltar à idade deles?»
Permaneço insensível à sua ironia; continuo: «O senhor está de costas voltadas, escapa-lhe o que eles dizem... De que cor são os cabelos da rapariga?»
Ele perturba-se:
«São... bem...» Relanceia um olhar aos namorados e retoma a sua segurança. «São pretos!»
«Já vê!»
«Como?»
«Já vê que não os ama, àqueles dois. Quando passasse por eles na rua, talvez nem os reconhecesse. São apenas símbolos, para si. Não é com eles, de modo algum, que o senhor está a enternecer-se; estava-se a enternecer era com a Juventude do Homem, com o Amor do Homem e da Mulher, com a Voz humana.»
«E então? Serão coisas que não existem?»
«Claro que não, não existem! Nem a Mocidade, nem a Maturidade, nem a Velhice, nem a Morte...»
A cara do Autodidacta, amarela e dura como um marmelo, cristalizou-se num tétano reprovador. Não obstante, prossigo:
«É como o sujeito já de certa idade que está atrás de si, a beber água de Vichy. Nesse, é o Homem maduro, creio eu, que o senhor ama; o Homem maduro que caminha corajosamente para o declínio, e cuida do seu trajo porque não quer abandonar-se?»
«Exactamente», responde-me ele num tom de desafio.
«E o senhor não vê que ele é um safado?»
O meu companheiro ri, acha-me um doidivanas, deita um rápido olhar ao belo rosto emoldurado de cabelos brancos:
«Mas, admitindo que aquele homem pareça o que o senhor diz, como pode o senhor julgá-lo pela cara? Uma cara em repouso não exprime coisa nenhuma.»
Ah, cegos humanistas! Aquela cara é tão eloquente, tão clara - mas nunca a alma deles, sensível e abstracta, se-deixou impressionar pelo sentido duma cara.
«Como pode o senhor», diz o Autodidata, «reter um homem, dizer este homem é isto ou aquilo? Quem poderá esgotar um homem? Conhecer-lhe todos os recursos?»
Esgotar um homem! Cumprimento de passagem o humanismo católico, donde o Autodidacta, sem saber, tirou esta fórmula.
«Bem sei», digo-lhe eu, «bem sei que todos os homens são admiráveis. O senhor é admirável. Eu sou admirável. Enquanto criaturas de Deus, bem entendido.»
Ele olha para mim sem compreender; depois, com um sorriso ténue:
«O senhor está com certeza a brincar, mas é verdade que todos os homens têm direito à nossa admiração. É difícil, é muito difícil ser um homem.»
Sem dar por isso, acaba de abandonar o amor dos homens em Cristo; meneia a cabeça e, por um curioso fenómeno de mimetismo, parece-se com o pobre Guéhenno.
«Desculpe», digo-lhe eu, «mas então não tenho bem a certeza de ser um homem: nunca tinha achado isso muito difícil. Parecia-me que bastava deixar andar.»
O Autodidata ri francamente, mas permanece-lhe nos olhos um mau fulgor:
«O senhor é demasiado modesto. Para suportar a sua condição, a condição humana, precisa, como toda a gente, de muita coragem. O instante que vai chegar pode ser o da sua morte; o senhor sabe-o, e pode sorrir: vejamos! Não é admirável ? Na mais insignificante das suas acções», acrescenta com azedume, «há um heroísmo imenso.»




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