Não é neccessário vivermos ao lado de alguém para nos sentirmos ligados a esse alguém mais do que a qualquer outra pessoa...

sábado, 30 de dezembro de 2017

Náusea...Queda... Náusea

Não posso dizer que me sinta aliviado nem contente; pelo contrário, estou esmagado. Somente, atingi o meu fito: sei o que queria saber; compreendi finalmente tudo o que me vem sucedendo desde o mês de Janeiro. A Náusea não me abandonou, e não creio que me abandone tão cedo; mas deixei de sofrer com ela, não se trata já duma doença nem dum acesso passageiro: a Náusea sou eu.

E pronto; o meu passado é apenas um buraco enorme. O meu presente, esta criada de corpete azul, aquele homenzinho que está a sonhar ao pé do balcão. Tenho a impressão de ter aprendido nos livros tudo o que sei da minha vida.

As pessoas que vivem em sociedade aprenderam a ver-se, nos espelhos, tal como aparecem aos seus amigos. Eu não tenho amigos: será por isso que a minha carne é tão nua? Dir-se-ia - sim, dir-se-ia a natureza sem os homens. Perdi o gosto pelo trabalho; já não posso fazer nada, senão esperar a noite.Cinco e meia,Isto está mau, muito mau: cá está ela, a porcaria da Náusea. E, desta vez, é diferente: deu-me num café. Os cafés eram até aqui o meu único refúgio, porque estão sempre cheios de gente e bem iluminados: já nem isso me resta; quando estiver encurralado no meu quarto, já não terei para onde ir.

A sua camisa de algodão azul sobressai alegremente do fundo cor de chocolate que é a parede. Também isso me faz náuseas. Ou antes: é isso a Náusea. A Náusea não está dentro de mim: sinto-a além, na parede, nos suspensórios, em toda a parte à minha volta. Constitui um todo com o café; sou eu que estou dentro dela.

As cartas caem, rodopiando, no pano de lã. Depois umas mãos, com anéis nos dedos, vêm apanhá-las, arranhando o pano com as unhas. As mãos fazem manchas brancas no pano, têm um aspecto assoprado e poeirento. As cartas continuam a cair, as mãos vão e vêm. Que ocupação esta! Não parece um jogo, nem um rito, nem um hábito. Acho que eles fazem isto simplesmente para encher as suas horas vagas. Mas o tempo é largo de mais, não se deixa encher. Tudo quanto mergulha nele amolece e dá de si...

Some of these days You're gonna miss me, honey Some of these days You gone feel so lonely ...You may even miss me, honey When I'm away...

O que acaba de suceder é que a Náusea desapareceu. Quando a voz se levantou, no silêncio, senti o meu corpo contrair-se, e a Náusea dissipou-se. Bruscamente: era quase penoso tornar-se assim duro, rutilante. Ao mesmo tempo a duração da música dilatava-se, inchava como uma tromba marinha. Enchia a sala com a sua transparência metálica esborrachando contra a parede o nosso tempo miserável Agora estou dentro da música. Nos espelhos rolam bolas de fogo; cercam-nos anéis de fumo, que giram, encobrindo e descobrindo o sorriso duro da luz. O meu copo de cerveja encolheu, está acalcado contra a mesa: tem um ar de coisa densa, indispensável. Quero agarrá-lo,, tomar-lhe o peso, estendo o braço... Meu Deus! Eis o que mudou foram sobretudo os meus gestos. O movimento do meu braço desenvolveu-se como um tema...


Uma grande sombra magra surge bruscamente por trás de mim. Estremeço. «O senhor desculpe, eu não queria incomodá-lo. Vi seus lábios mexer. Estava com certeza a repetir frases do seu livro.» A pessoa ri. «Andava à procura de algum verso. Olho para o Autodidata, estupefacto. Mas ele parece surpreendido com a minha surpresa: «Sim... Não se deve evitar com cuidado que fiquem versos no meio da prosa?» Baixei ligeiramente na sua estima. Pergunto-lhe o que faz ele aqui, a estas horas. Responde que o patrão lhe deu folga e que veio logo para a Biblioteca; que não vai almoçar, ficará a ler até à hora de fechar. Deixei de lhe prestar atenção, mas com certeza que ele se afastou do assunto primitivo, porque ouço de súbito: «... ter a felicidade como o senhor de andar a escrever um livro.» Tenho de responder alguma coisa. «Felicidade...», digo eu num tom dubitativo. Ele engana-se quanto ao sentido da resposta e corrige rapidamente: «Talento, queria eu dizer, talento!» Subimos ambos a escada. Não tenho vontade de trabalhar. Alguém deixou uma Eugénie Grandet em cima da mesa; o livro está aberto na página vinte e sete. Agarro nele maquinalmente, começo a ler a página vinte e sete depois a página vinte e oito: não tenho coragem para começar pelo princípio. O Autodidacta dirigiu-se para as prateleiras da sala, a passos apressados; volta com dois volumes que larga em cima da mesa, com um ar de cão que encontrou um osso. «Que está o senhor a ler?» Parece que sente relutância em mo dizer: hesita um pouco, rebola os grandes olhos espantados, depois mostrou-me os livros com um ar de constrangimento. São A Turfa e a Turfeira, de Larbalétrier, e Hitopadèsa ou a Instruçõ Util, de Lastex. E então? Não vejo o que o perturba: são leituras que me parecem muito decentes. Por descargo de consciência, folheio a Hitopadèsa, e não encontro lá nada que não seja elevado.


«Tout est grand dans ce célèbre roman, sans que rien ne bouge. Eugénie est une sorte de sainte selon l'homme, toujours fidèle à une même pensée, mais toute naturelle. [...] Eugénie est le premier personnage de ce drame d'amour [...] En Grandet, ce rocheux Grandet, il y a une source de tendresse émouvante, quand il se cache pour voir sa fille à la toilette. [...] Au rebours on trouvera dans Eugénie tous les stratagèmes du cœur, et un vrai courage à affronter le terrible homme aux gants de cuir. On a tout dit sur Grandet. On a moins remarqué ce mot de reine, lorsque Eugénie se trouve maîtresse d'une immense fortune et assiégée d'intrigues. Elle répond : « Nous verrons cela» comme son père faisait. [...] Ainsi l'âme de Grandet finit par être sauvée. Balzac laboure la terre.»

«Terrível condição do homem! Não há uma das suas felicidades que não provenha de uma ignorância qualquer.»


O Autodidata, ao ver que estou a escrever, observa-me com uma concupiscência respeitosa. De vez em quando levanto um pouco a cabeça, vejo o imenso colarinho postiço, alto e sem pontas, donde lhe sai o pescoço de frango. Traz um fato coçado, mas nem uma sombra lhe polui a alvura da roupa. Acaba de tirar da mesma prateleira outro volume, e consigo ler-lhe o título, mesmo de pernas para o ar: O Campanário de Caudebec, crónica normanda, por Julie Lavergne. As leituras do Autodidata desconcertam-me sempre. De súbito, os nomes dos últimos autores cujas obras ele consultou vêm-me à memória: Lambert, Langlois, Larbalétrier, Lastex, Lavergne. É uma iluminação; acabo de perceber qual é o método do Autodidata: vai-se instruindo por ordem alfabética.
Contemplo-o com uma espécie de admiração. Que vontade não lhe será precisa para realizar lenta, obstinadamente, um plano de tão vasta envergadura? Um dia, há sete anos (disse-me ele que já estudava havia sete anos), entrou com grande pompa nesta sala. Percorreu com o olhar os inumeráveis livros que cobrem as paredes e disse, provavelmente, mais ou menos como Rastignac: «Agora nós, Ciência humana.» Depois foi buscar o primeiro livro da primeira prateleira da extrema direita; abriu-o na primeira página, com um sentimento de respeito e de terror, unido a uma decisão inabalável. Vai agora na letra L. Do J passara ao K, do K passou ao L. Saltou brutalmente do estudo dos coleópteros para o estudo da teoria dos quanta, duma obra sobre Tamerlão para um panfleto católico contra o darwinismo: nunca se atrapalhou. Leu tudo; armazenou na cabeça metade do que se sabe sobre a parteno-genese, metade dos argumentos contra a vivissecção. Atrás dele, adiante dele, há um universo. E aproxima-se o dia em que dirá para consigo, fechando o último volume da ultima prateleira da extrema esquerda: «E agora?»


Nunca tive tão nitidamente como hoje o sentimento de ser o meu corpo, sem dimensões secretas, de me reduzir aos pensamentos leves que sobem dele como bolhas. Construo as minhas recordações com o meu presente. Sou repelido para o presente, abandonado lá. Tento em vão ir ter com o passado: não posso fugir da minha prisão. Batem à porta. É o Autodidata. Tinha-me esquecido: prometi mostrar-lhe as fotografias das minhas viagens.

Se um dia eu fosse fazer uma viagem, acho que tentaria, antes de partir, notar por escrito os menores traços do meu carácter... E à volta compararia o que era antes com o que fosse depois. Li que há viajantes que mudam tanto, física e moralmente, que, ao regressarem, os seus parentes mais próximos não os reconhecem.»


«Que espécie de aventuras?», pergunto-lhe surpreendido.
«De todas as espécies. Tomar um comboio que não é o nosso. Descer numa cidade desconhecida. Perder a carteira, ser preso por engano, passar a noite na prisão. Acho que se podia definir a aventura assim: um acontecimento que sai do ordinário, sem ser forçosamente extraordinário. Fala-se da magia das aventuras,»


Não tive aventuras. Sucederam-me histórias, acontecimentos, incidentes, tudo o que se quiser. Mas aventuras, não. Não é uma questão de palavras; começo a compreender. Há qualquer coisa que eu prezava mais que tudo o resto - sem dar bem por isso. Não era o amor, oh, não!, nem a glória, nem a riqueza. Era... Enfim, tinha imaginado que, em certos momentos, a minha vida podia ganhar uma qualidade rara e preciosa. Não eram precisas circunstâncias extraordinárias: tudo quanto eu pedia era um pouco de rigor. A minha vida presente não tem nada de brilhante: mas, de tempos a tempos, por exemplo, quando, nos cafés, se ouvia música, eu revia o passado e dizia para comigo: «Outrora, em Londres, em Mequinez, em Tóquio, conheci momentos admiráveis, tive aventuras.» É esta possibilidade que agora me é negada. Acabo de descobrir, lentamente, sem razão aparente, que andei dez anos a mentir a mim próprio. As aventuras estão nos livros. E, bem entendido, tudo o que se conta nos livros pode suceder realmente, mas não da mesma maneira. Ora, é precisamente esta maneira de suceder que eu prezava tanto.

SÁBADO, MEIO-DIA.
O Autodidata não me viu entrar na sala de leitura. Estava sentado à ponta da mesa do fundo; tinha um livro aberto diante dele, mas não lia. Estava a olhar, sorrindo, para o vizinho da direita, um colegial muito sujo que vem muitas vezes à Biblioteca. O outro deixou-se contemplar um momento, depois deitou-lhe a língua de fora, fazendo uma horrível careta. O Autodidata corou, voltou precipitadamente ao seu livro e ficou absorto na leitura.
Reconsiderei as minhas reflexões de ontem. Ontem estava seco de todo: era-me indiferente que não houvesse aventuras. O que eu queria saber era apenas se não podia haver.Eis o que pensei: para o acontecimento mais banal se tornar uma aventura, é preciso, e é bastante, que nos punhamos a contá-lo. É o que engana as pessoas: um homem é sempre um narrador de histórias: vive cercado das suas histórias e das de outrem, vê tudo quanto lhe sucede através delas; e procura viver a sua vida como se estivesse a contá-la.


Decididamente, o sentimento de aventura não vem dos acontecimentos: a prova está tirada. É antes a maneira como os instantes se encadeiam. Eis, creio eu, o que se passa: bruscamente sente-se que o tempo corre, que cada instante conduz a outro instante, esse outro a um terceiro, e assim sucessivamente; que todos os instantes se aniquilam, que é inútil tentar reter algum, etc., etc. E então atribui-se essa propriedade aos acontecimentos que nos aparecem dentro dos instantes; o que pertence à forma é trasladado para o conteúdo. Em suma, esse famoso correr do tempo, fala-se muito dele, mas quase não se vê. Vê-se uma mulher, pensa-se que ela será velha um dia, somente não a vemos envelhecer. Mas em certos instantes parece que a vemos envelhecer e que nos sentimos envelhecer com ela: é o sentimento de aventura. Chama-se a isso, se bem me lembro, a irreversibilidade do tempo. O sentimento de aventura seria, muito simplesmente, o da irreversibilidade do tempo. Mas porque é que não o temos constantemente? O tempo não será constantemente irreversível?

Quando entrei na sala de leitura, o Autodidata ia a sair. Precipitou-se sobre mim: «Tenho de lhe agradecer. As suas fotografias fizeram--me passar algumas horas inesquecíveis.» Ao vê-lo tive um momento de esperança: a dois, talvez fosse mais fácil atravessar aquele dia. Mas, com semelhante criatura, só aparentemente é que se vive a dois.
O Autodidata bateu num in-quarto. Era uma História das Religiões. «Ninguém mais indicado que Nouçapié para se lançar nesta vasta síntese. O senhor não acha?»
Tinha um ar cansado e tremiam-lhe as mãos.
«O senhor está com má cara», disse-lhe eu.
«Não admira! É que estou metido numa história abominável.»
O fiscal veio na nossa direcção: é um corso baixinho, irascível, com um bigode desmedido. Passeia horas inteiras entre as mesas, batendo com os calcanhares. No Inverno, cospe nos lenços e põe-nos a secar sobre o fogão de aquecimento.
O Autodidata aproximou-se tanto que senti na cara o sopro da sua respiração.
«Não quero dizer-lhe diante deste homem», preveniu num jeito de confidência. «Se o senhor quisesse...»
«O quê?» Corou e ondearam-lhe as ancas graciosamente: «É muito atrevimento da minha parte. Mas... o senhor aceitaria almoçar comigo na quarta-feira?» «Com muito gosto.»
Tinha tanta vontade de ir almoçar com ele como de me enforcar. «Dá-me muito prazer em aceitar», disse o Autodidata. Acrescentou rapidamente: «Se não se importa, vou buscá-lo a casa», e desapareceu, com medo, certamente, de que, se me desse tempo, eu mudasse de opinião.


Peguei na caneta e tentei pôr-me de novo a trabalhar; estava farto, até à raiz dos cabelos, de meditações sobre o passado, sobre o presente, sobre o mundo. Só pedia uma coisa: que me deixassem acabar o meu livro em paz. Mas, quando o meu olhar incidia sobre o caderno de folhas brancas, impressionou-me o seu aspeto e fiquei, de caneta no ar, a contemplar esse papel deslumbrante: como era rijo e vistoso, como estava presente! Não havia nada nele que não fosse presente. As letras, que eu acabava de lá traçar, ainda não tinham secado e já não me pertenciam.
Caí pela escada abaixo subitamente,
E até o som de cair era a gargalhada da queda.
Cada degrau era a testemunha importuna e dura
Do ridículo que fiz de mim.


Cheguei hoje, de repente, a uma sensação absurda e justa. Reparei, num relâmpago íntimo, que não sou ninguém. Ninguém, absolutamente ninguém. (...) Sou os arredores de uma vila que não há, o comentário prolixo a um livro que se não escreveu. Não sou ninguém, ninguém. Não sei sentir, não sei pensar, não sei querer. Sou uma figura de romance por escrever, passando aérea, e desfeita sem ter sido, entre os sonhos de quem me não soube completar. Penso sempre,sinto sempre; mas o meu pensamento não contém raciocínios, a minha emoção não contém emoções. Estou caindo, depois do alçapão lá em cima, por todo o espaço infinito, numa queda sem direcção, infinitupla e vazia. Minha alma é um maelstrom negro, vasta vertigem à roda de vácuo, movimento de um oceano infinito em torno de um buraco em nada, e nas águas que são mais giro que águas bóiam todas as imagens do que vi e ouvi no mundo - vão casas, caras, livros, caixotes, rastros de música e sílabas de vozes, num rodopio sinistro e sem fundo. E eu, verdadeiramente eu, sou o centro que não há nisto senão por uma geometria do abismo; sou o nada em torno do qual este movimento gira, só para que gire, sem que esse centro exista senão porque todo o círculo o tem. Eu, verdadeiramente eu, sou o poço sem muros, mas com a viscosidade dos muros, o centro de tudo com o nada à roda.

O bêbado caía de bêbado
E eu, que passava,
Não o ajudei, pois caía de bêbado,
E eu só passava.
O bêbado caiu de bêbado
No meio da rua.
E eu não me voltei, mas ouvi. Eu bêbado
E a sua queda na rua.
O bêbado caiu de bêbado
Na rua da vida.


A queda mais terrível, a mais humilhante que alguém pode experimentar, é sentir ciúmes. Sentir ciúmes é o reconhecimento da nossa inferioridade... Desejar a morte de alguém todos já desejámos, quanto mais não fosse matar a porteira para ser notícia de jornal...São desejos perversos que até dignificam: ter ciúmes é a inferioridade em estado bruto...Gosto, particularmente, do modo como bernardo soares não sente ciúmes...

Há um vago número de muitos meses que me vê olhá-la constantemente, sempre com o mesmo olhar incerto e solícito. Eu sei que tem reparado nisso. E como tem reparado, deve ter achado estranho que esse olhar, não sendo propriamente tímido, nunca esboçasse uma significação. Sempre atento, vago e o mesmo, como que contente de ser só a tristeza disso... Mais nada... E dentro do seu pensar nisso — seja o sentimento qual seja com que tem pensado em mim — deve ter perscrutado as minhas possíveis intenções. Deve ter explicado a si própria, sem se satisfazer, que eu sou ou um tímido especial e original, ou uma qualquer espécie de qualquer coisa aparentado com o ser louco. Eu não sou, minha Senhora, perante o facto de olhá-la, nem estritamente um tímido, nem assentemente um louco. Sou outra coisa primeira e diversa, como, sem esperança de que me creia, lhe vou expor. Quantas vezes eu segredava ao seu ser sonhado: faça o seu dever de ânfora inútil, cumpra o seu mister de mera taça.
Com que saudade da ideia que quis forjar-me de si eu percebi um dia que era casada! O dia em que percebi isso foi trágico na minha vida. Não tive ciúmes do seu marido. Nunca pensei se acaso o tinha. Tive simplesmente saudades da minha ideia de si. Se eu um dia soubesse este absurdo — que uma mulher num quadro — sim essa — era casada, a mesma seria a minha dor.
Possuí-la? Eu não sei como isso se faz. E mesmo que tivesse sobre mim a mancha humana de sabê-lo, que infame eu não seria para mim próprio, que insultador agente de minha própria grandeza, ao pensar sequer em nivelar-me com o seu marido!
Possuí-la? Um dia que acaso passe sozinha numa rua escura, um assaltante pode subjugá-la e possuí-la, pode fecundá-la até e deixar atrás de si esse rasto uterino. Se possuí-la é possuir-lhe o corpo que valor há nisso? Que não lhe possui a alma?... Como é que se possui uma alma? E pode haver um hábil e amoroso que consiga possuir-lhe essa «alma». (...) Que seja o seu marido esse... Queria que eu descesse ao nível dele? Quantas horas tenho passado em convívio secreto com a ideia de si! Temo-nos amado tanto, dentro dos meus sonhos? Mas mesmo aí, eu lhe juro, nunca me sonhei possuindo-a. Sou um delicado e um casto mesmo nos meus sonhos. Respeito até a ideia de uma mulher bela.


Dois, três dias de semelhança de princípio de amor... Tudo isto vale para o esteta pelas sensações que lhe causa. Avançar seria entrar no domínio onde começa o ciúme, o sofrimento, a excitação. Nesta antecâmara da emoção há toda a suavidade do amor sem a sua profundeza — um gozo leve, portanto, aroma vago de desejos, se com isso se perde a grandeza que há na tragédia do amor, repare-se que, para o esteta, as tragédias são coisas interessantes de observar, mas incómodas de sofrer. O próprio cultivo da imaginação é prejudicado pelo da vida. Reina quem não está entre os vulgares. Afinal, isto bem me contentaria, se eu conseguisse persuadir-me que esta teoria não é o que é, um complexo barulho que faço aos ouvidos da minha inteligência, quase para ela não perceber que, no fundo, não há senão a minha timidez, a minha incompetência para a vida.

Cair subitamente em momentos do passado, uma queda diferente...

Quase nada.Como que uma picada de inseto que a princípio parece muito leve.

Sonhara muitas vezes, em tardes de solidão , que o telefone tocava e que uma voz doce lhe marcava um encontro... Mas a voz de há pouco não lhe inspirara confiança. Simultaneamente indolente e ameaçadora, essa voz.

Aqui, tudo se passara suavemente,uma agenda perdida, vozes ao telefone, um encontro num café...Sim, tudo tinha a leveza de um sonho. E as páginas do dossier também lhe tinham provocado uma sensação estranha: por causa de certos nomes...e de todas aquela palavras encavalitadas umas nas outras, sem duplo espaço entre linhas, encontrava-se bruscamente em presença de certos pormenores da sua vida, mas refletidos num espelho deformante, pormenores incongruentes que nos perseguem nas noites de insónia.

Cair nos braços de alguém é uma queda de uma mediania deprimente...Tal como ter queda para isto ou para aquilo...


I wanna write her, her name in the sky I wanna free fall out into nothin' Oh, I'm gonna leave this world for a while Now I'm free, free fallin', fallin' Free fallin', fallin...

aqui vou eu dedicado à queda como alguém se dedica a cantar ou a construir, não percebo o que fiz, estou metade irritado, estou a planear uma acção paranóica..

A novela inacabada,
Que o meu sonho completou,
Não era de rei ou fada
Mas era de quem não sou.
Para além do que dizia
Dizia eu quem não era...
Lenda do sonho que vivo,
Perdida por a salvar...
Mas quem me arrancou o livro
Que eu quis ter sem acabar?


.. e tudo é uma doença incurável. A ociosidade de sentir o desgosto de ter de não saber fazer nada, a incapacidade de agir.

...e um profundo e tediento desdém por todos quantos trabalham para a humanidade, por todos quantos se batem pela pátria e dão a sua vida para que a civilização continue......um desdém cheio de tédio por eles, que desconhecem que a única realidade para cada um é a sua própria alma, e o resto — o mundo exterior e os outros — um pesadelo inestético, como um resultado nos sonhos de uma indigestão de espírito. A minha aversão pelo esforço excita-se até ao horror quase gesticulante perante todas as formas do esforço violento. E a guerra, o trabalho produtivo e enérgico, o auxílio aos outros (...) tudo isto não me parece mais que o produto de um impudor, (...) E, perante, a realidade suprema da minha alma, tudo o que é útil e exterior me sabe a frívolo e trivial ante a soberana e pura grandeza de meus mais vivos e frequentes sonhos. Esses, para mim, são mais reais...

Pai nosso que estás nos céus, santificado seja o Vosso nome. Venha a nós o Vosso Reino. Seja feita a Vossa vontade, assim na Terra como no Céu. O pão nosso de cada dia nos dai hoje. Perdoai as nossas ofensas assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido. E não nos deixeis cair em tentação, mas livrai-nos do mal. Ámen.

Não há que crer que os homens, a quem estes desastres acontecem, e outros desastres como estes, houvessem sido pouco sinceros nas coisas que disseram, ou que escreveram, e em cuja substância esses desastres eram previsíveis ou certos. Nada tem a sinceridade da afirmação inteligente com a naturalidade da emoção espontânea. E isto parece poder ser assim, a alma parece poder assim ter surpresas, só para que a dor lhe não falte, o opróbio não deixe de lhe caber, a mágoa não lhe escasseie como quinhão igualitário na vida. Todos somos iguais na capacidade para o erro e para o sofrimento. Só não passa quem não sente; e os mais altos, os mais nobres, os mais previdentes, são os que vêm a passar e a sofrer do que previam e do que desdenhavam. É a isto que se chama a Vida.

Só o ter flores pela vista fora
Nas áleas largas dos jardins exactos
Basta para podermos
Achar a vida leve.
De todo o esforço seguremos quedas
As mãos. brincando, pra que nos não tome
Do pulso, e nos arraste.
E vivamos assim.
Buscando o mínimo de dor ou gozo,
Bebendo a goles os instantes frescos,
Translúcidos como água
Em taças detalhadas,
Da vida pálida levando apenas
As rosas breves, os sorrisos vagos,
E as rápidas caricias
Dos instantes volúveis.


Queda...Um "apontamento" inevitável: A minha alma partiu-se como um vaso vazio. Caiu pela escada excessivamente abaixo. Caiu das mãos da criada descuidada. Caiu, fez-se em mais pedaços do que havia loiça no vaso.

O silêncio que sai do som da chuva espalha-se, num crescendo de monotonia cinzenta, pela rua estreita que fito. Estou dormindo desperto, de pé contra a vidraça, a que me encosto como a tudo. Procuro em mim que sensações são as que tenho perante este cair esfiado de água sombriamente luminosa que [se] destaca das fachadas sujas e, ainda mais, das janelas abertas. E não sei o que sinto, não sei o que quero sentir, não sei o que penso nem o que sou.Toda a amargura retardada da minha vida despe, aos meus olhos sem sensação, o traje de alegria natural de que usa nos acasos prolongados de todos os dias. Verifico que, tantas vezes alegre tantas vezes contente, estou sempre triste. E o que em mim verifica isto está por detrás de mim, como que se debruça sobre o meu encostado à janela, e, por sobre os meus ombros, ou até a minha cabeça, fita, com olhos mais íntimos que os meus, a chuva lenta, um pouco ondulada já, que filigrana de movimento o ar pardo e mau. Abandonar todos os deveres, ainda os que nos não exigem, repudiar todos os lares, ainda os que não foram nossos, viver do impreciso e do vestígio, entre grandes púrpuras de loucura, e rendas falsas de majestades sonhadas... Ser qualquer coisa que não sinta o pesar de chuva externa, nem a mágoa da vacuidade íntima... Errar sem alma nem pensamento, sensação sem si-mesma, por estrada contornando montanhas, por vales sumidos entre encostas íngremes, longínquo, imerso e fatal... Perder-se entre paisagens como quadros. Não-ser a longe e cores...
Mas não há sossego — ah, nem o haverá nunca! — no fundo do meu coração, poço velho ao fim da quinta vendida, memória de infância fechada a pó no sótão da casa alheia. Não há sossego — e, ai de mim!, nem sequer há desejo de o ter..
.

Não sei como tudo começou: suponho
que havia uma figura que depois
se estilhaçou para formar um puzzle.
Mas se juntarem todas as peças
talvez não haja nenhuma figura, e então
de que origem intacta partiu tudo
o que depois se quebrou? É impossível
fazer estilhaços de estilhaços sem uma
coerência primeira, agora ausente.
Quando todas as peças se juntam
estaremos reduzidos ainda a uma peça
de uma figura maior, ou essa figura
é uma utopia pragmática, instrumental,
que permite algum sentido ?
Ó significados, para vós, na infância, tinha um caderno.


é preciso fazer a queda como se faz uma casa-, é uma construção, não é um desastre um acidente uma distracção, a queda é um acontecimento para levar a sério... sem excitação ou desejo nem uma queda existiria no mundo,é o que me parece, ámen

o tempo do combate é o tempo da queda, aqui vou eu dedicado à queda como alguém se dedica a cantar ou a construir, não percebo o que fiz, estou metade irritado, estou a planear uma acção paranóica...

aqui vou eu dedicado à queda como alguém se dedica a cantar ou a construir, não percebo o que fiz, estou metade irritado, estou a planear uma acção paranóica...

Never regret thy fall,
O Icarus of the fearless flight
For the greatest tragedy of them all
Is never to feel the burning light...


A vida ri-se das probabilidades e põe palavras onde imaginamos silêncios e súbitos regressos quando pensávamos que não nos voltaríamos a encontrar. O que significa definitivamente? É muito tempo?

E tudo é uma doença incurável. A ociosidade de sentir o desgosto de ter de não saber fazer nada, a incapacidade de agir...



Contudo, contudo,
Também houve gládios e flâmulas de cores
Na Primavera do que sonhei de mim.
Também a esperança
Orvalhou os campos da minha visão involuntária,
Também tive quem também me sorrisse.
Hoje estou como se esse tivesse sido outro.
Quem fui não me lembra senão como uma história apensa.
Quem serei não me interessa, como o futuro do mundo.
Caí pela escada abaixo subitamente,
E até o som de cair era a gargalhada da queda.
Cada degrau era a testemunha importuna e dura
Do ridículo que fiz de mim.(...)
Eu que me aguente comigo e com os comigos de mim.


Life is a fear of falling Life is a fear of falling through All the cracks... You fall wonderfully If I question everything you say Another answer crumbles the birth of my day It's when you were hereYou, calling out a name You, swimming to me through a dream




Não amaremos talvez insuficientemente a vida? Já notou que só a morte desperta os nossos sentimentos? Como amamos os amigos que acabam de deixar-nos, não acha?! Como admiramos os nossos mestres que já não falam, com a boca cheia de terra! A homenagem surge, então, muito naturalmente, essa mesma homenagem que talvez eles tivessem esperado de nós, durante a vida inteira. Mas sabe porque nós somos sempre mais justos e mais generosos para com os mortos? A razão é simples! Para com eles, já não há deveres.
Para mim, nem sequer o dever de ir ao funeral...
Um morto no prelo, e o espectáculo começa, finalmente. Têm necessidade de tragédia, que é que o senhor quer?, é a sua pequena transcendência, é o seu aperitivo.



A Queda
E eu que sou o rei de toda esta incoerência, Eu próprio turbilhão, anseio por fixá-la E giro até partir... Mas tudo me resvala Em bruma e sonolência. Se acaso em minhas mãos fica um pedaço de ouro, Volve-se logo falso... ao longe o arremesso... Eu morro de desdém em frente dum tesouro, Morro á mingua, de excesso. Alteio-me na cor à força de quebranto, Estendo os braços de alma - e nem um espasmo venço!...Peneiro-me na sombra - em nada me condenso... Agonias de luz eu vibro ainda entanto. Não me pude vencer, mas posso-me esmagar, - Vencer às vezes é o mesmo que tombar - E como inda sou luz, num grande retrocesso, Em raivas ideais, ascendo até ao fim: Olho do alto o gelo, ao gelo me arremesso... Tombei... E fico só esmagado sobre mim!...


Calisto Elói de Silos e Benevides de Barbuda, morgado da Agra de Freimas,tem hoje quarenta e nove anos, por ter nascido em 1815, na aldeia de Caçarelhos, termo de Miranda.
O seu pai, também Calisto, era cavaleiro fidalgo com filhamento, e décimo sexto varão dos Barbudas da Agra. A sua mãe, D. Basilissa Escolástica, procedia dos Silos, altas dignidades da Igreja, comendatários, sangue limpo, já bom sangue no tempo do Sr. rei D. Afonso I, fundador de Miranda. Fez seus estudos de latinidade no seminário bracarense o filho único do morgado da Agra de Freimas, destinando-se a doutoramento in utroque jure. Porém, como quer que o pai lhe falecesse, e a mãe contrariasse a projetada formatura, em razão de ficar sozinha no solar de Caçarelhos, Calisto, como bom filho, renunciou à carreira das letras, deu-se ao governo do casal algum tanto, e muito à leitura de copiosa livraria, parte do seus avós paternos, e a maior dos doutores em cânones, cónegos, desembargadores do eclesiástico, catedráticos, chantres, arcediagos e bispos, parentela ilustríssima da sua mãe. Casou o morgado, ao tocar pelos vinte anos, com a sua segunda prima D. Teodora Barbuda de Figueiroa, morgada de Travanca, senhora de raro aviso, muito apontada em amanho de casa, ignorante mais que o necessário para ter juízo.

And dissolve into the fall Of things new, of things gone To remind our restless souls Of the beauty of being here at all...


[PRÍNCIPE] – Todo este universo é um livro em que cada um de nós é uma frase. Nenhum de nós, por si mesmo, faz mais que um pequeno sentido, ou uma parte de sentido; só no conjunto do que se diz se percebe o que cada um verdadeiramente quer dizer. Uns são frases que como se erguem do texto a determinar o sentido de todo um capítulo, ou de toda uma intenção, e a esses denominamos génios; outros são simples palavras, contendo uma frase em si mesmas, ou adjectivos definindo grandemente, destacadas aqui ou ali, mas sem dizer o que importa ao conjunto, e são esses os homens de talento; uns são as frases de pergunta e resposta, pelas quais se forma a vida do diálogo, e esses são os homens de acção; outros são frases que aliviam o diálogo, tornando-o lento para depois se sentir mais rápido, pontuações verbais do discurso, e esses são os homens de inteligência. A maioria são as frases feitas, quase iguais umas às outras, sem cor nem relevo, que servem todavia de ligar as intenções das metáforas, de estabelecer a continuidade do discurso, de permitir que os relevos tenham relevo, existindo, aparentemente, só para que esses possam existir. De resto, não somos nós feitos, como a frase, de palavras comuns (e estas de sílabas simples) de substância constante, diversamente misturada, da humanidade vulgar? Não é o nosso amor o amor de todos e o nosso choro as lágrimas em si mesmas? Mas cada um de nós ama e chora ele, que não outro: há um objectivo de dentro que o indefine (dissolve) e determina.
Isto que te estou dizendo é sem dúvida delírio, porque não sei por que te o digo; mas, porque o digo sem saber, é também sem dúvida verdade.
E as figuras de xadrez e as das cartas de jogar ou advinhar — seremos nós mais que elas onde a vida é vida?
Quando eu era menino beijava-me nos espelhos: era um sinal antecipado de que nunca haveria de amar. Tinha por mim, em adivinha de negação, a ternura que me nunca haveria de ser dada.


Cheguei hoje, de repente, a uma sensação absurda e justa. Reparei, num relâmpago íntimo, que não sou ninguém. Ninguém, absolutamente ninguém. Quando brilhou o relâmpago, aquilo onde supus uma cidade era um plaino deserto; e a luz sinistra que me mostrou a mim não revelou céu acima dele. Roubaram-me o poder ser antes que o mundo fosse. Se tive que reencarnar, reencarnei sem mim, sem ter eu reencarnado. Sou os arredores de uma vila que não há, o comentário prolixo a um livro que se não escreveu. Não sou ninguém, ninguém. Não sei sentir, não sei pensar, não sei querer. Sou uma figura de romance por escrever, passando aérea, e desfeita sem ter sido, entre os sonhos de quem me não soube completar. Penso sempre, sinto sempre; mas o meu pensamento não contém raciocínios, a minha emoção não contém emoções. Estou caindo, depois do alçapão lá em cima, por todo o espaço infinito, numa queda sem direcção, infinitupla e vazia. Minha alma é um maelstrom negro, vasta vertigem à roda de vácuo, movimento de um oceano infinito em torno de um buraco em nada, e nas águas que são mais giro que águas bóiam todas as imagens do que vi e ouvi no mundo - vão casas, caras, livros, caixotes, rastros de música e sílabas de vozes, num rodopio sinistro e sem fundo.



Da minha ideia do mundo
Caí...
Vácuo além de profundo,
Sem ter Eu nem Ali...
Vácuo sem si-próprio, caos
De ser pensado como ser. .
Escada absoluta sem degraus..
Visão que se não pode ver
Além-Deus! Além-Deus! Negra calma...
Clarão de Desconhecido...
Tudo tem outro sentido, ó alma,
Mesmo o ter-um-sentido.


Uma "queda" de fernando pessoa que caiu no esquecimento, pois o orpheu 3 não chegou a ser publicado...



I ain't different from nobody and I just can't take no more I've got to leave where I'm going I don't know I've got to leave where I'm going I just don't know... And I've had so much trouble I'm out of reach I can't take no more...

Ah, mas já nem posso Amaldiçoar. O Bem e o Mal são Formas de erro. Nem amaldiçoar! Ah o horror, o horror sinto ao vazio À roda de mim. Eu já não posso Amaldiçoar, nem ora dirigir-me A potências ou forças, pois já sei Que a verdade está além do concebível... Ah, horror supremo. Nem crer, nem descrer, Nem rir, nem chorar, morte nem vidaDesejar. (Vê um frasco em cima da mesa) Ah dormir, talvez dormindo Esqueça tudo (Tira o frasco e deita com cuidado) Não haja eu, que em (horror) Dormir cuidando, fosse atingir O temido eterno sono! Só a ideia... Não mais. Basta. Está bem. Bebamos. (Bebe. Cambaleia. Vai à cadeira e aí cai inerte, sentado inclinado para trás)

Que náusea de vida!
Que abjecção esta regularidade!
Que sono este ser assim!




Náusea. Vontade de nada.
Existir por não morrer.
Como as casas têm fachada,
Tenho este modo de ser.

Náusea. Vontade de nada.
Sento-me à beira da estrada.
Cansado já do caminho
Passo pra o lugar vizinho.

Mais náusea. Nada me pesa
Senão a vontade presa
Do que deixei de pensar
Como quem fica a olhar..


Nada me comove que se diga de um homem que tenho por louco ou néscio, que supera a um homem vulgar em muitos casos e conseguimentos da vida. Os epilépticos são, na crise, fortíssimos; os paranóicos raciocinam como poucos homens normais conseguem discorrer; os delirantes com mania religiosa agregam multidões de crentes como poucos (se alguns) demagogos as agregam, e com uma força íntima que estes não logram dar aos seus sequazes. E isto tudo não prova senão que a loucura é loucura.Prefiro a derrota com o conhecimento da beleza das flores que a vitória no meio dos desertos, cheia de cegueira da alma a sós com a sua nulidade separada. Que de vezes o próprio sonho fútil me deixa um horror à vida interior, uma náusea física dos misticismos e das contemplações. Com que pressa corro de casa, onde assim sonhe, ao escritório; e vejo a cara do Moreira como se chegasse finalmente a um porto. Considerando bem tudo, prefiro o Moreira ao mundo astral; prefiro a realidade à verdade;(...) Sonho porque sonho, mas não sofro o insulto próprio de dar aos sonhos outro valor que não o de serem o meu teatro íntimo, como não dou ao vinho, de que todavia me não abstenho, o nome de alimento ou de necessidade da vida.

Ah, onde estou ou onde passo, ou onde não estou nem passo,
A banalidade devorante das caras de toda a gente!
Ah, a angústia insuportável de gente!
O cansaço inconvertível de ver e ouvir!
(Murmúrio outrora de regatos próprios, de arvoredo meu).
Queria vomitar o que vi, só da náusea de o ter visto,
Estômago da alma alvorotado de eu ser...


Tenho náusea carnal do meu destino. Quase me cansa me cansar... Náusea. Vontade de nada. Que náusea de vida...

Às vezes, quando ergo a cabeça estonteada dos livros em que escrevo as contas alheias e a ausência de vida própria, sinto uma náusea física, que pode ser de me curvar, mas que transcende os números e a desilusão. A vida desgosta-me como um remédio inútil. E é então que eu sinto com visões claras como seria fácil o afastamento deste tédio se eu tivesse a simples força de o querer deveras afastar.

De todo o conseguimento quantitativo desta vida sem qualidade, A náusea de ser contemporâneo de mim mesmo E a ânsia de novo novo, de certo verdadeiro, De fonte, de começo, de origem.
Que fiz eu da vida?
Que fiz eu do que queria fazer da vida?
Que fiz do que podia ter feito da vida?
Serei eu como tu, ó viajante do Anel Anafrodisíaco?
Olho-te sem te distinguir da matéria amorfa das coisas
E rio no fundo do meu pensamento oceânico e vazio.


Há sensações que são sonos, que ocupam como uma névoa toda a extensão do espírito, que não deixam pensar que não deixam agir, que não deixam claramente ser. Como se não tivessemos dormido, sobrevive em nós qualquer coisa de sonho, e há um torpor do sol do dia a aquecer a superfície estagnada dos sentidos. É uma bebedeira de não ser nada, e a vontade é um balde despejado para o quintal por um movimento indolente do pé à passagem. Olha-se mas não se vê. (...) Não é tédio o que se sente. Não é mágoa o que se sente. É uma vontade de dormir com outra personalidade, e esquecer com melhoria de vencimento. Não se sente nada, a não ser um automatismo cá em baixo, a fazer umas pernas que nos pertencem levar a bater no chão, na marcha involuntária, uns pés que se sentem dentro dos sapatos. Nem isto se sente talvez. À roda dos olhos e como dedos nos ouvidos há um aperto de dentro da cabeça. Parece uma constipação na alma. E com a imagem literária de se estar doente nasce um desejo de que a vida fosse uma convalescença, sem andar; e a ideia de convalescença evoca as quintas dos arredores, mas lá para dentro, onde são lares, longe da rua e das rodas. Sim, não se sente nada.(...) Pobres das esperanças que tenho tido, saídas da vida que tenho tido de ter! São como esta hora e este ar, névoas sem névoa, alinhavos rotos de tormenta falsa. Tenho vontade de gritar, para acabar com a paisagem e a meditação. Mas há maresia no meu propósito, e a baixa-mar em mim deixou descoberto o negrume lodoso que está ali fora e não vejo senão pelo cheiro. Tanta inconsequência em querer bastar-me! Tanta consciência sarcástica das sensações supostas! Tanto enredo da alma com as sensações, dos pensamentos com.o ar e o rio, para dizer que me dói a vida no olfacto e na consciência, para não saber dizer, como na frase simples e ampla do Livro de Job «Minha alma está cansada de minha vida!»

Hoje que tudo me falta, como se fosse o chão, Que me conheço atrozmente, que toda a literatura Que uso de mim para mim, para ter consciência de mim, caiu, como o papel que embrulhou um rebuçado mau — Hoje tenho uma alma parecida com a morte dos nervos Necrose da alma, Apodrecimento dos sentidos.
Tudo quanto tenho feito conheço-o claramente: é nada.
Tudo quanto sonhei, podia tê-lo sonhado o moço de fretes.
Tudo quanto amei, se hoje me lembro que o amei, morreu há muito.
Nem altos nem baixos — consciência de nem sequer a ter...Papelotes da velha solteira — toda a minha vida. Tenho uma náusea do estômago nos pulmões. Custa-me a respirar para sustentar a alma.(...)


Tenho a náusea física da humanidade vulgar, que é, aliás, a única que há. E capricho, às vezes, em aprofundar essa náusea, como se pode provocar um vómito para aliviar a vontade de vomitar.

Levanto-me de chofre: se pelo menos já pudesse parar de pensar, já seria melhor. Os pensamentos são o que há de mais insípido. Mais insípido ainda do que a carne. Prolongam-se interminavelmente e deixam um gosto esquisito. E depois, dentro dos pensamentos, há as palavras, as palavras inacabadas, os esboços das frases que retornam constantemente: "Tenho que termi... Eu ex... Morr... O Sr. de Roll morreu... Não estou... Eu ex..." Isso continua, continua e não termina nunca. É pior que o resto porque me sinto responsável e cúmplice. Por exemplo, essa espécie de ruminação dolorosa: existo - sou eu que a alimento. Eu. O corpo vive sozinho, uma vez que começou a viver. Mas o pensamento, sou eu que continuo, que o desenvolvo. Existo. Penso que existo. Oh! Que serpentina comprida esse sentimento de existir - e eu a desenrolo muito lentamente... Se pudesse me impedir de pensar! Tento, consigo: parece-me que minha cabeça se enche de fumaça... e eis que tudo recomeça: "Fumaça... Não pensar... Não quero pensar... Penso que não quero pensar... Não devo pensar que não quero pensar. Porque isso também é um pensamento." Será que não termina nunca?
Meu pensamento sou eu: eis por que não posso parar. Existo porque penso... e não posso me impedir de pensar. Nesse exato momento - é terrível - se existo é porque tenho horror a existir. Sou eu, sou que me extraio do nada a que aspiro: o ódio, a repugnância de existir são outras maneiras de me fazer existir, de me embrenhar na existência. Os pensamentos nascem por trás de mim como uma vertigem, sinto-os nascer atrás de minha cabeça... se cedo, virão para a frente, aqui entre meus olhos - e sempre cedo, o pensamento cresce, cresce e fica imenso, me enchendo por inteiro e renovando a minha existência (...)
A palavra 'Absurdo' surge agora sob minha caneta; há pouco no jardim não a encontrei, mas também não a procurava, não precisava dela: pensava sem palavras, sobre as coisas, com as coisas. O absurdo não era uma ideia em minha cabeça, nem um sopro de voz, mas sim aquela longa serpente morta aos meus pés, aquela serpente de lenho. Serpente ou garra, ou raiz, ou gafa de abutre, pouco importa. E sem formular claramente nada, compreendi que havia encontrado a chave da Existência, a chave de minhas Náuseas, de minha própria vida. De fato, tudo o que pude captar a seguir liga-se a esse absurdo fundamental. Absurdo: aind auma palavra; debato-me com as palavras; Já eu tocava a coisa. Mas desejaria fixar aqui o caráter absoluto desse absurdo. Um gesto, um acontecimento no pequeno mundo colorido dos homens sempre é apenas relativamente absurdo: em relação às circunstâncias qu o acompanham. Os discursos de um louco, por exemplo, são absurdos em relação à situação em que este se encontra, mas não em relação ao seu delírio. Mas eu, ainda agora, tive a experiência do absoluto: o absoluto ou o absurdo."

O meu pensamento sou eu: eis por que não posso parar. Existo porque penso... e não me posso impedir de pensar. Nesse exato momento - é terrível - se existo é porque tenho horror a existir. Sou eu, sou eu que me extraio do nada a que aspiro: o ódio, a repugnância de existir são outras maneiras de me fazer existir, de me embrenhar na existência. Os pensamentos nascem por trás de mim como uma vertigem, sinto-os nascer atrás da minha cabeça... se cedo, virão para a frente, aqui entre os meus olhos - e sempre cedo, o pensamento cresce, cresce e fica imenso, enchendo-me por inteiro...


Tenho vergonha pelo senhor Achille. Somos da mesma espécie, devíamos formar bloco contra eles. Mas o senhor Achille deixou-me, passou-se para o outro lado: acredita honestamente na experiência. Não na dele, nem na minha: na do doutor Rogé. Há bocado sentia-se esquisito, tinha a impressão de estar muito só; agora sabe que há outros no seu género, muitos outros: o doutor Rogé encontrou-os, poderia contar-lhe a história de cada um deles, e dizer-lhe como é que ela acabava. O senhor Achille é um caso simplesmente, e que se deixa com facilidade reduzir a algumas noções comuns. Como gostava de lhe dizer que o estão a enganar, que ele se deixa ir no jogo dos importantes. Profissionais da experiência? Pessoas que levaram a vida num torpor, meio a dormir; que se casaram precipitadamente, por impaciência, e fizeram filhos por acaso. Encontraram os outros homens nos cafés, nos casamentos, nos enterros. De vez em quando, apanhadas por um remoinho, debateram-se sem compreender o que lhes sucedia. Tudo quanto se passou à roda delas começou e acabou fora da sua vista; longas formas escuras, acontecimentos que vinham de longe, roçaram por elas rapidamente e, quando elas quiseram olhar, já tudo acabara. E depois, pelos quarenta anos, baptizam a sua obstinaçõezinhas e alguns provérbios com o nome de experiência, começam a fazer de distribuidores automáticos: dois vinténs na ranhura da esquerda, e saem anedotas embrulhadas em papel de prata; dois vinténs na ranhura da direita, e recebem-se preciosos conselhos, que se pegam aos dentes como pasta de caramelo.[...]

Gosto imenso de apanhar do chão castanhas, trapos velhos, principalmente papéis. Sinto prazer em pegar neles, em fechá-los na mão; pouco falta para os levar à boca como fazem as crianças. Anny ficava furiosa quando me via levantar por uma ponta bocados de papel pesados e sumptuosos, mas provavelmente sujos de trampa. No Verão ou no começo do Outono encontram-se nos jardins pedaços de jornal que o sol crestou, secos e quebradiços como folhas caídas, tão amarelos que os diriam passados por ácido pícrico. Outras páginas, no Inverno, aparecem pisadas, trituradas, maculadas, voltam à terra. Outras, novinhas e, às vezes, lustrosas, muito brancas, palpitantes, assentam no chão como cisnes, mas já a terra, por baixo, as vai atolando. Torcem-se, arrancam-se da lama, mas é para se irem estatelar um pouco mais longe, definitivamente. Tudo isso dá prazer apanhar. Às vezes limito-me a tatear essas folhas, olhando-as de muito perto, outras vezes rasgo-as para lhes ouvir o largo crepitar, ou então, se estão muito húmidas, deito-lhes fogo, o que tem a sua dificuldade; depois limpo a palma das mãos cheias de lama a uma parede ou ao tronco duma árvore.
Ora bem, hoje pusera-me eu a olhar para as botas fulvas dum oficial de cavalaria que vinha a sair do quartel. Ao segui-las com os olhos, vi um papel que estava caído ao lado duma poça. Julguei que o oficial, com o calcanhar, fosse enterrar o papel na lama, mas não: dum passo só, ultrapassou o papel e a poça. Aproximei-me: era uma página de papel pautado arrancada certamente de um caderno escolar. A chuva tinha-a repassado e retorcido; estava cheia de bolhas e de tumefacções, como uma mão queimada. O traço vermelho da margem desbotara, tornando-se uma humidade cor-de-rosa; em alguns sítios a tinta tinha escorrido. A parte de baixo da página estava escondida sob uma crosta de lama. Abaixei-me; já sentia o prazer de mexer naquela massa tenra e fresca que me rolaria entre os dedos em bolinhas cinzentas... Não pude.
Fiquei curvado um segundo; ainda li: «Ditado – O Mocho Branco»; depois endireitei-me, de braços caídos. Já não sou livre, já não posso fazer o que quero.




É então isto a Náusea, esta ofuscante evidência? As voltas que dei à cabeça. Tanto que escrevi acerca dela! Agora sei: existo - o mundo existe - e sei que o mundo existe. É tudo. Mas é-me indiferente. É estranho que tudo me seja indiferente: mete-me medo que assim seja. Foi a partir do célebre dia em que quis fazer ricochete com uma pedra na água. Ia lançá-la, olhei para ela, e foi então que tudo começou: senti que a pedra existia. E depois, a partir de então, houve outras Náuseas; de vez em quando os objectos põem-se a existir na nossa mão.

Mas lá chegaria o momento em que o livro estivesse escrito, ficasse atrás de mim, e acho que um pouco da sua claridade cairia sobre o meu passado. Talvez então eu pudesse, através dele, recordar a minha vida sem repugnância. Talvez um dia, pensando precisamente nesta hora, nesta hora sombria em que estou à espera, de costas curvadas, que sejam horas de saltar para o comboio, talvez sentisse bater-me mais depressa o coração e dissesse para comigo: «Foi nesse dia, a essa hora, que tudo começou.» E assim chegaria a aceitar-me - no passado, apenas no passado.

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