Não é neccessário vivermos ao lado de alguém para nos sentirmos ligados a esse alguém mais do que a qualquer outra pessoa...

domingo, 26 de agosto de 2018

Encontros...Desencontros... Reencontros

“Ninguém imagina Miguel Ângelo a fazer uma pincelada, depois a responder a um email e voltar outra vez à pintura. Os artistas passavam semanas fechados num compartimento, sem falar com ninguém, só saíam para comprar comida, sem largar o seu objecto. Há obras de arte que só podem aparecer se uma pessoa estiver uma, duas, três, quatro, cinco horas em frente delas, sem mudar a sua atenção para outro lado. E este tempo prolongado com o mesmo objecto, concentrado, é qualquer coisa que as tecnologias e o mundo contemporâneo estão a perturbar.” … “se um artesão está a fazer um objecto e de dois em dois minutos levanta a cabeça há uma dispersão.”

A propósito de Heidegger, Steiner escreve. "Precisamos de dar mais assistência ao pensamento." (1) Esta assistência, esta atenção cuidadosa pode ser interpretada como a atenção que se tem em relação a um ferido e, sendo assim, é quase comovente: não tires os olhos do pensamento; ele precisa de ti. Eis o que cada um de nós poderia dizer. E neste pensamento há uma marca que permite o avanço; a "fonte do pensamento genuíno é o espanto, espanto por, e perante o ser. O seu desenvolvimento é essa cuidada tradução do espanto em acção que é o questionar"(2), escreve Steiner. Questionar "é a tradução do espanto em acção". Não basta, pois, o espanto imóvel, o espanto contemplativo, precisamos de um espanto agressivo, que ameace, que questione. Um espanto que sabe para onde vai. Como diz uma das personagens de Musil: é "tão simples ter força para agir e tão difícil encontrar um sentido para a acção!"(3)
Para Heidegger, segundo a interpretação de Steiner, as "técnicas metafísicas de argumentação e sistematização impedem-nos [...] de exprimir os nossos pensamentos no registo vital da interrogação"(4). Mas a interrogação é essencial. Impor afirmações que põem questões...


"O que ele encontrou não era o que os outros procuravam. E estamos aqui perante uma definição de indivíduo e do seu isolamento no meio do grupo: eu encontro o que os outros não procuram, eu procuro o que os outros nunca encontrarão."


MARIA:
Amo como o amor ama.
Não sei razão pra amar-te mais que amar-te.
Que queres que te diga mais que te amo,
Se o que quero dizer-te é que te amo?
Não procures no meu coração...

Quando te falo, dói-me que respondas
Ao que te digo e não ao meu amor.
Quando há amor a gente não conversa:
Ama-se, e fala-se para se sentir.

Posso ouvir-te dizer-me que tu me amas,
Sem que mo digas, se eu sentir que me amas.
Mas tu dizes palavras com sentido,
E esqueces-te de mim; mesmo que fales

Só de mim, não te lembras que eu te amo.
Ah, não perguntes nada, antes me fala
De tal maneira, que, se eu fora surda,
Te ouvisse toda com o coração.

Se te vejo não sei quem sou; eu amo.
Se me faltas, (...)
Mas tu fazes, amor, por me faltares
Mesmo estando comigo, pois perguntas
Quando deves amar-me. Se não amas,
Mostra-te indiferente, ou não me queiras,
Mas tu és como nunca ninguém foi,
Pois procuras o amor pra não amar,
E, se me buscas, é como se eu só fosse
O Alguém pra te falar de quem tu amas.
Diz-me porque é que o amor te faz ser triste?
Canso-te? Posso eu cansar-te se amas?
Ninguém no mundo amou como tu amas.
Sinto que me amas, mas que a nada amas,
E não sei compreender isto que sinto.
Dize-me qualquer palavra mais sentida
Que essas palavras que, como se as perderas, buscas

E encontras cinzas.
Quando te vi, amei-te já muito antes.
Tornei a achar-te quando te encontrei.
Nasci pra ti antes de haver o mundo.
Não há coisa feliz ou hora alegre
Que eu tenha tido pela vida fora,
Que não o fosse porque te previa,
Porque dormias nela tu futuro,

E com essas alegrias e esse prazer
Eu viria depois a amar-te. Quando,
Criança, eu, se brincava a ter marido,
Me faltava crescer e o não sentia,
O que me satisfazia eras já tu,
E eu soube-o só depois, quando te vi,
E tive para mim melhor sentido,
E o meu passado foi como uma estrada
Iluminada pela frente, quando
O carro com lanternas vira a curva
Do caminho e já a noite é toda humana.
Tens um segredo? Dize-mo, que eu sei tudo
De ti, quando m'o digas com a alma.
Em palavras estranhas que m'o fales,
Eu compreenderei só porque te amo.
Se o teu segredo é triste, eu saberei
Chorar contigo até que o esqueças todo.
Se o não podes dizer, dize que me amas,
E eu sentirei sem qu'rer o teu segredo.

Quando eu era pequena, sinto que eu
Amava-te já hoje, mas de longe,
Como as coisas se podem ver de longe,
E ser-se feliz só por se pensar
Em chegar onde ainda se não chega.
Amor, diz qualquer coisa que eu te sinta!

FAUSTO:
Compreendo-te tanto que não sinto.
Oh coração exterior ao meu!
Fatalidade filha do destino
E das leis que há no fundo deste mundo!
Que és tu a mim que eu compreenda ao ponto
De o sentir...?

MARIA:
Para que queres compreender
Se dizes qu'rer sentir?

A personagem individual e imponente, que os românticos figuravam em si mesmos, várias vezes, em sonho, a tentei viver, e, tantas vezes quantas a tentei viver, me encontrei a rir alto da minha ideia de vivê-la. O homem fatal, afinal, existe nos sonhos próprios de todos os homens vulgares, e o romantismo não é senão o virar do avesso do domínio quotidiano de nós mesmos. Quase todos os homens sonham, nos secretos do seu ser, um grande imperialismo próprio, a sujeição de todos os homens, a entrega de todas as mulheres, a adoração dos povos, e, nos mais nobres, de todas as eras... Poucos como eu habituados ao sonho, são por isso lúcidos bastante para rir da possibilidade estética de se sonhar assim. A maior acusação ao romantismo não se fez ainda: é a de que ele representa a verdade interior da natureza humana. Os seus exageros, os seus ridículos, os seus poderes vários de comover e de seduzir, residem em que ele é a figuração exterior do que há mais dentro na alma, mas concreto, visualizado, até possível, se o ser possível dependesse de outra coisa que não o Destino.
Quantas vezes eu mesmo, que rio de tais seduções da distracção, me encontro supondo que seria bom ser célebre, que seria agradável ser ameigado, que seria colorido ser triunfal! Mas não consigo visionar-me nesses papéis de píncaro senão com uma gargalhada do outro eu que tenho sempre próximo como uma rua da Baixa. Vejo-me célebre? Mas vejo-me célebre como guarda-livros. Sinto-me alçado aos tronos do ser conhecido? Mas o caso passa-se no escritório da Rua dos Douradores e os rapazes são um obstáculo. Ouço-me aplaudido por multidões variegadas? O aplauso chega ao quarto andar onde moro e colide com a mobília tosca do meu quarto barato, com o que me rodeia, e me amesquinha desde a cozinha […] ao sonho. Não tive sequer reles castelos em Espanha, como os grandes espanhóis de todas as ilusões. Os meus foram de cartas de jogar, velhas, sujas, de um baralho incompleto com que se não poderia jogar nunca; nem caíram, foi preciso destruí-los, com um gesto de mão, sob o impulso impaciente da criada velha, que queria recompor sobre a mesa inteira a toalha atirada sobre a metade de lá, porque a hora do chá soara como uma maldição do Destino. Mas até isto é uma visão improfícua, pois não tenho a casa de província, ou as tias velhas, a cuja mesa eu tome, no fim de uma noite de família, um chá que me saiba a repouso. O meu sonho falhou até nas metáforas e nas figurações. O meu império nem chegou às cartas velhas de jogar. A minha vitória falhou sem um bule sequer nem um gato antiquíssimo. Morrerei como tenho vivido, entre o bric-à-brac dos arredores, apressado pelo peso entre os postscriptos do perdido.


Aqui, agora, rememoro
Quanto de mim deixei de ser
E inutilmente, [...] choro
O que sou e não pude ter.


Sinto-me, estupidamente, romântica. Aliás, o advérbio é redundante: não há outro modo de o ser ...

O florir do encontro casual
Dos que hão sempre de ficar estranhos...
O único olhar sem interesse recebido no acaso...
Grandes mágoas de todas as coisas serem bocados...
Caminho sem fim.
.



Outros haverão de ter
O que houvermos de perder.
Outros poderão achar
O que, no nosso encontrar,
Foi achado, ou não achado,
Segundo o destino dado.



( Se fernando pessoa descobre que é local de encontro intertextual com lencinhos populares, bane-me como leitora...Divertiu-me associar a solenidade de um dos poemas mais solenes da Mensagem a um sentir pueril e ingénuo, em indigna ortografia. )

Se me aproximar devagar será que vais fugir? ou se vou conseguir mais um tempo ao teu lado? para te entreter mais um pouco ou te fazer sorrir para ti ou pelo sonho vamos juntos viajar. Medo é desculpa em leve chuva e querer morrer de amor não é historia de outro tempo.



Os génios não têm, não precisam de ter biografia.

Super Flumina Babylonis
A ascensão da estreita escada escura, e tão a pino, com os degraus muito altos e cambaios, era, sempre que voltava a casa, uma tortura. À força de equilíbrios, meio encostado à parede, cuja cal já se esvaíra havia muito e até nas suas costas, e apoiando em viés uma das muletas no extremo oposto do degrau de cima, ia subindo cuidadosamente, num resfolegar de raiva pela lentidão. Toda a unção adquirida na conversa com os frades de S. Domingos, a cujas prelecções regularmente assistia, ficando depois a discretear com eles, se perdia naquele regresso a casa, ao fim da tarde, e mal se recompunha no repouso à janela, sentado no banquinho baixo, comido o caldo, e ruminando memórias e tristezas, enquanto a velha mãe prosseguia intermináveis arrumos pontuados de começos de conversa, a que respondia com sorrisos e distraídos monossílabos ou com frases secas em que ripostava mais a si próprio que a ela mesma. Às vezes, ela insistia, repetindo um comentário, por uma resposta sua. Mas mesmo essa insistência não significava comunicação efectiva: ela apenas pretendia tranquilizar a própria consciência e o seu dó do filho envelhecido e doente, que a vida destruíra, com algumas palavras que lhe dirigisse, simulando uma conversa que não o deixasse entregue, perigosamente, aos solitários pensamentos, onde é sabido que o Inimigo especialmente se insinua. E não era dos pensamentos que ele tinha medo, mas dos vazios cada vez maiores que, entre os pensamentos, se faziam. Quando ela lhe falava, e sobretudo quando ela insistia, precisava não se deixar distrair pelas palavras que ouvia: ou logo, no fio interrompido das ideias que continuamente deslizavam como um rio revolto, se abria um vácuo tenebroso, um vórtice sombrio em que flutuavam farrapos de versos e de coisas vistas, e, mais no fundo, como que uma pequenina porta iluminada, ou um vidro posto sobre estranhas águas em que nadavam esquisitos seres, e que parecia um olho fito nele, pestanejando ou palpitando, não sabia bem, talvez que, sim, nem mesmo um olho, mas uma transparência marinha como os reflexos das ondas ao luar. A pequenina porta, que lhe fazia vertigens, nem sempre se mostrava. Na maior parte das vezes não havia mais que o poço em que se debruçava, ansioso de que a portinha se abrisse e tremente até ao arrepio pela frialdade que dela vinha. Fechando os olhos, cerrando-os com bastante força, conseguia então afugentar aquelas visões» ou aquela visão, sempre a mesma, que sonhava acordado. Porque dos sonhos tinha ódio. Pensar, devanear, lembrar, imaginar, mesmo supor como tudo poderia ter sido numa vida triunfante e num outro mundo, não era sonho, mas a certeza de que existia, de que as coisas se arrumavam por sua vontade, que a ordem delas e do Mundo era um desconcerto que ele organizava mentalmente. Quando dormia, não sonhava nunca. Não eram sonhos as coisas que então via, mas a continuação do mesmo poder e da mesma certeza, ou então tentações do demónio, como diziam os padres. Mas as tentações ele conhecia bem.. Não eram tentações da sua alma que Deus não deixaria que se perdesse nunca, a não ser naquele vórtice estranho onde parecia que Ele não penetrava. Como tentações? Que tentação era ter nos braços uma mulher que lhe escapara? Que tentação era matar, dormindo, um inimigo poderoso e inacessível? Que tentação era ver-se feliz num palácio, rico, respeitado, rodeado de servos e de admiradores, com uma mesa farta de bons petiscos e de bons vinhos, e com saúde e vigor para uns jogos de armas ou para uma bela amante pescada na rua, todos os dias uma diferente? Que tentação ver-se na Corte, com bom gibão de veludo e a gola de finas rendas, ouvindo os elogios dos seus pares, e recitando ou lendo o último poema escrito? Não eram tentações estas coisas, não, mas consolações piedosas da sua alma, a satisfação do que lhe fugira, a plenitude do que não tivera, a saciedade do que não bastara, a conquista do que jamais pudera ter sido seu. Pecado é sonhar com o futuro: desejar a mulher que se viu neste instante, querer com fúria o que é dado a outros, invejar furiosamente, como coisa que nos foi roubada, a felicidade alheia que está dançando, sem vergonha e sem respeito pela nossa miséria, diante dos nossos olhos que param a vê-la. Mas imaginar-se feliz no passado, com aquilo que fugidiamente o perpassara, e não fora nunca do tamanho da sua fome, não era tentação, não era um pecado, era, sim, a sua única riqueza, a sua única razão de esperar a morte, seco de amor, exangue de entusiasmos, descrente da pátria, destituído até da alegria de fazer versos. Os seus versos, agora, haviam-no abandonado. Haviam-se desfeito, como açúcar, no rio ininterrupto do pensamento, aonde antigamente flutuavam de súbito, como pedaços de ardente gelo, que um a um se atrelavam para dar um poema. E não tinha deles saudade alguma. Não fora nunca para si próprio que os escrevera. Para os outros, sim. Para que o ouvissem, para que o admirassem, para que o entendessem, para que vissem como tudo, na vida, tinha um sentido exacto que só ele era capaz de achar, uma arquitectura que não teria tido sem ele, uma beleza que não existe senão como a ideia que primeiro é pensada por quem é digno dela.
Empurrou a porta, e entrou. Contra o costume, a mãe não lhe apareceu, nem ele sentiu na casa ruído algum. Fechou a porta, foi até à mesa, e sentou-se na cadeira, encostando as muletas. Sentar-se era um alívio do cansaço, e uma nova tortura também. Mas a ausência da mãe, tão inabitual, tornou menos tortura a tortura de sentar-se ajeitando as partes inchadas e doloridas, acto que, com uma vergonha infinita, era obrigado a fazer diante dela, e que por isso não ajeitava bem, sentindo os olhos da velhinha fitos nele, horrorizados com a monstruosidade dos castigos reservados a quem se entrega aos pecados da carne, sem se manter puro como veio ao mundo. Ela, que, quando o marido voltava de uma viagem, só deixava que ele a beijasse depois de ter a certeza que não havia desembarcado em porto algum, desde muitos meses… Suspirando, sorriu para si mesmo. Na primeira viagem que fizera, ao embarcar-se para a Índia, ainda derrancado das orgias de noites consecutivas, destinadas a prevenir-se para tanto tempo de céu e mar e de conversa de homens, ele… Benzeu-se. Estas memórias eram tentações da carne. E nisso estava a diferença da poesia que escrevera na vida. Umas vezes escrevera na verdade para saber o que pensava. Mas outras vezes escrevera para possuir efectivamente, como, quando era moço, repetia de seguida o acto do amor, não porque desejasse, mas para sentir melhor que possuía, para ter a certeza de que possuía mesmo a marafona de que se esquecera durante a primeira vez. Agora, assim alquebrado e impotente, tudo o que pensava, se o escrevesse, lhe parecia que era só desta poesia que pecava contra o Santo Espírito, e que não era uma dádiva, uma oferta do seu corpo ao corpo em que entrava, mas uma rapina, uma avareza, uma maneira de devorar o próximo. E mesmo de tudo o que escrevera lhe parecia incerto que o tivesse sido abnegadamente, já que sempre ansiara pelo reconhecimento alheio, pelo triunfo, pela glória, pelos prémios, a ponto de contentar-se com o sorriso constrangido dos ignorantes a quem lia os poemas.
Levantou o olhar para a janela. No prédio fronteiro, viu o calafate sentado à mesa, que o observava amigavelmente por cima da escudela fumegante. Acenou-lhe de cabeça, e o outro fez com a mão um gesto largo, que terminou apontando o caldo numa oferta gentil. Correspondeu com um gesto como que de adeus, e desviou a vista. À varanda vieram encostar-se as duas crianças; não precisava de fitar Para saber. Nunca gostara de crianças, nunca pensara em tomar estado para tê-las suas. Talvez por isso mesmo é que tanto ou tudo da sua poesia ficara como aqueles filhos que não quisemos ter, e que depois se despegam de nós adivinhando um desapego de que nos arrependemos, mas que não deixa de ser um desapego mesmo arrependido. O amor para ele fora carne e espírito, tão carne, que nenhum espírito podia estar presente, e tão espírito, que nem toda a carne do mundo, usada dia e noite, chegava para contentá-lo. Até o fastio, que às vezes o afastava longamente de contactos carnais, era uma ardência insatisfeita, que se continha, suspensa e ameaçadora, à espera de esquecer que a carne era sempre igual, e os gestos do amor tão poucos que os sabia já de cor. Mas depois, ao fazê-los, era sempre, como na primeira vez, uma surpresa, uma ignorância curiosa, um receio tímido, uma insegurança doce, um pasmo juvenil, uma alegria nova, um encantamento frenético; era como na primeira iniciação, mas sem a perplexidade e a decepção de o amor não ser mais do que isso, quando a virtude do amor não está em ser mais do que é, mas em ser o prazer de não ser isso mesmo.
Novamente ergueu os olhos para a varanda fronteira. As crianças não estavam lá, e o homem, curvado para a escudela, comia o seu caldo. Aquele mistério da Encarnação, o frade hoje falara muito bem, explicando com eloquência o seu sentido. Mas o sentido da Encarnação não precisava ele que lho explicassem. Quem amara com a carne e com o pensamento como ele, quem escrevera do Amor como ele escrevera, e quem não gostara nunca de crianças, como ele, tinha da Encarnação uma experiência que o frade não tinha. Precisamente porque tudo se encarnara nele sem encarnar-se, e lhe devorara a própria carne, deixando-o aquele farrapo imundo que era agora, quem melhor sabia o que era a Encarnação? Ou, pelo menos, tanto quanto um homem pode sabê-lo? Sentir-se grávido de um poema, sentir-se fecundado por um relâmpago entrevisto, e ser um homem — é o mais que pode saber-se. Não o sabe a mulher que dá à luz, porque é delas dar à luz, às vezes sem ter amado. Não o sabe o homem que quer ter filhos, porque os pode fazer sem amor. Mas o poeta que praticou o amor até à destruição da carne, e escreveu poemas até que o espírito acha pouco a poesia, esse, sim, esse sabe o que Encarnação seja. Apenas, porém, o sabe. Mas não viveu a Encarnação, foi a Encarnação quem o viveu a ele. E é este o grande mistério, não o outro. E é a grande diferença entre um deus que se encarna, e o homem em quem a Encarnação se representa. Uma diferença que é, afinal, uma comédia, ou pode ser vista como uma comédia, porque todo o homem a quem isso aconteça é Anfitrião, um marido enga¬nado pelo Júpiter que há nele.
Ficou vendo diante de si o palco iluminado, e as figuras declamando os versos. A porta rangeu, e os passinhos leves soaram atrás dele. A voz fininha e aguda começou a sua declamação desafinada.
— Esteve hoje cá o Padre Manuel à tua procura, e eu disse-lhe que hoje era dia de ires a São Domingos, e ele disse-me que não se tinha lembrado, e eu perguntei-lhe quando voltava, e ele respondeu que precisava perguntar-te do teu livro, mas não era pressa, voltava noutro dia, ou tu fosses procurá-lo amanhã ou depois. Que é que ele anda a fazer com o teu livro, sempre a perguntar-te coisas? Então um livro desses, que não é de coisas de Deus Nosso Senhor e da nossa santa religião, precisa que tu estejas sempre a explicar o que é isto e o que é aquilo, e a contar a tua vida, nem que ele fosse o teu evangelista? A Virgem Santíssima me perdoe, mas parece-me um grande pecado. E contar a vida às outras pessoas é um grande pecado da vaidade. A vida conta-se ao padre confessor, e faz-se a penitência que ele manda pelas nossas más palavras e obras, e pronto. E, à hora da morte, a gente conta o que ainda lembra ou fez entretanto, e o padre dá a absolvição, se fomos virtuosos e piedosos, e nunca faltámos aos nossos deveres para com Deus e a sua Igreja. Ah, veio também o criado do Senhor Rui Dias, do mando deste senhor, que tão teu amigo é, perguntar pela encomenda que te fez daquelas poesias del-rei David que Deus haja. E eu disse que tu ainda não acabaste e que logo acabas, e que tens trabalhado muito e até tens estudado com o Padre Manuel para que as palavras santas fiquem todas certas e nos seus lugares. E ele disse que o amo estava muito arreliado contigo, que havia mais que muitos meses que tinha feito a encomenda, e que tu não fazias nada, e que já tinha pago adiantado uma parte do trabalho. E eu disse que era verdade, que ele já tinha pago, mas que nestas coisas pagar adiantado alguma coisa é como dar o pano ao alfaiate, porque o alfaiate não pode fazer o gibão sem o pano, e tu não podias escrever sem comer. E disse-lhe que a tua tença estava atrasada e que não a pagavam, e que eu esperava muito da bondade do seu amo e do grande poder que lá tem no Paço que a tença fosse paga em dia, que bem a tinhas merecido de Sua Alteza pelos muitos serviços de teu pai que Deus tenha em descanso, e também pelos teus serviços, que se tinhas sido um rapaz sem juízo, e não tiveste sorte na vida, também eras um homem que escrevia livros, e sabias muitas coisas divinas e humanas, como o Senhor Padre Manuel me disse, e Frei Bartolomeu escreveu na licença que te deu…
— Frei Bartolomeu só disse que eu sabia muito de coisas humanas.
— Pois é. Porque saber de coisas divinas tu podias ter aprendido se tivesses estudado a valer, e tido juízo, que podias hoje até ser bispo e mais do que eles dois. Mas meteste-te com más mulheres e más companhias, e hoje é isso que se vê, e, em vez de seres tu a dar as licenças, és tu quem as vai pedir a eles. Se não fossem teus amigos e tu não lhes moesses a paciência, e não mostrasses como és um homem arrependido da má vida que teve, não ta davam, que isto de frades, Nossa Senhora me perdoe, se alguém me ouve. O teu pai é que se ria deles, e dizia que eram todos uns vadios, que só queriam comer e ter as mulheres dos outros. Abrenúncio, e por isso Deus o castigou com aquela desgraçada morte, que nem teve sepultura cristã. Mas tu podias ir procurar o Senhor Duque ou o Senhor D. Manuel, e lembrar-lhes que a tua tença está atrasada, e eles não há que não consigam, de tão grandes senhores que são, primos del-rei. Eu tive de sair para visitar a nossa comadre Joaquina que está outra vez com a sua dor e não tem ninguém que cuide dela, mas logo lhe disse que não podia demorar-me, porque hoje era dia de ires a São Domingos santificar a alma, que bem precisas, e logo voltavas com fome e querias a tua ceia, e ficavas aborrecido se eu não estivesse em casa quando chegasses, para te dar o caldo, e ela respondeu que não eras nenhuma criança que chorasse pelo peito da mãe, e eu disse-lhe que tu nunca tinhas chorado pelo peito da tua mãe, e é verdade também porque eu te dava logo de mamar mal tu abrias a boca para gritar. Mas que nunca choraste para mamar é a verdade, e só choravas depois, porque o meu leite era fraco e foi preciso trazer uma ama, e o teu pai queria que tu fosses criado com ama, porque não era da nossa condição que tu fosses criado ao peito de uma senhora como eu, esposa de um homem como ele, tudo gente de condição. Mas a condição que nós tínhamos era só o que ele ganhava, e Deus sabe como eu vivi depois que teu pai faltou e tu andavas lá por essas terras de gentios e de infiéis, por tanto tempo e eu sem saber se eras vivo ou morto, e só sabia quando chegavam as armadas e vinha alguém conhecido que me dava notícias tuas, e me dizia que tu tinhas ido para aqui e para ali, ou estavas não sei onde, que para mim todas aquelas Índias são o mesmo, e os nomes das terras são mesmo coisa do demónio, cruzes, de arrenegados para se entenderem. Muitas vezes eu pensava que me escrevias, mas tu nunca escrevias, e muitas pessoas me diziam que tu lá escrevias as cartas dos outros, que escrever bem tu sempre escreveste desde muito pequeno] mas punhas as coisas bonitas no papel para eles, e para mim nada. E eu ficava rezando a Sant’Ana e a Nossa Senhora e às vezes até mudava de santo para que nenhum se cansasse de me ouvir, sempre temendo que morresses nas guerras e nos naufrágios, ou dessas doenças que há lá, e a pensar que às vezes eu podia estar a rezar pela tua boa sorte e as rezas afinal servirem para te descontar os dias de Purgatório pelos teus pecados e leviandades, e o corpo que eu dei à luz estar comido dos peixes ou do gentio, sem sepultura cristã, como teu pobre pai que Deus haja e eu só soube tanto tempo depois. E a comadre Joaquina deu-me este pastel que aqui trago e que é de uma galinha que lhe deu a vizinha, ou uma meia galinha só, de que ela fez este pastel, e me disse que tinha outro e que te mandava este, mas queria que tu lhes escrevesses uma oração em verso a S. Crispim de que é muito devota, e eu disse que tu havias de escrever depois de comeres o pastel.
— Eu como o pastel, mas versos aos santos não faço.
— Deus meu, se alguém te ouve e pensa que tu não acreditas nos santos. A Santa Inquisição que nos livrou da maldade e da malícia dos inimigos da nossa Fé manda que se acredite nos santos, e eu bem sei que tu não acreditas, nunca te encomendas a eles, e é por pecado de orgulho, ao que me disse o Padre Manuel, quando eu lhe falei da minha aflição por tu não acreditares nos santos, e ele me respondeu que tu achas os santos pequenos de mais para ti, e não te contentas senão com Deus Nosso Senhor. Eu até fiquei arrepiada de pensar no perigo que é não ter um santo que nos proteja. Se não fossem o Senhor Duque e o Senhor D. Manuel e o Senhor Rui Dias e outros senhores assim, eu queria ver de que é que tu vivias, que el-rei nem saberia da tua existência. Deus me perdoe, mas não é que Deus não saiba de ti, porque ele sabe de todos nós e é um pai aman¬tíssimo que não tira os olhos de nós. Mas está na sua divina majestade, ocupado em reger o Mundo, e nunca ninguém ganhou causas sem advogado. A mim a Senhora Sant’Ana nunca me desampara, eu nem sei o que seria de mim e de ti sem ela. Que este pastel é um milagre dela. Quando eu saí para visitar a comadre Joaquina, ia dizendo comigo que a Senhora Sant’Ana fizesse que eu não voltasse para casa com as mãos vazias e trouxesse algum petisco para o meu filho, e pedi mesmo um pastel de galinha, que era o mais certo, porque a comadre Joaquina sempre tem pastéis de galinha. E eu não prometi à Senhora Sant’Ana que tu farias o que a comadre pedisse, porque já te conheço, e não há contar contigo para coisa nenhuma que não seja comer o pastel. E por isso não faz mal que não faças os versos a S. Crispim, porque não foi promessa minha. A comadre é que disse que tu, se quisesses, podias fazer, que toda a gente dizia que eras muito bom dizedor, e que fazias logo os versos que te pediam. E eu respondi que isso seria dantes, porque agora tinhas uma encomenda muito boa, de grande rendimento, do Senhor Rui Dias, que nos fazia a honra de ser teu amigo, de pôr em verso os Salmos del-rei David que Deus haja, e que tu não escrevias nada, e até hoje o criado dele cá estivera a reclamar por causa do pagamento adiantado. Tu estás a dormir, tu não ouves o que eu digo? Come o teu caldo enquanto está quente e depois o pastel que é bem gostoso se for igual ao outro que a comadre tinha. Eu já ceei em casa dela, e estou sem apetite só de ver-te nesse estado, um rapaz tão forte e tão bonito como tu eras, que não havia moça que não se voltasse para te ver, nem homem que não se mordesse de inveja. E, quando o sol dava no teu cabelo, eu dizia comigo que o meu filho era como um rei com a coroa na cabeça, ou, Deus me perdoe, como um grande santo de resplendor dourado em dia de procissão. E ficava a ver-te ir pela rua abaixo, tão vaidoso que nem olhavas para trás, com a mão no punho da espada, e os passos tão firmes, Deus meu, que parecia que a terra era toda tua. Por essas e por outras é que as tuas desgraças começaram, com as arruaças e as brigas, e o mau feito, desgraça maior que todas, de acutilares o homem em Dia de Corpus Christi, aquele patife sem vergonha que te desgraçou e fez ir para a Índia e que merecia morrer em pecado, Deus me perdoe se sou eu quem peca. Está tão escuro já que vou acender a candeia. Mas o lume apagou-se e vou descer à vizinha a pedir-lhe lume. Deus Nosso Senhor tenha piedade de mim, velha e cansada, e com um filho homem, e sou eu quem tem de descer a escada para buscar o fogo que não há na minha casa. Abriu o olhar às trevas e ao silêncio. Conhecia tão bem os cantos da quadra, que era como se estivesse vendo a arca e o oratório com o raminho entalado, os quadrinhos de santos pendurados, a prateleira com os pratos em pé, a enxerga ao canto, onde ele dormia, a porta da alcova de sua mãe e a porta da cozinha. Via tudo com a mesma cer¬teza e a mesma minúcia com que vira as naus do Gama nave¬gando no mar, lá em baixo, vistas do Empíreo, com que vira Vénus abraçada a Júpiter e chorando, com que vira o Ada¬mastor sair da nuvem grossa, com que vira o Veloso correndo pelo monte abaixo. Mas ele acutilara o Borges, porquê? Para que a vida lhe mudasse de rumo, para que ela tomasse um rumo de fatalidade, para que as índias lhe fossem impostas pela sua estrela, para que a sua estrela existisse. Erros meus, má fortuna, amor ardente, em minha perdição se conjuraram, os erros e a fortuna sobejaram, que para mim bastava amor somente. Perdição. Amor somente. Como a poesia é falsa e verdadeira. Como ela diz não dizendo, e é não dizendo que diz. Como da nossa alma não sabemos nada antes de escrevê-la, e como não é dela que sabemos depois de ter escrito. A perdição procura-se, como um homem se despe para banhar–se no mar, a modos que Leandro atravessando o Helesponto. E o amor somente bastaria, como o momento em que tudo se esquece, tudo desaparece, tudo se evapora, ao calor que abrasa e que só dura um instante mas um instante em que o tempo se suspende, se petrifica num espaço e numa forma, e todo o verdadeiro espaço foge velozmente, correndo pelos tempos fora até que é ele o tempo que se suspendeu. Apenas como isso, porque é uma imagem do supremo amor, aquele que existe além do tempo e do espaço, além das esferas, além daquele poço terrível. Além ou aquém? E se esse amor não fosse mais do que uma imagem, uma essência última da sua própria vida?
Estranhamente, no silêncio e no fluxo dos pensamentos, o poço abriu-se insólito e translúcido na sua profundeza negra, com as pequeninas formas flutuantes, e uma subia, subia, tomando cor e feições de uma medusa terrífica. Mas a porta rangeu, e uma vaga claridade fez emergirem os objectos, como formas planas, sem sombras na luz fraca. Os passinhos soaram leves.
— A vizinha diz que, no intervalo antes de tu chegares, quando eu já tinha saído, veio cá também aquele doutor que te pediu as poesias para aquele senhor que não tem nome cristão, o Senhor D. Leonis. Hoje veio cá todo o mundo, até parece o Dia de Juízo. E ele que vai de viagem ficou com muita pena de não te ver, e disse-lhe que te deixava muitas lembranças e que queria muito que tu melhorasses de saúde, e ela respondeu que tu estavas mesmo muito acabado, e ele disse que tu não acabavas nunca, porque tu eras um grande poeta, um dos maiores que já tinha havido no mundo, assim uma coisa como nem sei quem ele disse. E ela riu-se muito, e disse-lhe que o Senhor Padre Manuel também dizia o mesmo, e que era tudo bondade deles, porque isso de poesias nunca davam nada a ninguém. Só que a ti deram a tença, mas foi por causa do livro impresso e pelos muitos serviços a el-rei que o teu pai prestou em sua pobre vida, e tu também. E ele respondeu que era sempre assim que as coisas aconteciam, que a glória só vinha muito tarde, e que os prémios, quando eram dados, nunca vinham pelo que a gente merecia mais. Eu acho que isto é descrer da infinita bondade de Deus Nosso Senhor, e não é muito respeitoso para com Sua Alteza que te deu a tença. O que é preciso é que tu vás ao Paço reclamar que não te pagam a tempo e horas, que estou cansada de me arrastar até lá, e sempre me perguntam porque tu não vais, e o outro dia o tesoureiro até me disse que era tudo história, que não ias porque tinhas morrido, e eu, se queria receber, tinha de pedir a el-rei a tença em meu nome. E tu não vais porque tens esse pecado de orgulho, e não queres que te vejam de muletas, a pedir que te paguem o que te devem. Eu é que estou cansada, e vou-me deitar que não posso mais comigo. Tem cuidado com a candeia, não gastes muito azeite, que está pela hora da morte, e bem sabes que tenho medo dos fogos e podes adormecer aí na mesa, não era a primeira vez, e a candeia pegar fogo à tua papelada, e à casa, Deus nos acuda e Santa Bárbara nos proteja. Se voltar cá o criado do Senhor Rui Dias, o que é que lhe digo? Nem me respondes, estás a cair de sono em cima da mesa. Tem cuidado com a candeia… Ficou olhando as chispinhas delicadas que a candeia fazia, como uma auréola à volta de um centro ardente. Se o criado de Rui Dias lhe aparecesse, ou ele mesmo, diria que, noutro tempo, era mancebo, farto e namorado, querido e estimado, e cheio de muitos favores e mercês de amigos e damas, com que o calor poético se aumentava, e que agora não tinha espírito nem contentamento para nada… Seriam 365 versos, tantos quantos os dias do ano, como uma via sacra da vida, 73 quintilhas como…
Levantou-se impelido por uma ânsia que lhe cortava a respiração, uma tontura que multiplicava a pequenina luz da candeia. Apoiado à mesa, arrastou-se até à outra ponta, e daí deixou-se cair até à enxerga. Remexendo nela, tirou de um canto umas folhas de papel, o tinteirinho, com a pena enfiada no anel, que se habituara, desde o primeiro embarque, a guardar assim. De joelhos, com as dores neles e nas partes aumentando muito agudas e em picadas de que cerrava os dentes, veio até à mesa, pousou nela o que trazia, e levantou-se. Ficou um momento, de olhos fechados, arquejando. Já as palavras tumultuavam nele, confundidas com as outras, inú¬teis e mortas, da tradução que tentara. Eram como uma tre¬mura que o percorria todo de arrepios, com hesitações leves, concentrando-se em pequenas zonas da pele. Debruçando-se da mesa a que se apoiava, puxou para o seu lado a cadeira, e caiu sentado nela. Sentia um suor frio escorrer-lhe pela testa, e, ao abrir o tinteiro, viu que as costas das mãos brilhavam perladas. Uma onda de alegria o inundou, em sacões ansiosos. Os olhos ardiam-lhe e era de lágrimas. Tudo falhara, tudo, e a própria poesia o abandonara, receosa dos seus olhos de alma penetrantes que viam o fundo das coisas. O poço com as formas flutuando. Mas era um grande poeta, transformava em poesia tudo o que tocava, mesmo a miséria, mesmo a amargura, mesmo o abandono da poesia. Tremendo todo, mas, com a mão muito firme, começou a escrever… Sobre os rios que vão de Babilónia a Sião assentado me achei… Riscou, desesperado. Recomeçou. Sobre os rios que vão por Babilónia me achei onde sentado chorei as lembranças de Sião e quanto nela passei…
E ficou escrevendo pela noite adiante.


My dear,
In the midst of hate, I found there was, within me, an invincible love. In the midst of tears, I found there was, within me, an invincible smile. In the midst of chaos, I found there was, within me, an invincible calm. I realized, through it all, that… In the midst of winter, I found there was, within me, an invincible summer. And that makes me happy. For it says that no matter how hard the world pushes against me, within me, there’s something stronger – something better, pushing right back.
Truly yours,
Albert Camus


É verdade «que um baixo amor os fortes enfraquece»
mas também o grande amor torna ridículos os grandes,
pois o amor é, em energia material sobre o mundo, um roubo — apesar de, em sensações, ser magnífico. 0 amor será útil internamente,
mas externamente não carrega um tijolo.
Disso nunca tive dúvidas.
0 amor não se vê como
se fosse uma presença.
É demasiado completo
para ter uma forma. E como jamais
se conseguiram obter juros de uma coisa
que não ocupa espaço, é preferível não, parece-me.

Mas o que nunca conseguira era ser exterior à indiferença; ser exterior a si ,nos momentos, inúmeros, em que se encontrava neutro face às coisas, inerte e em estado de espera perante a possibilidade de um acto ou do seu contrário.

Mas o que era concretamente este lá, este outro sítio que por vezes parecia ser o seu centro outras vezes o seu oposto? Sobre a localização geral desse lá, Walser não tinha dúvidas: era o cérebro. Era ali que tudo se passava ou que tudo o que se passava era observado. Ali fazia, e ali via-se a fazer. Como qualquer louco normal, pensou Walser, e sorriu da fórmula.

Vendi-me de graça aos casuais do encontro.
Amei onde achei, um pouco por esquecimento.
Fui saltando de intervalo em intervalo
E assim cheguei a onde cheguei na vida.
Hoje, recordando o passado
Não encontro nele senão quem não Fui.
.

Now that mountains of meaningless words and oceans divide us And we each have our own set of stars to comfort and guide us Come into my sleep...




Insónia de perder-te!
Quem foste já não sei.
Pela janela ver -te
Cada astro a sua lei.
Como, sem sonhar ter-te?...
Porque não dormirei?


Assim, separados, amar-nos-emos sempre. A ponte entre nós será a curva do céu, e assim o nosso amor será eterno. Possuir-te era já o caminho de perder-te. Viver contigo era a maneira de te ir esquecendo.

If this was our last song, what would we do then? (If)this was our last song, what would we say then? If this was our last time, what would we do, what would we say then?


A primeira noção clara que tive deste meu terrível desinteresse por mim mesmo e por o que antigamente considerara mais meu, foi quando um dia, estando longe de casa, ouvi um rebate de fogo que me pareceu na freguesia. Ocorreu-me que fosse em minha casa, onde, aliás, não fora. E, ao passo que, antigamente, um pavor de se poderem perder meus manuscritos me haveria tomado toda a alma, notei, com pasmo duplo, que a possibilidade de o fogo ser em minha casa me deixara indiferente, quase feliz na ideia de que, destruídos esses manuscritos, se me simplificaria a vida.(...) Comecei então a compreender como por fim cansa de tudo o esforço contínuo da perfeição inatingível, e compreendi os grandes místicos e os grandes ascetas, que reconhecem na alma a futilidade da vida. Que iria de mim naqueles papéis escritos? Antes, eu diria «tudo»; hoje diria, ou «nada», ou «pouco», ou «uma coisa estranha». Tornara-me objectivo para mim mesmo. Mas não podia distinguir se com isso me achara ou me perdera.

Esperar pelo melhor é preparar‑se para o perder: eis a regra. O pessimismo é bem grande, é fonte de energia.

Meu amor perdido, não te choro mais, que eu não te perdi!
Porque posso perder-te na rua, mas não posso perder-te no ser,
Que o ser é o mesmo em ti e em mim.


Não o amor, mas os arredores é que vale a pena... A repressão do amor ilumina os fenómenos dele com muito mais clareza que a mesma experiência. Há virgindades de grande entendimento. Agir compensa mas confunde. Possuir é ser possuído, e portanto perder-se. Só a ideia atinge, sem se estragar, o conhecimento da realidade.

Conheci o joão de melo com quem almocei duas vezes. Embora o contacto pessoal fosse fugaz, teve algo de interessante : temos em comum a leitura da obra de ferreira de castro e o lamento pelo esquecimento total a que este escritor foi votado, neste deserto de margaridas, matildes, pedros, tonis e teresas...

Pacifica-me a certeza de que , em agosto, vou reencontrar a minha T. ( Só gosto de encontros programados; os inesperados perturbam-me sempre: não sei como reagir, não imagino que reação vou desencadear, o que me deixa insegura, absolutamente indefesa...) Será sempre um mistério a perfeita racionalidade que ela aparenta, nunca se revoltou contra nada, nunca se lhe surpreendem atitudes de contrariedade, nunca é excessiva. Será sempre um mistério o que sente, o que pensa sobre a vida, para além da literatura e da filosofia e, acima de tudo, que papel desempenham, na sua rotina existencial, os nossos encontros.

É determinante o subcontexto espacial em que se circula: ninguém se encontra, naturalmente, se se enquadrar em diferentes microespaços: quem vai ao pingo doce, nunca encontrará quem só compra no continente...Julgo que será só por este motivo que as pessoas casam e coabitam: evitar desencontros...(Paradoxalmente, esta prudente medida, provoca que se encontre sem procurar, sem nunca ser surpreendido, e dá no que dá...)
É essencial idêntica envolvência cultural: quem gosta só de cinema nunca se encontra com quem gosta só de concertos nem , muito menos, com quem se delicia a pasmar em centros comerciais, exibindo a sua existência acéfala...
Há encontros que, intrinsecamente, são desencontros, pois não implicam , nem matematicamente, a possibilidade de encontro...Para existir um encontro não desencontrado é essencial que duas realidades coexistam no mesmo espaço (físico, sociocultural, linguístico e afetivo...) e no mesmo tempo (cronológico e psicológico)... Há encontros que, inexoravelmente, se revelam desencontros, pois não implicam , nem hipoteticamente, um encontro... Para existir um encontro não desencontrado é essencial que gestos e olhares coexistam no mesmo universo afetivo...
A relação entre Fernando e Ofélia foi um encontro/desencontro entre dois seres predestinados para nunca se encontrarem...

Saltito de livro em livro, estabelecendo associações que só devem existir na minha mente: idealizo o senhor josé de saramago a ler o silêncio de steiner e a perceber o porquê do seu comportamento; sinto o fascínio de bernardo soares; imagino todos os leitores do mundo a ler o mesmo livro, ao mesmo tempo, e ouço um coro ensurdecedor, entoado por jograis desesperados, para quem a vida não tem outro sentido a não ser ler, escrever e pensar, a invadir , progressivamente , todo o planeta.
Sem o mesmo universo de discurso, não há qualquer possibilidade de encontro: uma analfabeta e um escritor podem cruzar-se, chocar frontalmente, dormir juntos, conectarem-se das formas mais palpáveis às mais subtis, mas o seu encontro será ,verdadeiramente, um perpétuo e improfícuo desencontro... Acredito no mito de pigmalião, creio que o amor pode converter o mármore numa carnação ebúrnea, mas sou muito cética relativamente à versão de bernard shaw: há escassas hipótese de , na vida real, existir uma my fair lady; as elizas doolittle permanecem sempre com alma de floristas, mesmo que retoquem a dicção...As diferenças sociais corrigem-se e superam-se, as linguísticas e culturais dificilmente. Um amor que nasce desigual, desigual permanecerá, as elizas reais podem sobreviver, apenas como esposas decorativas e dedicadas, mas...só isso.

‎ Não sou indiferente às repetições, suporto melhor o tédio que certas aventuras desnecessárias. Não estou, pois, obcecado por novidades. Porém não suporto que, em mim, a não surpresa já não me surpreenda. Sou, de uma forma geral, magnífico.E...apesar de culto... Sei estrelar ovos e fazer um arroz vago. E tenho uma força que, quando correctamente aplicada, se transforma em simpatia. Sei sorrir para duas pessoas ao mesmo tempo, e tal facto não é descoordenação da face, mas técnica, aprendizagem, boas famílias e esforço.EU dividiria ( o guarda-chuva) consigo, como a mãe divide o pão com o próprio filho. Porque até os meus músculos mais ferozes têm tendência para o sentimento.

Nesses tempos,andava demasiado ocupado com o " penso,logo existo" e fazia glória daquela solidão metafísica, onde tudo o que era importante se passava dentro de si; os outros não tinham ali entrada nem para saber deles nem para interferirem consigo. Foi um tempo ...em que ele se conhecia e descobria, acariciando a sua própria angústia: uma espécie de masoquismo de quem quer sentir o braço pela dor que tem... Achava que o corpo era um tropeço do espírito porque, enquanto jovens, somos inacessíveis à harmonia das ambivalências.

Naquela tarde, Gonçalo estava ...com grandes dificuldades em estabelecer uma corrente entre a história do seu amor por Maria Egipcíaca e as palavras para a contar. De certo modo teve pena de não ter escrito este livro há vinte anos, na força da sua paixão, porque hoje lhe faltava a frescura dos sentimentos espontâneos... Impressionava-o a inexistência de textos sobre outro amor que não fosse a irrupção dos desejos do corpo e perguntava-se se haveria textos que provassem que um homem e uma mulher podiam conhecer juntos o afecto harmonioso que pode surgir do seu encontro...
O derradeiro mistério somos nós próprios. Depois de termos pesado o Sol e medido os passos da Lua e delineado minuciosamente os sete céus, estrela a estrela, restamos ainda nós próprios. Quem poderá calcular a órbita da sua própria alma?


All alone though you're right here...

Por ti deixei meu reino meu segredo...

Gosto dos que não sabem viver, dos que se esquecem de comer a sopa(...) e embarcam na primeira nuvem para um reino sem pressa e sem dever. Gosto dos que sonham enquanto o leite sobe, transborda e escorre, já rio no chão, e gosto de quem lhes segue o sonho e lhes margina o rio com árvores de papel... Apesar de estar sempre a decidir e a redecidir que vou ser dos que sabem viver, acho que vou gostar sempre,sempre dos que se esquecem de comer a sopa, alheados na leitura , absortos num pensamento ou numa quimera...

Saber viver é vender a alma ao diabo, a um diabo humanal, sem qualquer transcendência, a um diabo que não espreita a alma, mas o furo, a um satanazim que se dá por contente de te levar a ti, de escarnecer de mim...

O reino agora é só aquele que cada um por si mesmo encontra e conquista, a aliança que cada um tece. Este é o reino que buscamos (...)Semelhante ao corpo de Orpheu, dilacerado pelas fúrias , este reino está dividido. Nós procuramos reuni-lo, procuramos a sua unidade, vamos de coisa em coisa. É por isso que eu levo a ânfora de barro pálido e ela é para mim preciosa. Ponho-a sobre o muro em frente do mar. Ela é ali a nova imagem da minha aliança com as coisas. Aliança ameaçada. Reino que com paixão encontro, reúno, edifico. Reino vulnerável. Companheiro mortal da eternidade.
O Reino ...coincide com uma certa vida livre e despojada que teremos de reencontrar, para podermos enfim renascer. O Exílio, de certo modo, mostra-nos as vias de acesso a essa outra vida, desde que saibamos nele recusar ao mesmo tempo a servidão e a posse.
A obra de arte faz parte do real e é destino, realização, salvação e vida. (...) E no quadro sensível do poema vejo para onde vou, reconheço o meu caminho, o meu reino, a minha vida.

Everything must start again a new Everything just goes that way my friend Every king knows it to be true That every kingdom must one day come to an end

Só quem procura sabe como há dias de imensa paz deserta; pelas ruas a luz perpassa dividida em duas: a luz que pousa nas paredes frias, outra que oscila desenhando estrias nos corpos ascendentes como luas suspensas, vagas, deslizantes, nuas, alheias, recortadas e sombrias.


lost in translation= o amor é um lugar estranho = encontros e desencontros...

Busco-me e não me encontro.
Pertenço a horas crisântemos, nítidas em alongamentos de jarros. Devo fazer da minha alma uma coisa decorativa. Não sei que detalhes demasiadamente pomposos e escolhidos definem o feitio do meu espírito. O meu amor ao ornamental é, sem dúvida, porque sinto nele qualquer coisa de idêntico à substância da minha alma.

Andávamos sem nos procurarmos, mas sabendo que andávamos para nos encontrarmos.

E como era natural atravessar a rua, subir as escadas que dão para a ponte, entrar na sua cintura estreita e aproximar-me da Maga, que sorria sem surpresa, convencida como eu de que um encontro casual era a menor casualidade das nossas vidas e que as pessoas que marcam encontros a horas precisas são as mesmas que necessitam de papel pautado para se escreverem ou que apertam o tubo da pasta de dentes desde o fundo...

Por vezes os encontros eram tão incríveis que...se deparava uma vez mais com o problema das probabilidades... O que para ele tinha sido análise de probabilidades...para ela era simples fatalidade. Sentia-me antagonicamente próximo de ...gostávamos um do outro através de uma dialéctica de íman e limalha, de ataques e defesa,de bola e parede...

Com um dedo, toco a borda da tua boca, desenhando-a como se saísse da minha mão, como se a tua boca se entreabrisse pela primeira vez, e basta-me fechar os olhos para tudo desfazer e começar de novo, faço nascer outra vez a boca que desejo, a boca que a minha mão define e desenha na tua cara, uma boca escolhida entre todas as bocas, escolhida por mim com soberana liberdade para desenhá-la com a minha mão na tua cara e que, por um acaso que não procuro compreender, coincide exactamente com a tua boca, que sorri por baixo da que a minha mão te desenha. Olhas-me, de perto olhas-me, cada vez mais de perto, e então brincamos aos ciclopes, olhando-nos cada vez mais de perto. Os olhos agigantam-se, aproximam-se entre si, sobrepõem-se, e os ciclopes olham-se, respirando confundidos, as bocas encontram-se e lutam sem vontade, mordendo-se com os lábios, quase não apoiando a língua nos dentes, brincando nos seus espaços onde um ar pesado vai e vem com um perfume velho e um silêncio.

Toda a gente passou horas em que andou desencontrado, como à espera do comboio, na paragem do autocarro. Estou saturada de ir para a estação de caminho de ferro à espero de um autocarro para lado nenhum...( Ninguém imagina o que me incomoda, o que me irrita, o que me desorganiza sentir-se deslocada, desencontrada...)

Uma das grandes tragédias da minha vida — porém daquelas tragédias que se passam na sombra e no subterfúgio — é a de não poder sentir qualquer coisa naturalmente. Sou capaz de amar e odiar, como todos, de, como todos, recear e entusiasmar-me; mas nem meu amor, nem meu ódio, nem meu receio, nem meu entusiasmo, são exactamente aquelas mesmas coisas que são. Ou lhes falta qualquer elemento ou se lhes acrescenta algum. O certo é que são qualquer outra coisa, e o que sinto não está certo com a vida.(...)Em mim nota-se igual perturbação da certeza do sentimento, mas nem sou calculista nem sou escrupuloso. Não tenho desculpa para sentir mal. Por instinto desnaturo os instintos. Sem querer, quero erradamente.


O erudito,o verdadeiro leitor, o verdadeiro fazedor de livros, vive saturado pela intensidade terrível da ficção...As torres que nos isolam são mais sólidas do que o marfim. Não conheço resposta satisfatória para este problema...

A vida é,por isso, para os indefinidos; só podem conviver os que nunca se definem, e são, um e outro, ninguéns.Cada um de nós é dois, e quando duas pessoas se encontram, se aproximam,se ligam, é raro que as quatro possam estar de acordo.
Toda a aproximação é um conflito. O outro é sempre o obstáculo para quem procura. Só quem não procura é feliz; porque só quem não busca encontra, visto que quem não procura já tem, e já ter, seja o que for, é ser feliz (como não pensar é a parte melhor, de ser rico). Olho para ti, dentro de mim, noiva suposta, e já nos desavimos antes de existires. O meu hábito de sonhar claro dá-me uma noção justa da realidade. Quem sonha demais precisa de dar realidade ao sonho. Quem dá realidade ao sonho tem que dar ao sonho o equilíbrio da realidade...



A saliva que eu gastei para te mudar, mas esse teu mundo era mais forte do que eu e nem com a força da música ele se moveu!
Contigo aprendi uma grande lição: não se ama alguém que não ouve a mesma canção!




Encontro...
Encontro,empatia...
Empatia,encanto...
Encanto,deslumbramento...
Deslumbramento,cumplicidade...
Cumplicidade,confiança...
Confiança,intimidade...




Intimidade..
Intimidade,desilusão...
Intimidade,desilusão,desencanto...
Intimidade,desilusão,desencanto,desagrado...
Intimidade,desilusão,desencanto,desagrado,irritação...
Intimidade,desilusão,desencanto,desagrado,irritação,raiva...
Intimidade,desilusão,desencanto,desagrado,irritação,raiva,desprezo...


Em todas as ruas te encontro
em todas as ruas te perco ...


sonhei tanto a tua figura
que é de olhos fechados que eu ando
a limitar a tua altura
e bebo a água e sorvo o ar
que te atravessou a cintura
tanto tão perto tão real
que o meu corpo se transfigura
e toca o seu próprio elemento
num corpo que já não é seu
num rio que desapareceu
onde um braço teu me procura


Em todas as ruas te encontro
em todas as ruas te perco




Everything must start again anew Everything just goes that way my friend Every king knows it to be true That every kingdom must one day come to an end...


Ricardo Reis repara que por baixo da sua porta passa uma réstia luminosa, ter-se-ia esquecido, enfim, são coisas que podem acontecer a qualquer, meteu a chave na fechadura, abriu, sentado na sofá estava um homem, reconheceu-o imediatamente apesar de não o ver há tantos anos, e não pensou que fosse acontecimento irregular estar ali à sua espera Fernando Pessoa, disse Olá, embora duvidasse de que ele lhe responderia, nem sempre o absurdo respeita a lógica, mas o caso é que respondeu, disse Viva, e estendeu-lhe a mão, depois abraçaram-se, Então como tem passado, um deles fez a pergunta, ou ambos, não importa averiguar, considerando a insignificância da frase. Ricardo Reis despiu a gabardina, pousou o chapéu, arrumou cuidadosamente a guarda-chuva no lavatório, se ainda pingasse lá estaria o oleado do chão, mesmo assim certificou-se primeiro, apalpou a seda húmida, já não escorre, durante todo o caminho de regresso não chovera. Puxou uma cadeira e sentou-se defronte do visitante, reparou que Fernando Pessoa estava em corpo bem feito, que é a maneira portuguesa de dizer que o dito corpo não veste sobretudo nem gabardina nem qualquer outra protecção contra o mau tempo, nem sequer um chapéu para a cabeça, este tem só o fato preto, jaquetão, colete e calça, camisa branca, preta também a gravata, e o sapato, e a meia, como se apresentaria quem estivesse de luto ou tivesse por ofício enterrar os outros. Olham-se ambos com simpatia, vê-se que estão contentes por se terem reencontrado depois da longa ausência...


que o mais fácil é perder que o difícil é pensar em acordar...



Estou saturada de patetas, de crentes, de declarações de amor e de amizade, de frases feitas e desfeitas, de banalidades solenes, de solenidades banais... Sinto-me a asfixiar: "O real dá-me asma." We are so lonely in life that we must ask ourselves if the loneliness of dying is not a symbol of our human existence.



Never feel too good in crowds With folks around, when they're playing The anthems of rape culture loud Crude and proud creatures baying All I've ever done is hide From our times when you're near me...


A vida é pouco aos bocados.
O amor é vida a sonhar.
Olho para ambos os lados
E ninguém me vem falar.


Tenho vontade de ver-te
Mas não sei como acertar.
Passeias onde não ando,
Andas sem eu te encontrar.




Leve sonho, vais no chão
A andares sem teres ser.
És como o meu coração
Que sente sem nada ter.



Houve tempo em que me irritavam aquelas coisas que hoje me fazem sorrir. E uma delas, que quase todos os dias me lembram, é a insistência com que os homens quotidianos e activos na vida sorriem dos poetas e dos artistas. Nem sempre o fazem, como crêem os pensadores dos jornais, com um ar de superioridade.
Isto irritava-me antigamente, porque supunha, como os ingénuos, e eu era ingénuo, que esse sorriso dado às preocupações de sonhar e dizer era um eflúvio de uma sensação íntima de superioridade. É somente um estalido de diferença. E, se antigamente eu considerava esse sorriso como um insulto, porque implicasse uma superioridade, hoje considero como uma dúvida inconsciente; como os homens adultos muitas vezes reconhecem nas crianças uma agudeza de espírito superior à própria, assim nos reconhecem, a nós que sonhamos e o dizemos, uma qualquer coisa diferente de que eles desconfiam como estranha. Quero crer que, muitas vezes, os mais inteligentes deles entrevejam a nossa superioridade; e então sorriem superiormente, para esconder que a entrevêem.
Mas essa nossa superioridade não consiste naquilo que tantos sonhadores têm considerado como a superioridade própria. O sonhador não é superior ao homem activo porque o sonho seja superior à realidade. A superioridade do sonhador consiste em que sonhar é muito mais prático que viver, e em que o sonhador extrai da vida um prazer muito mais vasto e muito mais variado do que o homem de acção.Em melhores e mais directas palavras, o sonhador é que é o homem de acção.
Sendo a vida essencialmente um estado mental, e tudo, quanto fazemos ou pensamos, válido para nós na proporção em que o pensamos válido, depende de nós a valorização. O sonhador é um emissor de notas, e as notas que emite correm na cidade do seu espírito do mesmo modo que as da realidade. Que me importa que o papel-moeda da minha alma nunca seja convertível em ouro, se não há ouro nunca na alquimia factícia da vida? Depois de todos nós vem o dilúvio, mas é só depois de todos nós. Melhores, e mais felizes, os que, reconhecendo a ficção de tudo, fazem o romance antes que ele lhes seja feito, e, como Maquiavel, vestem os trajes da corte para escrever bem em segredo.




Maybe I listen more than you think I can tell that somebody sold you We said we've never let anyone in We said we'd only die of lonely secrets The system only dreams in total darkness Why are you hiding from me? We're in a different kind of thing now...

Há reencontros que são problemas sem solução...

Nenhum problema tem solução. Nenhum de nós desata o nó górdio; todos nós ou desistimos ou o cortamos. Resolvemos bruscamente, com o sentimento, os problemas da inteligência, e fazêmo-lo ou por cansaço de pensar, ou por timidez de tirar conclusões, ou pela necessidade absurda de reencontrar um apoio, ou pelo impulso gregário de regressar aos outros e à vida. Como nunca podemos conhecer todos os elementos de uma questão, nunca a podemos resolver. Para atingir a verdade faltam-nos dados que bastem, e processos intelectuais que esgotem a interpretação desses dados.

A minha memória, até a minha memória involuntária, perdera o amor de Albertine. Mas parece existir uma memória involuntária dos membros, uma pálida e estéril imitação da outra, e que vive mais tempo, assim como certos animais não inteligentes vivem mais tempo do que o homem.

Só um momento do passado? Talvez muito mais ; algo que , simultaneamente, comum ao passado e ao presente, é muito mais essencial que os dois. Demasiadas vezes a realidade me decepcionara ao longo da minha vida, porque no momento em que a aprendia a minha imaginação, que era o meu único órgão para desfrutar a beleza, ela se não lhe podia aplicar, por virtude da lei inevitável segundo a qual não podemos imaginar senão o que está ausente.(...) Mas esta ilusão de óptica que colocava junto de mim um momento do passado incompatível com o presente era uma ilusão que não durava muito.(...) De sorte que o que o ser por três ou quatro vezes ressuscitado em mim acabava de saborear eram porventura fragmentos de existência subtraídos ao tempo , mas essa contemplação , se bem que de eternidade era fugida.

Não me parecia que viesse ainda a ter forças para manter por muito tempo agarrado a mim aquele passado que descia já até tão longe. Mas,ao menos, se tais forças me fossem concedidas pelo tempo suficiente para realizar a minha obra não deixaria de acima de tudo de descrever nela os homens... visto que, como gigantes imersos nos anos, eles atingem siultaneamente épocas tão distantes, entre as quais tantos dias ocuparam o seu lugar: no Tempo.

FIM

Reencontro inesperado com Gonçalo M.Tavares...

Perdem-se os pensamentos que guardamos para nós.

Lilith atravessou um caixão aberto, correu de um lado ao outro do caixão. Apenas dois metros de comprimento: duas sensações estranhas: correr em espaço tão curto e esse movimento intenso dentro de uma caixa para guardar a imobilidade. Um exercício filosófico: correr dentro de um caixão.(...) Queres ser louco sobre mim?
Eis a permissão mais generosa: Lilith aceitava que cada um pousasse sobre ela a sua loucura individual.
Podes ser louco à vontade, não contarei a ninguém.
Só as grandes amizades permitem a loucura. A loucura como teste.
Ainda não sei se és meu amigo pois ainda não fiquei louco.



Provadores - Pensar em provadores de música semelhantes aos provadores de vinho. Provam com a orelha: trinta segundos de som e rapidamente percebem o essencial. Sete orquestras em sete salas diferentes, salas fechadas. O provador de sons abre, uma após outra, cada uma das portas e inclina o seu sistema auditivo na direcção do som durante trinta segundos. Durante trinta segundos de vida nada existe senão trinta segundos de música. Ou seja, não são trinta segundos de vida, são trinta segundos de música. Já está. O provador segue para a sala seguinte. No fim, diz: escolho aquela sala, aquela música.

Um homem que gostava de ouvir música às escuras mas com uma lanterna na mão. Quando ligava a lanterna, não a apontava para o aparelho técnico de onde saíam os sons, mas sim para o espaço por onde a música se espalhava. Queria localizar os sons como se localiza um objecto.Eis o ouvido atento: é, além de tudo o mais, um ouvido‑geómetra. Um ouvido que tenta organizar os sons em formas. (Passar de uma modalidade do tempo para uma modalidade do espaço.) O ruído é, então, aquilo para o qual o ouvinte‑geómetra ainda não encontrou o lápis capaz de fazer traços decisivos. Traços que definem interior e exterior, lado direito e esquerdo, baixo e alto. Traços que organizam. Porque o ouvinte‑geómetra faz isto: desenha por cima dos sons; desenha com o ouvido, acto tão estranho; desenha com a sua atenção, com a sua audição meticulosa, desenha separando, organizando — aproximando um som louco de outros sons que o podem ajudar a compreender

Como é que um som deixa de ser louco, como é que um som deixa de ser delirante? Exatamente como uma pessoa deixa de ser louca. Quando algo ou alguém a compreende, a escuta e diz, de forma clara e sincera: entendo-a. Entender o louco é já curá-lo, é já deixar de o considerar louco.

Uma forma de não estares sozinho: cantas, outra forma antiga é esta: pensas. Em vez de optares pela companhia dispensável...eis que optas por não estar sozinho porque pensas ou cantas.

O tempo não se vê nem se ouve, nem se toca. O tempo é portanto coisa invisível e muda, sem cheiro ou sabor, é o nada sem volume nem forma, esse nada que nos esmaga e domina.

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