Não é neccessário vivermos ao lado de alguém para nos sentirmos ligados a esse alguém mais do que a qualquer outra pessoa...

sábado, 13 de maio de 2017

Anseios: plenitude e perfeição ...

Que plenitude tão apócrifa: vaguear, inutilmente, pela noite, a tentar escrever qualquer coisa de jeito, à espera de d.sebastião...

Nem sei por que me queixo... Adoro as noites mal dormidas, dormidas de modo intermitente, sem sequer ir à cama, num ritual que me dá uma certa sensação de liberdade: sofá, computador, sofá , computador: penso,escrevo; dormito, escrevo; sonho, escrevo num ciclo de uma ociosidade indiferente a tempo e espaço, absolutamente inefável...


Muitas outras virtudes certamente poderia alguém louvar em Sócrates, e admiráveis; todavia, das demais atividades, talvez também a respeito de alguns outros se pudesse dizer outro tanto; o facto porém de a nenhum homem assemelhar-se ele, antigo ou moderno, eis o que é digno de toda admiração. Com efeito, qual foi Aquiles, tal poder-se-ia imaginar Brasidas e outros, e inversamente, qual foi Péricles, tal Nestor e Antenor – sem falar de outros – e todos os demais por esses exemplos se poderia comparar; o que porém é este homem aqui, o que há de desconcertante na sua pessoa e nas suas palavras, nem de perto se poderia encontrar um semelhante, quer se procure entre os modernos, quer entre os antigos, a não ser que se lhe faça a comparação com os que eu estou dizendo, não com nenhum homem, mas com os silenos e os sátiros, e não só de sua pessoa como de suas palavras.

No início, a raça dos homens não era como hoje. Era diferente. Não havia dois sexos, mas três: homem, mulher e a união dos dois. E esses seres tinham um nome que expressava bem essa sua natureza e hoje perdeu o seu significado: Andrógino. Além disso, essa criatura primordial era redonda: as suas costas e as partes laterais formavam um círculo e ela possuía quatro mãos, quatro pés e uma cabeça com duas faces exatamente iguais, cada uma olhando numa direção, pousada num pescoço redondo. A criatura podia andar ereta, como os seres humanos fazem, para frente e para trás. Mas podia também rolar sobre os seus quatro braços e quatro pernas, veloz como um raio de luz. Eram redondos porque redondos eram seus pais: o homem era filho do Sol. A mulher, da Terra. E o par, um filhinho da Lua.
A sua força era extraordinária e o seu poder, imenso. E isso tornou-os ambiciosos. E quiseram desafiar os deuses. Foram eles que ousaram escalar o Olimpo, a montanha onde vivem os imortais. O que deviam fazer os deuses reunidos no conselho celeste? Aniquilar as criaturas? Mas como ficar sem os sacrifícios, as homenagens, a adoração? Por outro lado, tal insolência era perfeitamente intolerável. Então...O Grande Zeus rugiu: Deixem que vivam. Tenho um plano para os deixar mais humildes e diminuir o seu orgulho. Vou cortá-los ao meio e fazê-los andar sobre duas pernas. Isso com certeza irá diminuir a sua força, além de ter a vantagem de aumentar o seu número, o que é bom para nós. E mal tinha falado, começou a partir as criaturas em dois, como uma maçã. E, à medida em que os cortava, Apolo ia virando suas cabeças, para que pudessem contemplar eternamente sua parte amputada. Uma lição de humildade. Apolo também curou as suas feridas, deu forma ao seu tronco e moldou a sua barriga, juntando a pele que sobrava no centro, para que eles se lembrassem do que haviam sido um dia. E assim as criaturas começaram a morrer. Morriam de fome e de desespero. Abraçavam-se e deixavam-se ficar assim. E quando uma das partes morria, a outra ficava à deriva, procurando, procurando... Zeus ficou com pena das criaturas. E teve outra ideia. Virou as partes reprodutoras dos seres para a sua nova frente. Antes, eles copulavam com a terra. De agora em diante, se reproduziriam um homem numa mulher. Num abraço. Assim a raça não morreria e eles descansariam. Poderiam até mesmo continuar a viver. Com o tempo eles esqueceriam o ocorrido e apenas perceberiam o seu desejo. Um desejo jamais inteiramente saciado no ato de amar, porque, mesmo derretendo-se no outro pelo espaço de um instante, a alma saberia, ainda que não conseguisse explicar, que seu anseio jamais seria completamente satisfeito. E a saudade da união perfeita renasceria, ainda antes de os últimos gemidos do amor se terem extinguido.
E esta é a nossa história. De como um dia fomos um todo, inteiros e plenos. Tão poderosos que rivalizávamos com os deuses. É a história também de como um dia, partidos ao meio, nos tornámos em dois e aprendemos a sentir saudades. E é a razão dessa busca sem fim do abraço que nos fará sentir de novo e uma vez mais, ainda que só por alguns momentos (quem se importa?), a emoção da plenitude que um dia, há muito tempo, perdemos.


Os seres imperfeitos agitam-se e acasalam-se para se completarem, mas as coisas verdadeiramente belas são solitárias como a dor humana...Sendo a arte a única forma de posse verdadeira, o que importa é recriar um ser e não prendê-lo... Só se possuem eternamente os amigos de quem nos separamos.

Plenitude- s.f. Condição daquilo que está completo, inteiro; que se apresenta na sua totalidade ou integralmente.
Sinónimos: completude, inteireza e totalidade.

(Não importa o que dizem dicionários e prontuários: a plenitude já foi conseguir dar um aula com todos os alunos calados... Há desígnios absolutamente insondáveis ... Será triste chegar a esta idade e nunca ter conseguido nada mais "completo,inteiro e total" do que dominar uma técnica pedagógica, mas reconheço-me, no entanto, este pequeno, mas significativo orgulho: considero-me uma stora plena... Talvez por isso, conviva com crescente dificuldade com a mediania cinzenta que me rodeia: gente sem saber e sem ser, gente sem ética e sem estética, gente que segue, mecânica e acefalamente, o manual, atingindo um verdadeiro orgasmo pedagógico porque "cumpri o dever, cumpri o programa, cumpri os normativos!!!". Que triste normalidade...cumprir, seguir, sem criatividade,sem produção divergente...
Pensei nos motivos da minha paranormalidade, o que me tornará tão exigente consigo e com os outros, o que fará de mim um ser intrinsecamente intolerante, debaixo de uma capa de amabilidade compreensiva e generosa. A resposta só pode radicar num ideal de plenitude, de perfeição que, desde sempre, me tem perseguido... Uma plenitude e uma perfeição que, paradoxalmente, podem ser vícios, defeitos, desde que integralmente assumidos.)

Um dia quebrarei todas as pontes Que ligam o meu ser, vivo e total, À agitação do mundo do irreal, E calma subirei até às fontes Irei até às fontes onde mora A plenitude, o límpido esplendor Que me foi prometido em cada hora, E na face incompleta do amor Irei beber a luz e o amanhecer, Irei beber a voz dessa promessa Que às vezes como um vôo me atravessa, E nela cumprirei todo o meu ser

- Ó sonho desprendido, ó luar errado, Nunca em meus versos poderei cantar, Como ansiara, até ao espasmo e ao oiro, Toda essa Beleza inatingível, Essa Beleza pura!

Há momentos em que sinto uma intensa necessidade de forever... de superar este eterno efémero que tem sido a minha existência: quero lá saber da plenitude...Bastam algumas palavras...

Words! Mere words! How terrible they were! How clear, and vivid, and cruel! One could not escape from them. And yet what a subtle magic there was in them! They seemed to be able to give a plastic form to formless things, and to have a music of their own as sweet as that of viol or of lute. Mere words! Was there anything so real as words?

Words are but symbols for the relations of things to one another and to us; nowhere do they touch upon the absolute truth.

Há palavras que nos beijam Como se tivessem boca. Palavras de amor, de esperança, De imenso amor, de esperança louca. Palavras nuas que beijas Quando a noite perde o rosto; Palavras que se recusam Aos muros do teu desgosto. De repente coloridas Entre palavras sem cor, Esperadas inesperadas Como a poesia ou o amor. (O nome de quem se ama Letra a letra revelado No mármore distraído No papel abandonado) Palavras que nos transportam Aonde a noite é mais forte, Ao silêncio dos amantes Abraçados contra a morte.

Fazem-me falta as palavras, mas vou ter de me habituar...Tenho sempre a possibilidade de recorrer a empréstimos. Restam-me as palavras de outrora... agora.

Drama perfeito num único ato...
Pessoas do drama - Dois sobreviventes, num mundo em que as palavras são proibidas:
S1 - Ele
S2 - Ela
(Ele e Ela encontram-se ...Não se fica a saber nem onde nem quando...)
S1- Onde estamos?
S2- Onde combinámos.
S1- Quando?
S2 -Isso importa?
S1- Talvez não...
S2- O importante é que estamos, agora, aqui...
S1- Sim, isso é que importa: nós, agora, aqui...
S2 - Eu gosto de estar aqui, mesmo sem saber onde estou...
S1 - Eu também...
S2 - Estamos onde queremos, porque queremos...
S1 - Será?
S2 - É.
S1 - Às vezes, tenho medo...
S2 - Eu sei, sinto o teu medo e, às vezes, o teu medo torna-se o meu medo.
S1 - Se tu ficas com o meu medo, ele deixa de ser meu, não é?
S2 - O medo não tem dono , o medo é o medo : o medo, o verdadeiro medo, não se explica, não tem causas.
S1- Haverá quem tenha poder sobre o medo?
S2 - Ninguém...mesmo antes de as palavras serem proibidas.
S1 - Porquê?
S2 - Talvez porque o medo, tal como a dor, não aceita ordens de ninguém...
S1 - Talvez...Mas não viemos aqui para falar de medo...
S2 - Sim, Eu sei...
S1 - Viemos falar de quê?
S2 - Viemos falar sobre palavras...
S1 - Já me recordo: palavras por escrever... É assim?
S2 - Tanto faz...
S1 - Gostas das palavras que eu escrevo?
S2 - Gosto.Sabes que gosto porque elas também são minhas.
S1 - Eu não as escrevo para ti...
S2 - Mas eu leio-as como se o fossem.
S1 - Sabes o que pensei?
S2 - Diz.
S1 - Se as palavras não fossem proibidas, nós não existiríamos.
S2 - Explica.
S1 - Nós somos só feitos da procura de palavras...
S2 - Nós, quem?
S1 - Eu e tu.
S2 - Mas eu e tu somos eu e tu, não somos nós.
S1 - Todos os eus e tus são nós, não é?
S2 - Não sei se é, mas pode passar a ser...Está a ficar dia,dá-me as tuas palavras.
S1 - Toma.
(Ele sorri e entrega-lhe um monte de folhas que ela percorre rapidamente com os olhos.)
S2 - Falta uma...
S1 - Como sabes?
S2 - Sei.
S1 - Como sabes se eu ainda não a escrevi?
S2 - Porque eu já a li...
S1- ( Esboça um sorriso cúmplice...) E tu, que palavras me trazes?
S2 - Toma.
( Ela entrega-lhe um livro.Ele agradece e sorri sem palavras.Abre o livro.)
S1 - Só me dás palavras já escritas...( Com um tom triste,desiludido...)
S2 - Mas nunca foram lidas.
31 - A última página está em branco.
S2- Este livro é uma despedida. Quando acabares de o ler, já não precisas mais de mim.
( Ele olhou-a,aparentemente surpreendido, mas não proferiu uma única palavra.)
Este livro tem todas as palavras,menos uma. Tens um lápis?
S1 - Tenho, mas...
S2 - Dá cá.
(Ela escreve, na página em branco: Adeus...)
S1 - Posso apagar?
( Ela encolhe os ombros, sorri e começa a dançar...)
Ouve-se , ao longe, uma melodia encantadora...

( Ele aproxima-se, sorri e, com um gesto muito lento, convida-a a dançar.)
S2 - Mas eu não sei...
S1 - Eu também não...
S2 - E...
S1 - Dançamos ao ritmo das palavras que ouvimos dentro de nós...
(S1 e S2 afastam-se a dançar muito lentamente...)
Cai o pano...

Um retrato perfeito:
Continuo igual ao que sempre fui, oscilando entre a ira e o riso que me produzem as coisas, sem meio termo, são os meus dois modos complementares de de me relacionar com o mundo e de andar por aí. Ou me enfureço ou me rio, ou ambas as coisas alternadamente, e ambas dentro de mim. Não mudo...A doença não me enfurece nem me faz rir. Se ela avançar, se se confirmar...observar-me-ei. Estou assustado.

Um homem perfeito...
Segundo contava a ama, aquele Terry Armstrong de que Clare pouco mais soube do que o nome, era, não só entusiasta e voluntarioso, como um bom amante.Era um desses homens que escrevem cartas e versos com suficiente seriedade e com suficiente ironia, que desencadeia energias e as contagiam com a sua vitalidade, provocando o riso e ilusões a quem se sente amado por eles. Aparecia e desaparecia e nunca se sabia exatamente quando iria reaparecer... Talvez TA nem fosse o seu verdadeiro nome ... ele era Mr. Terry Armstrong e eu, miss Clare, a menina da casa, sendo irrelevante que fôssemos mais ou se éramos algo mais. A relação clandestina de minha mãe com TA durou...ano e meio...até que a ama me contou que a minha mãe ficou grávida, acreditando que o filho era de TA.

Mi madre dijo: "No sé lo que quiero, ojalá lo supiera,estoy cansada de no saberlo.
E respondió mi padre:" En cambio yo estoy cansado de saberlo y no poder conseguirlo"


Este lacónico diálogo é uma síntese perfeita da minha existência: era la madre; soy el padre ...



MARIA: Amo como o amor ama. Não sei razão pra amar-te mais que amar-te. Que queres que te diga mais que te amo, Se o que quero dizer-te é que te amo? Não procures no meu coração...Quando te falo, dói-me que respondas Ao que te digo e não ao meu amor. Quando há amor a gente não conversa: Ama-se, e fala-se para se sentir. Posso ouvir-te dizer-me que tu me amas, Sem que mo digas, se eu sentir que me amas. Mas tu dizes palavras com sentido, E esqueces-te de mim; mesmo que fales Só de mim, não te lembras que eu te amo.(...)Mostra-te indiferente, ou não me queiras, Mas tu és como nunca ninguém foi, Pois procuras o amor para não amar, E, se me buscas, é como se eu só fosse O Alguém pra te falar de quem tu amas. Diz-me porque é que o amor te faz ser triste? Canso-te? Posso eu cansar-te se amas? Ninguém no mundo amou como tu amas. Sinto que me amas, mas que a nada amas, E não sei compreender isto que sinto. Dize-me qualquer palavra mais sentida Que essas palavras que, como se as perderas, buscas E encontras cinzas. Quando te vi, amei-te já muito antes. Tornei a achar-te quando te encontrei. Nasci pra ti antes de haver o mundo. Não há coisa feliz ou hora alegre Que eu tenha tido pela vida fora, Que não o fosse porque te previa, Porque dormias nela, tu futuro, E com essas alegrias e esse prazer Eu viria depois a amar-te.(...) Em palavras estranhas que mo fales, Eu compreenderei só porque te amo. Se o teu segredo é triste, eu saberei Chorar contigo até que o esqueças todo. Se o não podes dizer, dize que me amas, E eu sentirei sem querer o teu segredo. Quando eu era pequena, sinto que eu Amava-te já hoje, mas de longe, Como as coisas se podem ver de longe, E ser-se feliz só por se pensar Em chegar onde ainda se não chega. Amor, diz qualquer coisa que eu te sinta!
FAUSTO: Compreendo-te tanto que não sinto. Oh coração exterior ao meu!Fatalidade filha do destino E das leis que há no fundo deste mundo! Que és tu a mim que eu compreenda ao ponto De o sentir...?
MARIA: Para que queres compreender Se dizes querer sentir?




Adoramos a perfeição, porque a não podemos ter; repugná-la-íamos se a tivéssemos. O perfeito é o desumano porque o humano é imperfeito. O ódio surdo ao paraíso — o desejo como o da pobre infeliz de [que] houvesse campo no céu. Sim, não são os êxtases do abstracto, nem as maravilhas do absoluto que podem encantar uma alma que sente: são os lares e as encostas dos montes, as ilhas verdes nos mares azuis, os caminhos através de árvores e as largas horas de repouso nas quintas ancestrais, ainda que as nunca tenhamos. Se não houver terra no céu mais vale não haver céu. Seja então tudo o nada e acabe o romance que não tinha enredo.
Para poder obter a perfeição fora precisa uma frieza de fora do homem e não haveria então coração de homem com que amar a própria perfeição. Pasmamos, adorando, da tensão para o perfeito dos grandes artistas. Amamos a sua aproximação do perfeito, porém o amamos porque é só aproximação.


Falamos muito, e com hipocrisia, no sentimento que temos da beleza antiga, e das civilizações mães da nossa, e que foram pagãs. Mas nós não temos a alma grega nem a alma romana. Amamo-las de pertil, incorporeamente. Nada da alma antiga está em nós ou connosco. A nossa ânsia de beleza clássica é toda cristã na sua fúria de perfeição, no seu desassossego... Amamos a beleza demasiadamente: os gregos não a amaram assim. Para o seu sentimento passava a calma da lucidez com que viam. Ver muito lucidamente prejudica o sentir demasiado. E os gregos viam muito lucidamente. Por isso pouco sentiam. Daí a sua perfeita execução da obra de arte. Para executar a obra de arte com perfeita perfeição é preciso não sentir excessivamente a beleza que se vai esculpir. A arte grega era toda de equilíbrio e (...). E era a arte de quem via sabendo ver...Não há arte senão a arte grega. Não há beleza senão como a Grécia a criou. Reconhecemos isto — muitos de nós — obscuramente. Na realidade, a nossa alma anda tão longe disso que todos os dias traímos a uma linguagem mãe, a (...) Grécia Antiga. O nosso romanismo secou-nos, e o nosso cristianismo apodreceu-nos. Ficámos secos e pôr isso moles.



Sofremos de cada vez que duvidamos de alguém ou de qualquer coisa, mas o nosso sofrimento transforma-se em alegria logo que aprendemos, nessa pessoa ou nessa coisa, a beleza imortal que nos fazia amá-la...
Não consigo esta perfeição: o meu sofrimento só evolui para uma mágoa enorme e para uma descrença destrutiva...

Não irei mais longe, Gherardo. Não te acompanho mais porque o trabalho urge e eu sou um homem velho. Sou um homem velho, Gherardo. Às vezes, quando te entregas mais à ternura, chegas a chamar-me teu pai. Mas eu não tenho filhos. Nunca encontrei mulher tão bela como as minhas figuras de pedra, mulher que ficasse horas imóvel sem falar, como coisa necessária que não precisa de agir para ser, e nos faz esquecer que o tempo passa porque está sempre presente. Mulher que se deixe olhar sem sorrir nem corar porque compreendeu que a beleza é qualquer coisa de grave. As mulheres de pedra são mais castas que as outras, e mais fiéis, porém, são estéreis. Não há fenda por onde se possa introduzir nelas o prazer, a morte, ou a semente de uma criança, e por isso elas são menos frágeis. Por vezes quebram-se e em cada pedaço de mármore fica contida a sua beleza inteira, como Deus que está em todas as coisas, mas nada de estranho entra nelas que dilate o seu coração. Os seres imperfeitos agitam-se e acasalam-se para se completarem, mas as coisas só belas são solitárias como a dor humana. Gherardo, não tenho filhos. Eu bem sei que a maioria dos homens não tem propriamente um filho: têm Tito, ou Caio, ou Pedro, e não é a mesma alegria. Se eu tivesse um filho, ele não se havia de parecer com a imagem que eu dele formara antes de existir. Assim também as estátuas que faço são diferentes daquelas que comecei por sonhar. Mas Deus permite-se ser conscientemente criador. Se fosses meu filho, Gherardo, eu não te amaria mais, mas não teria que perguntar-me porquê. Toda a minha vida procurei respostas a perguntas que talvez não tenham resposta e perscrutei o mármore como se a verdade se encontrasse no coração das pedras, e espalhei as cores para pintar muralhas como se se tratasse de fixar acordes sobre um enorme silêncio. Tudo se cala, sabes, até a nossa alma —ou então somos nós que não ouvimos.
Assim, tu partes.Na minha idade já não se dá importância a uma separação, mesmo que definitiva. Eu bem sei que os seres que amamos e que nos amam mais se vão separando insensivelmente de nós a cada momento que passa. É também deste modo que se vão separando de si próprios. Estás sentado sobre essa pedra e julgas-te ainda aí,mas o teu ser, voltado para o futuro, não adere mais ao que foi a tua vida,e a tua ausência já começou. É certo que compreendo que tudo isto é ilusão, como o resto, e que o futuro não existe. Os homens que inventaram o tempo, inventaram por contraste a eternidade, mas a negação do tempo é tão vã como ele próprio. Não há nem passado nem futuro mas apenas uma série de presentes sucessivos, um caminho perpetuamente destruído e continuado onde todos vamos avançando.
Estás sentado, Gherardo, mas os teus pés estão assentes no solo com a inquietação de quem experimenta o caminho. Estás vestido com trajes do nosso século, que hão-de parecer feios ou simplesmente estranhos quando o século tiver passado pois as vestes não são mais que a caricatura do corpo.Vejo-te nu. Tenho o dom de ver através das roupas o irradiar do corpo, que é como os santos vêem as almas, segundo penso. É um suplício quando são feios, mas é um outro suplício quando são belos, dessa beleza frágil que a vida e o tempo atacam por todos os lados e acabarão por tomar-te, mas neste momento és dono dela e tua será na abóbada da igreja onde pintei a tua imagem. Mesmo que um dia o teu espelho te não mostre mais que um retrato deformado onde não ouses reconhecer-te, existirá sempre noutro sítio o reflexo imóvel de ti. E desse modo imobilizarei a tua alma também.
Tu já não me amas. Se consentes em ouvir-me durante uma hora é porque somos sempre indulgentes com aqueles que vamos deixar. Ligaste-me e agora desligas-me. Não te censuro, Gherardo. O amor de alguém é um presente tão inesperado e tão pouco merecido que devemos espantar-nos que não no-lo retirem mais cedo. Não estou inquieto por aqueles que ainda não conheces, ao encontro de quem vais e que porventura te esperam: aquele que eles vão conhecer será diferente daquele que eu julguei conhecer e creio amar. Não se possui ninguém (mesmo os que pecam não o conseguem) e, sendo a arte a única forma de posse verdadeira, o que importa é recriar um ser e não prendê-lo.Gherardo, não te enganes sobre as minhas lágrimas: vale mais que os que amamos partam quando ainda conseguimos chorá-los. Se ficasses, talvez a tua presença, ao sobrepor-se-lhe, enfraquecesse a imagem que me importa conservar dela. Tal como as tuas vestes não são mais que o invólucro do teu corpo, assim tu também não és mais para mim do que o invólucro de um outro que extraí de ti e que te vai sobreviver.

Gherardo, tu és agora mais belo que tu mesmo. Só se possuem eternamente os amigos de quem nos separamos.


Tudo o que vejo parece-me um reflexo, tudo o que ouço, um eco distante, e a minha alma procura a fonte maravilhosa, pois tem sede de água pura.Passam os séculos e gasta-se o mundo, mas a minha alma permanece jovem; vigia entre as estrelas, na noite dos tempos. Não julgues. A vida é um mistério, cada um obedece a leis diferentes. Conheces porventura a força das coisas que os conduziram, os sofrimentos e os desejos que cavaram o seu caminho? Surpreendeste por ventura a voz da sua consciência a revelar-lhes em voz baixa o segredo do seu destino? Não julgues; olha o lago puro e a água tranquila onde vêm quebrar-se as mil vagas que varrem o universo...É preciso que aconteça tudo aquilo que vês. Todas as ondas do oceano são precisas para levar ao porto o navio da verdade.

Parece-me que se a morte me viesse surpreender antes de eu ter podido mergulhar por completo no rio da vida, havia de dizer-lhe: vai-te embora, ainda não soou a hora...O repouso do teu grande céu azul seria para mim pesado, se me restasse ainda alguma força por esgotar, e a tua felicidade eterna teria um sabor de saudade, se tivesse ficado na terra uma flor de que eu não conhecesse o perfume...

Eu, Miguel Ângelo, entalhador de pedra, desenhei nesta abóbada a imagem de um jovem de Florença que eu amava e que não existe mais. Ele está sentado numa atitude hostil e os seus braços dobrados parecem esconder o seu coração. Mas os mortos têm talvez um segredo que não querem que nós conheçamos.
Amei em primeiro lugar os meus sonhos porque não conhecia outra coisa. Depois amei a minha família …e os amigos que vinham a mim carregados de tanta beleza que eu me sentia ao mesmo tempo humilhado e feliz. Por fim amei uma mulher…Então pus-me de novo a amar os meus sonhos porque não me restava mais nada. Mas os sonhos também podem trair e agora eu estou só.
Amamos porque não somos capazes de suportar estar sós. E é pela mesma razão que temos medo da morte. ... Amei uma só mulher, que não desejei, e quando penso nisso ainda não sei se era por ela não ser suficientemente bela ou por sê-lo de mais. Mas as pessoas não compreendem que a beleza possa ser um obstáculo que aplaca o desejo antes de ele nascer…
Querer imobilizar a vida é a danação de escultor... Beijei, antes que a pusessem no caixão, a mão da única mulher que para mim dava sentido à vida toda, mas não beijei os seus lábios, e agora tenho pena, como se eles tivessem podido ensinar-me qualquer coisa. Também não beijei o jovem de Florença, nem as suas mãos, nem o seu rosto claro. Mas esse não o lamento, era demasiado belo. Era perfeito como aqueles que nada pode atingir, pois os mortos são todos impassíveis… Cecchino dei Bracchi, meu amigo, era simplesmente belo. A sua beleza, que se parcelara em vida em tantos gestos e pensamentos, feitos expressão ou movimento, voltava a ser intacta, absoluta, eterna: parecia que ele tinha composto o corpo antes de o deixar. Vi sorrisos dar cor a lábios exangues, filtrar sob pálpebras cerradas e iluminar tantos rostos. Os mortos repousam satisfeitos numa certeza que nada pode destruir porque é ela que se anula à medida que se cumpre. E porque eles tinham passado além da ciência, eu supus que eles sabiam.
Mas talvez os mortos não saibam que sabem.



Acordo. Que disseram os outros? Aurora que, cada manhã, reconstróis o mundo; integral nos braços nus que conténs o universo; juventude, aurora do homem. Que importa o que outros disseram, o que pensaram, o que acreditaram. Sou Febo del Poggio, um bobo. Os que falam de mim dizem que sou pobre de espírito; talvez nem tenha espírito. Existo como um fruto, como um copo de vinho, como uma árvore. Quando vem o Inverno, as pessoas afastam-se da árvore que não dá sombra; comido o fruto, deitam fora o caroço; vazio o copo, vão buscar outro. Eu aceito. Verão, água lustral da manhã sobre membros ágeis; ó alegria, orvalho do coração…
Acordo. Tenho diante de mim, atrás de mim, a noite eterna. Eu dormi milhões de idades; milhões de idades eu vou dormir… Só tenho uma hora. Havia de estragá-la com explicações e com máximas? Estendo-me ao sol, sobre o travesseiro do prazer, numa manhã que não voltará mais.




A beleza é uma forma de génio... diria mesmo que é mais sublime que o génio por não precisar de qualquer explicação. É um dos grandes factos do mundo, como a luz do sol, ou a primavera, ou o reflexo nas escuras águas dessa concha de prata a que chamamos lua. É inquestionável...

o senhor dispõe só de alguns anos para viver deveras, perfeitamente, plenamente. Quando a mocidade passar, a sua beleza ir-se-á com ela; então o senhor descobrirá que já não o aguardam triunfos, ou que só lhe restam as vitórias medíocres que a recordação do passado tornará mais amargas que destroçadas.

Que tristeza ! Eu envelhecerei, ficarei horrível.... Mas esse quadro sempre se manterá jovem. Nunca será mais velho do que esse dia de Junho … Se fosse o contrário ! Se fosse eu que me mantivesse jovem e o retrato ficasse velho! Por isso, — por isso — Eu daria tudo ! Sim, não há nada no mundo todo que eu não daria por isso.

Ao ver escoar-se a vida humanamente Em suas águas certas, eu hesito, E detenho-me às vezes na torrente Das coisas geniais em que medito. Afronta-me um desejo de fugir Ao mistério que é meu e me seduz. Mas logo me triunfo. A sua luz Não há muitos que a saibam reflectir. A minha alma nostálgica de além, Cheia de orgulho, ensombra-se entretanto, Aos meus olhos ungidos sobe um pranto Que tenho a força de sumir também. Porque eu reajo. A vida, a natureza, Que são para o artista? Coisa alguma. O que devemos é saltar na bruma,Correr no azul à busca da beleza. É subir, é subir além dos céus Que as nossas almas só acumularam, E prostrados rezar, em sonho, ao Deus Que as nossas mãos de auréola lá douraram. É partir sem temor contra a montanha Cingidos de quimera e de irreal; Brandir a espada fulva e medieval, A cada hora acastelando em Espanha. É suscitar cores endoidecidas, Ser garra imperial enclavinhada, E numa extrema-unção d'alma ampliada, Viajar outros sentidos, outras vidas. Ser coluna de fumo, astro perdido, Forçar os turbilhões aladamente, Ser ramo de palmeira, água nascente E arco de ouro e chama distendido... Asa longínqua a sacudir loucura, Nuvem precoce de subtil vapor, Ânsia revolta de mistério e olor, Sombra, vertigem, ascensão - Altura! E eu dou-me todo neste fim de tarde À espira aérea que me eleva aos cumes. Doido de esfinges o horizonte arde, Mas fico ileso entre clarões e gumes!... Miragem roxa de nimbado encanto - Sinto os meus olhos a volver-se em espaço! Alastro, venço, chego e ultrapasso; Sou labirinto, sou licorne e acanto. Sei a distância, compreendo o Ar; Sou chuva de ouro e sou espasmo de luz; Sou taça de cristal lançada ao mar, Diadema e timbre, elmo real e cruz... O bando das quimeras longe assoma...

Ao triunfo maior, avante pois! O meu destino é outro - é alto e é raro. Unicamente custa muito caro: A tristeza de nunca sermos dois...



Vou dormir, dormir, dormir, Vou dormir sem despertar, Mas não dormir sem sentir Que estou dormindo a sonhar. Não insciência e só treva Mas também estrelas a abrir Olhos cujo olhar me enleva, Que estou sonhando a dormir. Constelada inexistência Em que subsiste de meu Só uma abstracta insciência Una com estrelas e céu.

As palavras adquirem, em ricardo reis, uma solenidade hermética que torna os seus versos tão sagrados que receio maculá-los pelo facto de os entoar ,em voz alta. Só gosto de os sentir, em silêncio, e deixar-me possuir por essa beleza. Entrego-me à magia encantatória das palavras como nunca me entreguei a ninguém...

Para ler Kafka são necessários alguns cuidados especiais, entre eles, prestar uma certa atenção à maneira como toda obra se constrói, principalmente os seus períodos; estar sempre consciente de que toda a criação literária de Kafka foi dolorida, feita com o intuito não de parecer bonita, mas de ser, principalmente, uma obra baseada na dor; ficar atento a todos os detalhes do texto, pois em Kafka, até as imperfeições são propositadas, precisas.

São raros os que sentem fascínio pela estrutura interna de um texto: esquematizá-lo, dividi-lo em partes ou momentos, analisar o ritmo discursivo e surpreender os marcadores dessa progressão são tarefas tão deleitosas como captar significantes que, de modo harmonioso, se combinam com significados. Para a generalidade dos leitores , essa é a parte fastidiosa, o que importa é a intriga,o enredo, permanecendo indiferentes à progressão temática ou remática..
Mas, não é verdade:a coesão interna encerra uma simbologia; a dimensão dos parágrafos comunica estados de alma. A capacidade de modelar um texto, como se se estivesse a esculpir uma estátua, revela a organização da mente e traduz uma capacidade artística superior. Um idiota minimamente informado pode escrever (Os exemplos são múltiplos); um idiota sensível até pode conseguir ajeitar-se a alinhavar palavras com sentido (Tantos,tanto...) , mas nunca será capaz de construir um texto coeso, nunca... Por isso proliferam, como ervas daninhas, escrevinhadores e poetas, rareando os verdadeiros escritores...
Definitivamente, a prosa é superior à poesia: a composição poética, regra geral, tem como traço definidor uma brevidade que não exige um arquiteto da palavra...A poesia permite uma emoção que alegra ou entristece, mas não propicia - a não ser em casos excecionais como o de fernando pessoa - êxtase intelectual, perante a grandiosa momumentalidade do que se leu. A mensagem é uma obra grandiosa, verdadeiramente épica, apesar da brevidade sintagmática...

Café nº 5 ,café nº 8, café nº 10 - Acordo cedo, durmo pouco, mas o suficiente. Quando, depois de tratar da gata, preparo , como é hábito, café, dou por mim a contemplar , com um prazer inesperado, a minha obra prima: uma casa perfeitamente organizada, tudo escrupulosamente limpo, no local certo. Começo, então, embevecida, a percorrer as estantes: os livros , aparentemente desordenados,estão perfilados de acordo com uma lógica inquestionável, nacionalidade do autor e, porque a estética também é essencial, arrumados por tamanhos. Dou por mim, quase de fita métrica, a recolocar os exemplares a que "uma empregada descuidada" alterou a simetria... Cada vez gosto menos de sair porque lá fora tudo é desorganizado e dramaticamente imperfeito. Em casa, tenho tudo o que me causa verdadeiro prazer. Em casa sou eu, não preciso de fingir...Em casa, gosto-me e tudo é perfeito.

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