Com uma tal falta de literatura, como há hoje, que pode um homem de génio fazer senão converter-se, ele só, em uma literatura? Com uma tal falta de gente coexistível, como há hoje, que pode um homem de sensibilidade fazer senão inventar os seus amigos, ou, quando menos, os seus companheiros de espírito?
Pensei, primeiro, em publicar anonimamente, em relação a mim... Mas, sobre ser pequeno demais o meio intelectual português, para que (mesmo sem inconfidências) a máscara se pudesse manter, era inútil o esforço mental preciso para mantê-la. Tenho, na minha visão a que chamo interior apenas porque chamo exterior a determinado «mundo», plenamente fixas, nítidas, conhecidas e distintas, as linhas fisionómicas, os traços de carácter, a vida, a ascendência, nalguns casos a morte, destas personagens. Alguns conheceram-se uns aos outros; outros não. A mim, pessoalmente, nenhum me conheceu, excepto Álvaro de Campos... O que é a vida?
Gente coexistível: genial esta expressão...
De tanto se julgar doente, uma pessoa torna-se doente, emagrece, deixa de ter força para se levantar, tem enterites nervosas. De tento pensar nos homens com ternura, um homem torna-se mulher, e um vestido postiço entrava-lhe os passos. Nele, a ideia fixa pode modificar o sexo( tal como nos outros casos a saúde)
E como a pouco e pouco chegava a pensar, mesmo as coisas sociais, no feminino, e sem dar por isso, porque não é só à força de mentirmos aos outros mas também de mentirmos a nós mesmos que deixamos de notar que mentimos , embora tivesse pedido ao seu corpo que manifestasse toda a cortesia de um grande senhor , esse corpo compreendera bem que o senhor de Charlus deixara de ouvir...
Um prosador de temas onde a matéria-prima é só o tempo,mas um tempo antiproustiano,a perder... "Não serei eu que ande em busca do tempo perdido"...
O Sr. Teste é impossível e sem identidade...pode sugerir obsessão de eficácia... Teste foi gerado em era de embriaguez da minha vontade e rodeado por estranhos excessos de consciência de si. Atacara-me a doença da precisão. Eu tendia mais para a aguda forma do desejo insensato de compreender,e procurar em mim os pontos críticos da faculdade de atenção.
Construí uma ilha interior e perdia o tempo a reconhecê-la e fortificá-la.
A incoerência de um discurso depende de quem o ouve.Parece-me que o espírito é assim,só pode ser incoerente para si próprio.
De que sofri mais? Talvez do hábito de desenvolver todo o meu pensamento - de ir ao final de mim.
Não é filósofo, nem nada desse género, nem sequer literato; daí pensar muito - pois quanto mais se escreve, menos se pensa.
Como sabe, caro Você, sou um espírito da mais tenebrosa espécie.Sabe-o por experiência,e ainda melhor por estar farto de ouvi-lo dizer. Modeste tamen et circunspecto Juddicio pronuntiandum est, ne ( quod plerisque )accidit,damnent quae non intelligunt.
Refletir nas coisas que o jornal do dia diz é contar a mim próprio tudo o que ele não diz...
...quando o impossível transpõe de súbito os diques da vida quotidiana...
Tenho a náusea física da humanidade vulgar, que é, aliás, a única que há. E capricho, às vezes, em aprofundar essa náusea, como se pode provocar um vomito para aliviar a vontade de vomitar...A intriga a maledicência, a prosápia falada do que se não ousou fazer, o contentamento de cada pobre bicho vestido com a consciência inconsciente da própria alma, a sexualidade sem lavagem, as piadas como cócegas de macaco, a horrorosa ignorância da inimportância do que são... Tudo isto me produz a impressão de um animal monstruoso e reles, feito no involuntário dos sonhos, das côdeas húmidas dos desenhos, dos restos trincados das sensações.
A obsessão pelo suicídio é própria de quem não pode viver, nem morrer, e cujo pensamento nunca se afasta dessa dupla impossibilidade.
Ora até que enfim..., perfeitamente...
Cá está ela!
Tenho a loucura exactamente na cabeça.
Meu coração estoirou como uma bomba de pataco,
E a minha cabeça teve o sobressalto pela espinha acima...
Ah, onde estou ou onde passo, ou onde não estou nem passo,
A banalidade devorante das caras de toda a gente!
Ah, a angústia insuportável de gente!
O cansaço inconvertível de ver e ouvir!
(Murmúrio outrora de regatos próprios, de arvoredo meu).
Queria vomitar o que vi, só da náusea de o ter visto,
Estômago da alma alvorotado de eu ser...
Tenho vontade de vomitar, e de me vomitar a mim...
Tenho uma náusea que, se pudesse comer o universo para o despejar na pia,
comia-o.
Com esforço, mas era para bom fim.
Ao menos era para um fim.
E assim como sou não tenho nem fim nem vida...
Mas, ah outra vez a raiva mecânica constante!
Outra vez a obsessão movimentada dos ónibus.
E outra vez a fúria de estar indo ao mesmo tempo dentro de todos os comboios
De todas as partes do mundo,
De estar dizendo adeus de bordo de todos os navios,
Que a estas horas estão levantando ferro ou afastando-se das docas.
Talvez o mundo não seja pequeno
Nem seja a vida um facto consumado
Quero inventar o meu próprio pecado
Quero morrer do meu próprio veneno
Quero perder de vez a tua cabeça
Minha cabeça perder o teu juízo
Quero cheirar fumaça de óleo diesel
Embriagar-me até que alguém me esqueça
E no interior de cada castelo de ideias, de cada pardieiro de opiniões sobrepostas aos pardieiros de madeira e aos castelos de pedra, a vida empareda os loucos e abre uma fresta aos sábios.
Tabaco, café, álcool, ácido prússico, estricnina — todos não passam de poções diluídas: o mais infalível veneno é o tempo. Essa taça, que a natureza nos põe nos lábios, possui uma propriedade maravilhosa que supera qualquer outra bebida. Ela abre os sentidos, adiciona poder e povoa-nos de sonhos exaltados, a que chamamos esperança, amor, ambição, ciência. Em particular, ela desperta o desejo por maiores doses de si. Mas aqueles que tomam as maiores doses ficam embriagados, perdem estatura, força, beleza e sentidos, e terminam em fantasia e delírio. Nós adiamos o nosso trabalho literário até que tenhamos maturidade e técnica para escrever, mas um dia descobrimos que o nosso talento literário não passava de uma efervescência juvenil que perdemos.
Odeio as almas estreitas, sem bálsamo e sem veneno, feitas sem nada de bondade e sem nada de maldade.
Ah, mas como eu desejaria lançar ao menos numa alma alguma coisa de veneno, de desassossego e de inquietação. Isso consolar-me-ia um pouco da nulidade de acção em que vivo. Perverter seria o fim da minha vida. Mas vibra alguma alma com as minhas palavras? Ouve-as alguém que não só eu?
Every Sunday's getting more bleak A fresh poison each week We were born sick you heard them say it My church offers no absolutes ...
O homem não deve poder ver a sua própria cara. Isso é o que há de mais terrível. A Natureza deu-lhe o dom de não a poder ver, assim como de não poder fitar os seus próprios olhos. Só na água dos rios e dos lagos ele podia fitar seu rosto. E a postura, mesmo, que tinha de tomar, era simbólica. Tinha de se curvar, de se baixar para cometer a ignomínia de se ver. O criador do espelho envenenou a alma humana.
Pasmo sempre quando acabo qualquer coisa. Pasmo e desolo-me. O meu instinto de perfeição deveria inibir-me de acabar; deveria inibir-me até de dar começo. Mas distraio-me e faço. O que consigo é um produto, em mim, não de uma aplicação de vontade, mas de uma cedência dela. Começo porque não tenho força para pensar; acabo porque não tenho alma para suspender. Este livro é a minha cobardia. A razão por que tantas vezes interrompo um pensamento com um trecho de paisagem, que de algum modo se integra no esquema, real ou suposto, das minhas impressões, é que essa paisagem é uma porta por onde fujo ao conhecimento da minha impotência criadora. Tenho a necessidade, em meio das conversas comigo que formam as palavras deste livro, de falar de repente com outra pessoa, e dirijo-me à luz que paira, como agora, sobre os telhados das casas, que parecem molhados de tê-la de lado; ao agitar brando das árvores altas na encosta citadina, que parecem perto, numa possibilidade de desabamento mudo; aos cartazes sobrepostos das casas ingremadas, com janelas por letras onde o sol morto doira goma húmida.
Por que escrevo, se não escrevo melhor? Mas que seria de mim se não escrevesse o que consigo escrever, por inferior a mim mesmo que nisso seja? Sou um plebeu da aspiração, porque tento realizar; não ouso o silêncio como quem receia um quarto escuro. Sou como os que prezam a medalha mais que o esforço, e gozam a glória na peliça. Para mim, escrever é desprezar-me; mas não posso deixar de escrever. Escrever é como a droga que repugno e tomo, o vício que desprezo e em que vivo. Há venenos necessários, e há-os subtilíssimos, compostos de ingredientes da alma, ervas colhidas nos recantos das ruínas dos sonhos, papoilas negras achadas ao pé das sepulturas [...], folhas longas de árvores obscenas que agitam os ramos nas margens ouvidas dos rios infernais da alma. Escrever, sim, é perder-me, mas todos se perdem, porque tudo é perda. Porém eu perco-me sem alegria, não como o rio na foz para que nasceu incógnito, mas como o lago feito na praia pela maré alta, e cuja água sumida nunca mais regressa ao mar.
Esta foi a celeste formosura
Da minha Circe, e o mágico veneno
Que pôde transformar meu pensamento
Neste dia de mar e nevoeiro
É tão próximo o teu rosto
Aquelas aves que tinham
uma memória eterna do teu rosto
E voam sempre dentro do teu sonho
Como se o teu olhar as sustentasse
Day after day....night after night...
Se é verdade que os únicos paraísos são aqueles que se perderam, sei como hei-de chamar a esta qualquer coisa de terno e de inumano que hoje reside em mim.(...) Não quero ruminar a felicidade. É bem mais simples e é bem mais fácil. Porque destas horas que, do fundo do olvido, torno a trazer até mim, se conservou sobretudo a recordação intacta de uma pura emoção, de um instante suspenso na eternidade. Só isso é verdadeiro em mim e sei-o sempre demasiado tarde. Gostamos da curvatura de um gesto, da oportunidade de uma árvore na paisagem. E para recriar todo este amor não temos senão um pormenor, mas que basta: o cheiro de um quarto fechado por demasiado tempo, o som singular de um passo na estrada. Assim é quanto a mim.
Este é um dos textos que mais me pacifica: é o antídoto perfeito contra todos os venenos que me atormentam a existência...
Sozinho, no cais deserto, a esta manhã de Verão,
Olho pró lado da barra, olho pró Indefinido,
Olho e contenta-me ver,(...)
Mas a minh'alma está com o que vejo menos.
Com o paquete que entra,
Porque ele está com a Distância, com a Manhã,
Com o sentido marítimo desta Hora,
Com a doçura dolorosa que sobe em mim como uma náusea,
Como um começar a enjoar, mas no espírito.
Os prazeres e os perigos da inteligência.
Apresentação do processo de entendimento do mundo, das várias facetas possíveis, que, no processo de crescimento, somos obrigados a experimentar. Vivemos todos os dias, um de cada vez, e de cada vez somos uma metamorfose, uma mutação, do dia anterior.
Mas a principal razão, e essa aplicável à humanidade em geral, era que nem sequer as nossas virtudes são algo de livre, de flutuante, de que guardemos permanente disponibilidade; acabam por ficar tão estreitamente associadas no nosso espírito aos actos em que nos achámos na obrigação de as exercer que, se nos aparece uma actividade de outra ordem, esta encontra‑nos desprevenidos e sem sequer nos ter ocorrido que ela poderia implicar o exercício dessas mesmas virtudes.
Quando pela primeira vez se falou em convidar o senhor de Norpois para jantar lá em casa e a minha mãe exprimiu a pena que tinha de que o professor Cottard andasse em viagem e de que ela própria tivesse deixado completamente de se dar com Swann, porque tanto um como o outro haveriam por certo de interessar ao antigo embaixador, o meu pai respondeu que um conviva eminente, um sábio ilustre como Cottard, não podia nunca calhar
mal num jantar, mas que Swann, com aquela sua ostentação, com aquela maneira de anunciar aos quatro ventos as suas mínimas relações, era um vulgar parlapatão que o marquês de Norpois por certo acharia, segundo a sua expressão, «infecto».
Mas, no que se refere a Cottard, pelo contrário, a época em que o vimos assistir aos primeiros tempos de Swann em casa dos Verdurin ia já bem longe; ora as honras, os títulos oficiais, chegam com os anos. Em segundo lugar, pode‑se ser iletrado, ou fazer trocadilhos estúpidos, sem deixar de possuir um dom especial, que nenhuma cultura geral substitui, como é o dom do grande estratega ou do grande clínico. Efectivamente, não era apenas como um facultativo obscuro transformado com o tempo numa celebridade europeia que os seus confrades viam Cottard. Entre os jovens médicos, os mais inteligentes declararam — ao menos durante alguns anos, porque as modas mudam, visto que elas próprias nascem da necessidade de mudança — que, se alguma vez adoecessem, seria Cottard o único mestre a quem confiariam a própria pele. É claro que preferiam a convivência com certos chefes mais letrados, mais artistas, com quem podiam falar de Nietzsche ou de Wagner. Quando se fazia música em casa da senhora Cottard, nos serões em que ela, na esperança de que o marido viesse um dia a ser director da Faculdade, recebia os colegas e os alunos dele, este, em vez de ouvir, preferia jogar às cartas numa sala ao lado. Mas elogiava‑se a prontidão, a profundidade, a segurança do seu golpe de vista, do seu diagnóstico. Em terceiro lugar, quanto ao conjunto de qualidades que o professor Cottard revelava para um homem como o meu pai, note‑se que a
natureza que revelamos na segunda parte da nossa vida nem sempre é, ainda que muitas vezes o seja, a nossa natureza primordial desenvolvida ou aviltada, aumentada ou atenuada; é por vezes uma natureza inversa, uma verdadeira peça de roupa virada do avesso. Excepto em casa dos Verdurin, que se tinham apaixonado por ele, o ar hesitante de Cottard, a sua timidez e a sua amabilidade excessivas tinham‑lhe valido, na juventude, dichotes constantes. Que caridoso amigo lhe terá aconselhado um ar glacial? A importância da sua situação tornou‑lhe mais fácil o assumi-lo. Em toda a parte, a não ser em casa dos Verdurin, onde por instinto voltava a ser ele mesmo, tornou‑se frio, habitualmente silencioso, peremptório quando tinha de falar, e não se esquecia de dizer coisas desagradáveis. Teve ocasião de experimentar essa nova atitude diante de clientes que ainda o não haviam conhecido, que não estavam em condições de fazer comparações, e que ficariam muito admirados se soubessem que ele não era um homem de rudeza natural. Era sobretudo na impassibilidade que ele se exercitava, e até no seu serviço no hospital, quando debitava alguns daqueles trocadilhos que punham toda a gente a rir, desde o director do serviço até ao externo mais recente, fazia‑o sempre sem que um músculo se lhe alterasse na cara, aliás irreconhecível desde que rapara a barba e o bigode.
Mas, no que dizia respeito ao senhor de Norpois, acontecia sobretudo que, numa longa prática da diplomacia, ele se imbuíra daquele espírito negativo, rotineiro, conservador, do chamado «espírito de governante» e que efectivamente é o de todos os governos e, em especial, em todos os governos, o espírito das chancelarias. Bebera na carreira a aversão, o temor e o desprezo relativamente àqueles processos mais ou menos revolucionários, ou no mínimo incorrectos, que são os processos das oposições. Salvo em alguns iletrados do povo e da sociedade, para os quais a diferença dos géneros é letra morta, o que aproxima não é a comunidade de opiniões, é a consaguinidade dos espíritos.
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