Não é neccessário vivermos ao lado de alguém para nos sentirmos ligados a esse alguém mais do que a qualquer outra pessoa...

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2017

Des - propósitos e máximas...

Trepadeiras de despropósito lambendo de Hora os aléns!

Depois de dias, submetida a um método de trabalho rigoroso, só me apetece leituras a despropósito, assistemáticas , desordenadas, surgidas ao ritmo do que vou sentindo ou pensando- não sei qual é a diferença nem me inquieta tal distinção concetual...

When I think of you in the city The sight of you among the sites I get this sudden sinking feeling...


Vivem em nós inúmeros;
Se penso ou sinto, ignoro
Quem é que pensa ou sente.
Sou somente o lugar
Onde se sente ou pensa.
Tenho mais almas que uma.
Há mais eus do que eu mesmo.


Autorretrato - sou, fútil e sensível, capaz de impulsos violentos e absorventes, maus e bons, nobres e vis, mas nunca de um sentimento que subsista, nunca de uma emoção que continue, e entre para a substância da alma. Tudo em mim é a tendência para ser a seguir outra coisa: uma impaciência da alma consigo mesma, como com uma criança inoportuna; um desassossego sempre crescente e sempre igual. Tudo me interessa e nada me prende. Atendo a tudo sonhando sempre; fixo os mínimos gestos faciais de com quem falo, recolho as entoações milimétricas dos seus dizeres expressos; mas ao ouvi-lo, não o escuto, estou pensando noutra coisa, e o que menos colhi da conversa foi a noção do que nela se disse, da minha parte ou da parte de com quem falei.

Pauis que roçarem ânsias pela minha alma em ouro...
Dobre longínquo d'Outros Sinos... Empalidece o louro
Trigo na cinza do poente... Corre um frio carnal por minha por minha alma...
Tão sempre a mesma, a Hora!... Balouçar de cimos de palma!...
Silêncio da parte inferior das folhas, outono delgado
D'um canto de vaga ave... Azul esquecidos em estagnado...
Ó que mudo grito de ânsia põe garras na Hora!...
Que pasmo de mim anseia por outra coisa que o que chora?...
Estendo as mãos para Além, mas no estender delas já vejo
Que não é aquilo que quero aquilo que desejo...
Címbalos de imperfeição... Ó tão antiguidade
A hora expulsa de si-Tempo!... Onda de recuo que invade
O meu abandonar-me a mim-próprio até desfalecer
E recordar tanto o eu presente que me sinto esquecer...
Fluido de auréola transparente de Foi, oco de ter-se...
O mistério sabe-me a eu ser outro... Luar sobre o não conter-se...
A sentinela é hirta, a lança que finca no chão
É mais alta que ela... P'ra que é tudo isto... Dia chão...
Trepadeiras de despropósito lambendo de Hora os aléns!
Horizontes fechando os olhos ao espaço em que são elos de erro!
Fanfarras de ópios de silêncios futuros!... Longes trens!...
Portões vistos longe, através das árvores, tão de ferro!...


A primeira vez que li Pauis, não gostei, agora faz parte de mim: cada verso é um poema. “Primeiro estranha-se, depois entranha-se.” . É como certas pessoas, quanto mais se estranham, mais se entranham...

Porque não acrediteis que eu escrevo para publicar, nem para escrever nem para fazer arte, mesmo. Escrevo, porque esse é o fim, o requinte supremo, o requinte temperamentalmente ilógico (...), da minha cultura de estados de alma. Se pego numa sensação minha e a desfio até poder com ela tecer-lhe a realidade interior (...) acreditai que o faço não para que a prosa soe lúcida e trémula, ou mesmo para que eu goze com a prosa — ainda que mais isso quero, mais esse requinte final ajunto, como um cair belo de pano sobre os meus cenários sonhados — mas para que dê completa exterioridade ao que é interior, para que assim realize o irrealizável, conjugue e contraditório e, tornando o sonho exterior, lhe dê o seu máximo poder de puro sonho, estagnador de vida que sou, burilador de inexactidões, pajem doente da minha alma Rainha, lendo-lhe ao crepúsculo não os poemas que estão no livro, aberto sobre os meus joelhos, da minha Vida, mas os poemas que vou construindo e fingindo que leio, e ele fingindo que ouve, enquanto a Tarde, lá fora não sei como ou onde, dulcifica sobre esta metáfora erguida dentro de mim em Realidade Absoluta a luz ténue e última dum misterioso dia espiritual.

Meu querido Amigo:
Há tempos que lhe ando prometendo uma extensa carta. Não sei mesmo se, especificando, lhe não falei numa carta de género psicológico, a meu próprio respeito. Em todo o caso, é disso que se trata.
Eu ando há muito - desde que lhe prometi esta carta — com vontade de lhe falar intimamente e fraternalmente do meu «caso», da natureza da crise psíquica que há tempos venho atravessando. Apesar da minha reserva, eu sinto a necessidade de falar nisto a alguém, e não pode ser a outro senão a você — isto porque só você, de entre todos quantos eu conheço, possui de mim uma noção precisamente no nível da minha realidade espiritual.(...) A minha crise é do género das grandes crises psíquicas, que são sempre crises de incompatibilidade, quando não com os outros, por certo com nós-próprios. A minha, agora, não é de incompatibilidade comigo próprio; a minha, gradualmente adquirida, auto disciplina, tem conseguido unificar dentro de mim quantos divergentes elementos do meu carácter eram susceptíveis de harmonização. Ainda tenho muito a empreender dentro do meu espírito; disto ainda muito de uma unificação como eu a quero. Mas, como disse, não é dessa banda que sopra o vento do meu desconsolo actual.
A crise de incompatibilidade com os outros — não, entenda-se desde já, uma incompatibilidade violenta, como a que resultasse de divergências declaradas, nítidas, de ambas as partes. Trata-se de outra coisa. A incompatibilidade é sentida por mim, dentro de mim, e é comigo que está o peso todo da minha divergência de aqueles que me cercam. O facto de eu estar agora vivendo só, por não ter aqui família próxima (...) vem agravar este estado de espírito, por me deixar a nu com a minha alma, sem afeições e interesses familiares próximos a desviar de mim a minha atenção.
Temos pois que vivo há meses numa continua sensação de incompatibilidade profunda com as criaturas que me cercam - mesmo com as próximas, amigos, literários é claro, porque os outros não são indivíduos com quem eu tenha que poder ter intimidade espiritual e por isso — como, em matéria de relações sociais, me dou bem com toda a gente, dou-me bem com eles.
Em ninguém que me cerca eu encontro uma atitude para com a vida que bata certo com a minha íntima sensibilidade, com as minhas aspirações e ambições, com tudo quanto constitui o fundamental e o essencial do meu íntimo ser espiritual. Encontro, sim, quem esteja de acordo com actividades literárias que são apenas dos arredores da minha sinceridade. E isso não me basta.(...)
Passou de mim a ambição grosseira de brilhar por brilhar, e essa outra, grosseiríssima, e de um plebeísmo artístico insuportável, de querer "épater".(...) Tenho-lhe explicado tudo isto muito mal. Quase que me tenta a ideia de rasgar esta carta onde, até, pouca justiça fiz a mim próprio. Mas você deve compreender o que eu sinto, e, creio, regozijar comigo, através da sua amizade, por esta minha evolução ascendente dentro de mim.
Regresso a mim. Alguns anos andei viajando a colher maneiras-de-sentir. Agora, tendo visto tudo e sentido tudo, tenho o dever de me fechar em casa no meu espírito e trabalhar, quanto possa e em tudo quanto possa, para o progresso da civilização e o alargamento da consciência da humanidade. Oxalá me [não] desvie disto o meu perigoso feitio demasiado multilateral, adaptável a tudo, sempre alheio a si próprio e sem nexo dentro de si.
Escuso agora de lhe explicar o quanto esta atitude — que eu, aliás, não revelo, por várias razões, desde a de ser uma coisa íntima até à de ser incompreensível às sensibilidades dos que me cercam — me incompatibiliza surdamente com os que estão em meu redor. Não é uma incompatibilidade violenta, disse; mas é uma impaciência para com todos quantos fazem arte para vários fins inferiores, como quem brinca, ou como quem se diverte, ou como quem arranja uma sala com gosto — género de arte este que dá bem o que eu quero exprimir, porque não tem Além nem outro propósito que o, por assim dizer, decorativamente artístico. E daí a minha «crise» toda. Não é crise para eu me lamentar. É a de se encontrar só quem se adiantou de mais aos companheiros de viagem — desta viagem que os outros fazem para se distrair e acho tão grave, tão cheia de termos de pensar no seu fim, de reflectir no aqui diremos ao Desconhecido para cuja casa a nossa inconsciência guia os nossos passos... Viagem essa, meu querido Amigo, que é entre almas e estrelas, pela Floresta dos Pavores... e Deus, fim da estrada infinita, à espera no silêncio da Sua grandeza...
Bem ou mal — mal, por certo — expus-lhe tudo. Sinto-me contente por lhe ter falado assim, e porque sei que o seu espírito acolhe com simpatia e amizade estas minhas tristezas de altura. Tudo isto, escuso dizer-lhe, é segredo... De resto, a quem o poderia você contar?...
Termino, a tempo felizmente. Mande-me quando puder, cuidadosamente copiados dos originais, os inéditos de Antero de que me fala. Pode ser que, tendo-os aqui, seja conveniente publicá-los nalguma parte. Haverá autorização para isso? É bom saber-se.
Mando-lhe alguns versos meus... Leia-os e guarde-os para si... A seu Pai, se quiser, pode lê-los, mas não espalhe porque são inéditos. Amo especialmente a última poesia, a da Ceifeira onde consegui dar a nota paúlica em linguagem simples. Amo-me por ter escrito
«Ah, poder ser tu, sendo eu!
Ter a tua alegre inconsciência
E a consciência disso!...
e enfim, essa poesia toda.
Tenho escrito mais, mas mando o que está completo e é mais fácil copiar. É pena que vá tudo em letra de máquina, que torna a poesia pouco poética, mas assim é mais rápido e nítido.
Escreva-me sempre, meu caro Côrtes-Rodrigues. Dê cumprimentos meus a seu Pai e receba um grande e fraterno abraço do seu
Fernando Pessoa



Porque nós estamos no âmago das coisas. Já reparou que os canais concêntricos de Amsterdão se parecem com os círculos do inferno? O inferno burguês, naturalmente, povoado de maus sonhos. Quando se chega do exterior, à medida que se passa por estes círculos, a vida, e portanto os seus crimes, tornam-se mais espessos, mais obscuros. Aqui, estamos no último círculo. O círculo dos ... Ah! Sabe disso? Que diabo, o senhor torna -se cada vez mais difícil de classificar. Então compreende por que posso dizer que o fundo das coisas está aqui, embora nos encontremos na extremidade do continente? Um homem sensível compreenderá essas esquisitices...

Perdi-me dentro de mim Porque eu era labirinto, E hoje, quando me sinto, É com saudades de mim. Não perdi a minha alma, Fiquei com ela, perdida. Assim eu choro, da vida, A morte da minha alma É tão negro o labirinto que vai dar à tua rua... Só o fantasma do instinto na cinza do céu flutua. Tens agora a mão fechada; no rosto, nenhum fulgor. Não foi nada, não foi nada: podia ter sido amor. Acho que, depois de 50 anos, o tecto, muito sério, lhe perguntou: "E agora ... para onde?

pânico das alturas ; Lutando contra a amedrontada natureza com que viera ao mundo...; os frágeis nervos ...fizeram-no tremer todo o dia

Não sonhava que estava para lhe acontecer algo muito mais sério que cair simplesmente de uma escada.

então despertou uma fantasia, para poder manter a alma adormecida (cada um se defende como pode ) É absurdo, mas já era tempo de fazer algo absurdo na vida.

Desesperado, levando os nervos desfeitos, quase em lágrimas ...foi para onde o mandaram.

E agora, que pensa fazer, Nada, disse eu, Vai voltar àquelas suas coleções de pessoas famosas, Não sei, talvez, em alguma coisa haverei de ocupar o meu tempo, calei-me um pouco a pensar e respondi, Não, não creio, Porquê, Reparando bem, a vida delas é sempre igual, nunca varia, aparecem, falam, mostram-se, sorriem para os fotógrafos, estão constantemente a chegar ou a partir...

Alguns dos que nascem, entram nas enciclopédias, nas histórias, nas biografias, nos catálogos , nos manuais, nas coleções de recortes. Os outros são como a nuvem que passou sem deixar sinal de ter passado, se choveu, não chegou a molhar a terra. Como eu.

Pela primeira vez na sua vida de pessoa pacífica sentiu um ímpeto de fúria. O que tiver de acontecer, acontecerá, o medo não resolve nada...

tinha medo não lhe perguntemos de quê, esta contradição é das que estão mais à vista...quer e não quer,deseja e teme o que deseja, toda a sua vida tem sido assim.


Ou seja: deixar de ler. Tentativa de levar a escrita aos olhos e não a deixar sair daí. Evitar que se pense -- transferir tudo para uma questão óptica. Não penses, vê - e vê, não penses.

Alguém foge, corre a grande velocidade e está assustado; vê-se pelo rosto que acompanhamos de perto...tudo neste plano mostra à evidência que estamos diante de uma fuga e de uma perseguição.Mas o plano abre-se e temos uma surpresa:o homem está a correr em redor de uma mesa...E não há perseguidor porque só há uma mesa e não há espaço para mais ninguém. Mas o que importa é que de novo vemos ...aquele rosto assustado....



Pessoa...

A arte existe, não, como quer Campos, para substituir a vida, senão para a completar. Tudo na vida, excepto o desejo do homem, é irracional e imperfeito; na arte o homem projecta o seu desejo e a vontade de perfeição que há nele. Por isso a obra de arte deve, conservando a forma da vida, substituir-lhe a matéria: a escultura é na limpeza da pedra, que não na porcaria do corpo; a poesia é na música do ritmo lida que não na falta de música da palavra simplesmente falada.

Os 3 géneros de artistas:
1. O artista para quem a arte é uma necessidade como que física, directa, como são a de comer e a de beber. Para este a arte é uma função da vida.- homens como Shelley, Byron - como o «romântico», em geral.
2. O artista para quem a arte é um refúgio, um modo de esquecer a vida; como um narcótico, um vício qualquer, um álcool. homens como Verlaine, Baudelaire, e outros assim.
3. O artista para quem a arte é uma tarefa, uma missão a cumprir - os grandes criadores como Milton
.

1. A arte é a notação nítida de uma impressão errada (falsa). (À notação nítida duma impressão exacta chama-se ciência). 2. O processo artístico é relatar essa impressão falsa, de modo que pareça absolutamente natural e verdadeira.

A arte é a interpretação individual dos sentimentos gerais. Se é a interpretação de sentimentos só individuais, não tem base na compreensão alheia. E deixa de ter um limite. Porque sendo sem número os sentimentos individuais, não se pode nunca definir o que é arte, ou o que não é arte, dado que cada qual traz a sua arte consigo.nO romantismo, no fundo, é uma confissão de falência. Longe de ter sido uma renovação da arte, foi uma incapacidade de a renovar. Tinham-se gasto as fórmulas clássicas? Não se tinham gasto as fórmulas clássicas. O que se tinha gasto era a inspiração dentro delas. Para encontrar uma nova inspiração, foi mister saltar fora das regras. Por isso disse que o romantismo — pois que é uma incapacidade de trabalhar dentro de limites — é uma incapacidade de renovação artística. O único modo de renovar a arte é substituir um conceito do universo a outro.

A Arte é apenas e simplesmente a expressão de uma emoção. Um grito, uma simples carta pertencem um à arte de cantar, à literatura a outra, inevitavelmente.O próprio gesto é artístico segundo é ou não interpretação de uma emoção. Porque no gesto há o fim do gesto e a expressão desse fim. Uma coisa reporta-se à vontade, a outra à emoção. Elegância ou deselegância de um gesto significam conformidade ou não-conformidade com a emoção que exprime. Assim uma estátua da dor é a fixação dos gestos que mostram a dor — e será tanto mais bela quanto mais justa e exactamente representar por esses gestos a emoção da dor, quanto mais adaptados em tudo forem esses gestos ao mostrar essa emoção.

Se o ideal estético consiste na consideração vaga de que a vida é imperfeita, e que só é perfeita num momento feliz,a nossa sensação dela,força é que essa consideração não atinja um alto grau de absorção metafísica ou moral; porque,se for altamente metafísica, haverá consciência de mais para haver ilusão, e, se for altamente moral, haverá dor de sobra para que a ilusão possa agradar.

A arte suprema tem por fim libertar — erguer a alma acima de tudo quanto é estreito, acima dos instintos, das preocupações morais ou imorais. A arte nada tem com a moral, quanto ao fim; tem, quanto ao conteúdo. Toda a arte deve dar prazer — o tipo de prazer é que varia. A arte inferior dá prazer porque distrai, liberdade porque liberta das preocupações da vida; a arte superior menor dá prazer porque alegra, liberdade porque liberta da imperfeição da vida; a arte superior dá prazer porque liberta, liberdade porque liberta da própria vida. Um assunto sexual deve ser tratado em arte de modo que não suscite desejo. Para suscitar desejos, serve melhor uma fotografia pornográfica.

Valéry...
Paul Valéry distingue dois campos constitutivos da estética: a estésica, o estudo das sensações; a poiética, a produção da obra. A unidade da estética corresponde à articulação entre o sentir e o agir ,entre a sensação e a produção. O sensível não é mera recetividade, mas um impulso que desencadeia a criação. Há uma "sensibilidade criadora".

A vista, o tato, o olfato, a audição, o movimento nos induzem, assim, de tempos em tempos, a agir para acrescentar as suas impressões em intensidade ou em duração. Essa ação, que tem a sensibilidade por origem e por fim, embora a sensibilidade também a guie na escolha dos seus meios, distingue-se claramente das ações de ordem prática. Estas, com efeito, respondem a necessidades ou a impulsos que são extintos pela satisfação que eles recebem. A sensação de fome cessa no homem saciado, e as imagens que ilustravam essa necessidade desaparecem. Coisa totalmente diversa ocorre no domínio da sensibilidade exclusiva de que tratamos: a satisfação faz renascer o desejo; a resposta regenera a pergunta; a posse engendra um apetite crescente pela coisa possuída: numa palavra, a sensação exalta e reproduz a sua espera, sem que nenhum termo claro, nenhum limite certo, nenhuma ação resolutória possa abolir diretamente esse efeito de excitação recíproca. Organizar um sistema de coisas sensíveis que possua essa propriedade, eis o problema essencial da Arte; condição necessária, mas muito longe de ser suficiente.

O infinito estético é o conjunto de efeitos de tendência infinita [...].Para justificar o termo "infinito" e emprestar-lhe um
sentido preciso, basta observar que, nessa ordem, a satisfação faz renascer a necessidade, a resposta regenera a pergunta, a presença engendra a ausência, e a posse o desejo.


Toda arte é indissoluvelmente música e dança [...]Aquilo que chamamos forma, e que pode ser um fluxo independente de todo contorno [...], é o momento coreográfico da pintura. [...] parece mesmo que [quem dança] não se importa senão consigo mesmo e com um outro objeto, um objeto essencial, do qual se destaca ou se liberta e ao qual retoma, mas somente para aí recuperar o motivo de fugir-lhe mais uma vez...

Valéry e Pessoa...

Nos momentos do meu tédio, quando mais completamente me cinge a angústia do momento actual, assalta-me o desejo violento de me desejar em outras vidas, vivendo outras almas, outras sensações. Ora me sonhava dormir (...) num leito de província, em Janeiro, sentindo cair lá fora a chuva, muita chuva, enquanto eu me sentia bem, conversando num gasalho idiota de alma e corpo (...) E mesmo nesses sonhos, como depois de os sonhar me acompanha uma saudade deles, uma saudade ácida, árida e dolorosa a um ponto que não se imagina. Dói-me a alma para além do tédio doloroso durante e no regresso dessa viagem de sonho. Sinto como se tivesse atravessado o mistério da vida na sua íntima essência e permaneço no mesmo tédio (...) mais profunda e gelidamente cansado.

Vergílio,Voltaire e kafka

Guarde-me Deus de mula que faz him, e de mulher que sabe latim.... O ponto está em que o latim não é o que dana, mas o que consigo traz de outros saberetes envolto aquelle saber.

De tarde en tarde, mi mano se distrae quitándo el polvo a esos vestigios de emoción que se niegan a morir. Vuelven siempre, sumisos, al anónimo reposo de la espera. Se alinean al azar bajo inseguros rótulos que alivian, como huellas, mi paso por el tiempo. Austeros epitafios, sombras, murmuraciones vagas que se acogen, como gatos, a la escueta caricia de la melancolía.

Carta de Voltaire, escrita em 1754, a Madame Duffand, uma das suas correspondentes: A senhora sabe latim? Não. É por isso que me pergunta se prefiro Pope a Vergílio. Ah, Madame, todas as nossas línguas modernas são secas, pobres e sem harmonia, em comparação com as que falavam os gregos e os romanos,os nossos primeiros mestres. Não passamos de uns violinistas de aldeia. Como é que a senhora quer que eu compare epístolas a um poema épico, aos amores de Dido, ao incêndio de Tróia, à descida de Eneias aos infernos. Considero o ensaio sobre o Homem, de Pope, o primeiro dos poemas didáticos, dos poemas filosóficos: mas não ponhamos nada ao lado de Vergílio. A senhora conhece por meio da tradução: mas os poetas não se traduzem. Pode­-se traduzir a música? Tenho pena de si por não poder, com todo o seu gosto e com a sua sensibilidade esclarecida, ler Vergílio, em latim...

Inter quas Phoenissa recens a vulnere Dido errabat silva in magna; quam Troius heros ut primum iuxta stetit adgnovitque per umbras
obscuram, qualem primo qui surgere mense aut videt, aut vidisse putat per nubila lunam, demisit lacrimas, dulcique adfatus amore est: Infelix Dido, verus mihi nuntius ergo venerat exstinctam, ferroque extrema secutam? Funeris heu tibi causa fui? Per sidera iuro, per superos, et si qua fides tellure sub ima est, invitus, regina, tuo de litore cessi
.

A morte tem muitas caras. Tantas quantos os morituros. Porque a sua, a verdadeira, é sempre igual à vida. Muito bem o sabiam os Latinos, que à morte e à vida deram um sexo apenas, o sexo feminino. No mundo mediterrânico, a Deusa-Mãe que gera a vida é a mesma que gera a morte. A diferença consiste só no movimento, no sentido desse movimento, de uma luz para outra luz, percorrendo o caminho da escuridão. Há dois mil anos, Virgílio percorreu esse caminho. E foi um caminho doloroso. Tão doloroso que, no leito da morte, o poeta quis destruir o seu poema. O poema que era o seu testemunho. E teria destruído, se o deixassem, por suas próprias mãos. Era uma forma de destruir, simbolicamente, as suas angústias e incertezas, o espectro da derrota final. Mas não o deixaram. Virgílio também não insistiu. Tantas vezes tinha sido contrariado na vida que mais uma, à beira da morte, nem sequer destoava.

O opúsculo, que assim se inicia, foi -me oferecido pelo autor, um professor inesquecível...

Foi Professor, nas aulas e para além delas. Lembro-me bem dessas aulas, sempre claras, metódicas, com grande propriedade terminológica. Vivia-as e, durante elas, parecia alhear-se de tudo o resto. O sumário aparecia sempre no quadro com a sua letra inconfundível, certa e miúda. No mais pequeno papel cabia um tratado!
Sentia-se nele o gosto de lecionar, de conversar, de ter a presença de interlocutores. Dotado do condão de transformar as coisas com o seu verbo claro, preciso, acabávamos por ficar a ouvi-lo, presos da sua voz que, indelével, vibrava na emoção de uma ideia, aprofundava contornos, formas, sensações. E do fundo das coisas ganhava nitidez o mundo, nos claros e sombras que o sustentam. Nada era indiferente à música das palavras que, sempre sem asperezas ou arestas, sem escolhos na dicção, douradas de beleza, animavam as coisas. No timbre dos sons, não surgia nunca qualquer perturbação. E, qual Midas das palavras, aflorava em tudo um toque de magia! Era assim... Um Mestre inesquecível que, ao longo da vida, os discípulos continuam a escutar no fio inconsútil e indelével da memória.


In memoriam ...
"A morte tem muitas caras. Tantas quantos os morituros"... Poderíamos, agora, contrapor: tem muitas caras, a morte, mas um só som – o som do silêncio. Porque são um apelo ao silêncio os nossos passos pesados e calados quando no cortejo do derradeiro adeus os vamos desfiando. Porque são um apelo ao silêncio as batidas lentas do bronze que da velha torre ecoam cidade abaixo e cidade adentro, se a hora é de partida sem retorno. Porque de silêncio trajam os nossos rostos, velados de tristeza e de uma estranha melancolia, quando definitiva é a partida e sem remissão. A hora é de silêncio, sim. Silêncio absurdo, dir-se-ia, ao arrepio de uma Primavera que parece despontar com força inusitada. Silêncio entristecido, também, por ser tempo de despedida a contragosto. Silêncio doloroso, sobretudo, por partir com quem parte uma parte de quem fica. Silêncio denso, porque tecido de palavras indizíveis; silêncio sentido, porque semeado de emoções e de afetos; silêncio mal contido, por ter raízes numa imensa ovação a quem parte; silêncio, afinal, silencioso, por respeito a quem parece ter dito já todas as palavras. "A morte tem muitas caras"... Uma cara apenas teve, em toda a vida, aquele que a morte assim definiu.


Gostava das relações estranhamente íntimas e singularmente indefinidas que existem entre professores e alunos, como um canto de sereia no fundo de uma voz trémula que, pela primeira vez, nos revela uma obra- prima, ou nos dá a conhecer uma ideia nova. O maior sedutor não é, afinal, Alcibíades, mas Sócrates.


Nunca mais vi tão peculiar mestre e a rememoração de uma carta de voltaire levou- m, por um estranho despropósito , à notícia da sua morte...

Como se sabe, Virgílio, quando estava prestes a morrer, encarregou os seus amigos de reduzir a cinzas o inacabado manuscrito da Eneida, que reunia onze anos de nobre e delicado trabalho; Kafka encomendou a Max Brod a destruição dos romances e narrativas que lhe asseguravam a fama. A afinidade destes episódios ilustres é, se não estou enganado, ilusória. Virgílio não podia ignorar que contava com a piedosa desobediência dos seus amigos; Kafka com a de Brod. . Para além disso, o homem que realmente quer o desaparecimento dos seus livros não delega a um outro essa tarefa. Kafka e Virgílio não desejavam a sua destruição; eles apenas ansiavam desligar-se da responsabilidade que uma obra sempre nos impõe. Virgílio, creio, agiu por razões estéticas; teria querido modificar esta ou aquela cadência ou um ou outro epíteto. Mais complexo é, segundo me parece, o caso de Kafka. Todo o seu trabalho poderia ser definido como uma parábola ou uma série de parábolas cujo tema é a relação moral do indivíduo com a divindade e com o seu incompreensível universo. Apesar do seu ambiente contemporâneo, está menos próximo daquilo que se convencionou chamar literatura moderna do que do Livro de Job. Pressupõe uma consciência religiosa e, antes de mais, judaica; a sua imitação formal noutros contextos carece de sentido. Kafka encarava a sua obra como um acto de fé e não queria que ela desalentasse os homens. Foi por essa razão que encarregou o seu amigo de a destruir. Podemos ainda suspeitar de outros motivos. Kafka, sinceramente, só conseguia sonhar pesadelos e não ignorava que a realidade se encarrega, sem cessar, de os fornecer. Mesmo assim, tinha-se apercebido das possibilidades patéticas da postergação, que se notam em quase todos os seus livros. Ambas as coisas, tristezas e postergações, acabaram, sem dúvida, por cansá-lo. Teria preferido a redacção de páginas felizes e a sua honradez não condescendeu em elaborá-las.

O animal arranca o chicote das mãos do dono e castiga-se para se converter no dono, sem compreender que isso não é mais do que uma ilusão produzida por um novo nó no chicote.

No templo irrompem leopardos que bebem o vinho dos cálices; isto sucede repetidamente; por fim, consegue prever-se o que acontecerá e integra-se na liturgia do templo.

Eis o mundo de kafka a provar que só o absurdo existe...

Is anything as strange as a normal person?

Making all his nowhere plans for nobody...

Serão mais felizes esses que se dirigiam só pela razão, não se desviando nunca dela, torturando-se para se manter na sua linha inflexível, secos, hirtos, lógicos, sem emoção até ao fim...
- Creio que não - disse Ega. - Por fora, à vista, são desconsoladores. E por dentro, para eles mesmos, são talvez desconsolados...


Em terra de cegos, só quem tem um olho é rei. Quem vê com os olhos todos, o corpo todo, a alma toda só pode estar condenado ao exílio e à maldição...

A lucidez só deve chegar ao limiar da alma. Nas próprias antecâmaras do sentimento é proibido ser explícito.

Durante un segundo de lucidez tuve la certeza de que nos habíamos vuelto locos. Pero a ese segundo de lucidez se antepuso un supersegundo de superlucidez (si me permiten la expresión) en donde pensé que aquella escena era el resultado lógico de nuestras vidas absurdas...

Somos, com efeito, um manicómio, quer sejam ou não habitados os outros planetas. Vivemos uma vida que já perdeu de todo a noção da normalidade, e onde a rigidez vive por uma concessão da doença. Vivemos em doença crónica, em anemia febricitante O nosso destino é o de não morrer por nos termos adaptado ao estado de (perpétuos) moribundos...Quero que sejamos indiferentes para com uma época que nada pode querer de nós, e sobre a qual em nada podemos agir. Mas não quero que se cante essa indiferença como coisa boa de per si. É isso que faz Ricardo Reis. Por esse ponto, longe de tornar-se indiferente às correntes da época, integra-se em uma delas, que é a decadente. Essa indiferença, é já uma adaptação ao meio. É já uma concessão.

A miséria da minha condição não é estorvada por estas palavras conjugadas, com que formo, pouco a pouco, o meu livro casual e meditado. Sobrevivo nulo no fundo de toda a expressão, como um pó indissolúvel no fundo do copo de onde se bebeu só água. Escrevo a minha literatura como escrevo os meus lançamentos — com cuidado e indiferença.

Ah! Ser indiferente! É do alto do poder da sua indiferença Que os chefes dos chefes dominam o mundo. Ser alheio até a si mesmo! É do alto do sentir desse alheamento Que os mestres dos santos dominam o mundo. Ser esquecido de que se existe! É do alto do pensar desse esquecer Que os deuses dos deuses dominam o mundo. (Não ouvi o que dizias...ouvi só a música, e nem a essa ouvi...Tocavas e falavas ao mesmo tempo? Sim, creio que tocavas e falavas ao mesmo tempo...Com quem?Com alguém em quem tudo acabava no dormir do mundo...

Máximas

1- Amar é pensar

Passei toda a noite, sem dormir, vendo, sem espaço, a figura dela,
E vendo-a sempre de maneiras diferentes do que a encontro a ela.
Faço pensamentos com a recordação do que ela é quando me fala,
E em cada pensamento ela varia de acordo com a sua semelhança.
Amar é pensar.
E eu quase que me esqueço de sentir só de pensar nela.
Não sei bem o que quero, mesmo dela, e eu não penso senão nela.
Tenho uma grande distração animada.
Quando desejo encontrá-la
Quase que prefiro não a encontrar,
Para não ter que a deixar depois.
Não sei bem o que quero, nem quero saber o que quero.
Quero só Pensar nela.
Não peço nada a ninguém, nem a ela, senão pensar.


2- Vivemos numa oligarquia de bestas

Acabei de escrever. Detenho-me cansadamente na meditação do quanto, afinal de tudo, é mesquinho e vão o impulso do nosso instinto ainda que quando universo do ferrão de uma justa indignação. Há qualquer coisa de dolorosamente ridículo em estar a uma mesa (...) diante de um tinteiro, a odiar em voz alta homens e coisas. Faz sorrir, ao determo-nos em pensar-nos depois, o ver que Af. Costas, Alexandres Bragas, Bernardinos Machados e radicais lisbonenses e portugueses são realmente e objectivamente parte do universo, da Vida, do mundo, lugares psíquicos onde se encontram as forças basilares e primordiais do dinamismo universal.

3- O suicídio é um impulso como o que leva a deitar cedo.

Atingi à saciedade do nada, à plenitude de coisa nenhuma. O que me levará ao suicídio é um impulso como o que leva a deitar cedo. Tenho um sono íntimo de todas as intenções. Nada pode já transformar a minha vida. Se... se... Sim, mas se é sempre uma coisa que não aconteceu; e, se não aconteceu, para quê supor o que seria se ela fosse?

4- Cansamo-nos de tudo, excepto de compreender.

Cansamo-nos de tudo, excepto de compreender . O sentido da frase é por vezes difícil de atingir.Cansamo-nos de pensar para chegar a uma conclusão, porque quanto mais se pensa, mais se analise, mais se distingue, menos se chega a uma conclusão.
Caímos então naquele estado de inércia em que o mais que queremos é compreender bem o que é exposto — uma atitude estética, pois que queremos compreender sem nos interessar, sem que nos importe que o compreendido seja ou não verdadeiro, sem que vejamos mais no que compreendemos senão a forma exacta como foi exposto, a posição de beleza racional que tem para nós.Cansamo-nos de pensar, de ter opiniões nossas, de querer pensar para agir. Não nos cansamos, porém, de ter, ainda que transitoriamente, as opiniões alheias, para o único fim de sentir o seu influxo e não seguir o seu impulso.


5- Conviver é morrer.

Colaborar, ligar-se, agir com outros, é um impulso metafisicamente mórbido. A alma que é dada ao indivíduo, não deve ser emprestada às suas relações com os outros. O facto divino de existir não deve ser entregue ao facto satânico de coexistir.
Ao agir com outros perco, ao menos, uma coisa — que é agir só. Quando me entrego, embora pareça que me expando, limito-me. Conviver é morrer. Para mim, só a minha autoconsciência é real; os outros são fenómenos incertos nessa consciência, e a que seria mórbido emprestar uma realidade muito verdadeira.


6-Toda a filosofia é uma diplomacia sob a espécie de eternidade.

Cada palavra falada nos trai. A única comunicação tolerável é a palavra escrita, porque não é uma pedra em uma ponte entre almas, mas um raio de uma luz entre astros.Explicar é descrer. Toda a filosofia é uma diplomacia sob a espécie de eternidade (...), como a diplomacia, uma coisa substancialmente falsa, que existe não como coisa, mas inteira e absolutamente para um fim.

7- o verdadeiro destino nobre é o do escritor que não se publica.

O único destino nobre de um escritor que se publica é não ter uma celebridade que mereça. Mas o verdadeiro destino nobre é o do escritor que não se publica. Não digo que não escreva, porque esse não é escritor. Digo do que por natureza escreve, e por condição espiritual não oferece o que escreve. Escrever é objectivar sonhos, é criar um mundo exterior para prémio evidente da nossa índole de criadores. Publicar é dar esse mundo exterior aos outros; mas para quê, se o mundo exterior comum a nós e a eles é o «mundo exterior» real, o da matéria, o mundo visível e tangível. Que têm os outros com o universo que há em mim?

8-Nenhum problema tem solução.

Nenhum problema tem solução. Nenhum de nós desata o nó górdio; todos nós ou desistimos ou o cortamos. Resolvemos bruscamente, com o sentimento, os problemas da inteligência, e fazêmo-lo ou por cansaço de pensar, ou por timidez de tirar conclusões, ou pela necessidade absurda de encontrar um apoio, ou pelo impulso gregário de regressar aos outros e à vida.
Como nunca podemos conhecer todos os elementos de uma questão, nunca a podemos resolver.Para atingir a verdade faltam-nos dados que bastem, e processos intelectuais que esgotem a interpretação desses dados.


9- Perder tempo comporta uma estética.

Há para os subtis nas sensações, um formulário da inércia que inclui receitas para todas as formas de lucidez. A estratégia com que se luta com a noção das conveniências sociais, com os impulsos dos instintos, com as solicitações do sentimento exige um estudo que qualquer mero esteta não suporta fazer. A uma acurada etiologia dos escrúpulos deve seguir-se uma diagnose irónica das subserviências à normalidade. Há a cultivar, também, a agilidade contra as intrusões da vida; um cuidado (...) deve couraçar-nos contra sentir as opiniões alheias, e uma mole indiferença encamar-nos a alma contra os golpes surdos da coexistência com os outros.
10- Sentir tudo de todas as maneiras.

Sentir tudo de todas as maneiras,
Ter todas as opiniões,
Ser sincero contradizendo-se a cada minuto,
Desagradar a si-próprio pela plena liberalidade de espírito,
E amar as coisas como um Deus.

Poder rir, rir, rir despejadamente,
Rir como um copo entornado,
Absolutamente doido só por sentir,
Absolutamente roto por me roçar contra as coisas,
Ferido na boca por morder coisas,
Com as unhas em sangue por me agarrar a coisas,
E depois dêem-me a cela que quiserem que eu me lembrarei da vida.


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