José Saramago

segunda-feira, 28 de outubro de 2024

Um título enganador?

O tempo e a memória são a matéria de reflexão de um autor, que nos alerta para algo fundamental: não se pode enterrar o passado


Pelo caráter ininterrupto da narrativa, os diálogos contínuos, não assinalados por aspas ou travessão, reproduzem o fluir do pensamento e o ritmo da rememoração… 

As falas do narrador, as de Austerlitz e das outras personagens entrelaçam -se, como no fluxo de uma narrativa oral, que se assemelha ao fluxo de consciência... O que acontece entre eles não é um diálogo, mas um desabafo autobiográfico recheado de informações históricas. E as aparições acontecem quase sempre em bares em que o narrador entra sem nenhuma intenção pré-concebida, ou seja, são reencontros ao acaso:

  Nesse primeiro reencontro, tal como em todas as ocasiões seguintes, retomamos a nossa conversa sem desperdiçar uma única palavra sobre a improbabilidade de nosso reencontro num local como aquele, que nenhuma pessoa sensata teria procurado. (...) Foi muitos meses após esse encontro em Liége que me encontrei com Austerlitz, de novo , por puro acaso, na antiga colina do patíbulo em Bruxelas... Nos seus estudos sobre a arquitetura das estações de comboio, disse ele quando nos achávamos sentados na frente de um bistrô no Mercado de Luvas no final da tarde, cansados de tanta caminhada, ele nunca conseguia tirar da cabeça os pensamentos da aflição da despedida e do medo de lugares estranhos, embora tais emoções obviamente não façam parte da história da arquitetura. Mas talvez justamente os nossos projetos mais ambiciosos traíam da forma mais patente o grau da nossa insegurança ...


Nos seus estudos sobre a arquitetura das estações de comboio, disse ele quando nos achávamos sentados na frente de um bistrô no Mercado de Luvas no final da tarde, cansados de tanta caminhada, ele nunca conseguia tirar da cabeça os pensamentos da aflição da despedida e do medo de lugares estranhos, embora tais emoções obviamente não façam parte da história da arquitetura. Mas talvez justamente os nossos projetos mais ambiciosos traíam da forma mais patente o grau da nossa insegurança



segunda-feira, 14 de outubro de 2024

ReleituraS

Há um tipo de tristeza que vem de saber demais, de ver o mundo como ele realmente é. É a tristeza de entender que a vida não é uma grande aventura, mas uma série de pequenos momentos insignificantes, que o amor não é um conto de fadas, mas uma emoção frágil e passageira, que a felicidade não é um estado permanente, mas um vislumbre raro e fugaz de algo que nunca poderemos conservar. E nesse entendimento, há uma profunda solidão, um sentimento de ser separado do mundo, das outras pessoas, de si mesmo. 


 O verdadeiro horror da existência não é o medo da morte, mas o medo da vida. É o medo de acordar todos os dias para enfrentar as mesmas lutas, as mesmas decepções, a mesma dor. É o medo de que nada mude, de estar preso num ciclo de sofrimento do qual não consegue escapar. E nesse medo há um desespero, um anseio por alguma coisa, qualquer coisa, para quebrar a monotonia, para dar sentido à interminável repetição dos dias.


 
A vida é para nós o que concebemos nela.

 Isto não vem a propósito de nada. 

 Tenho sonhado muito. Estou cansado de ter sonhado, porém não cansado de sonhar. De sonhar ninguém se cansa, porque sonhar é esquecer, e esquecer não pesa e é um sono sem sonhos em que estamos despertos. Em sonhos consegui tudo. Também tenho despertado, mas que importa?  

Quantos César fui!


A releitura dos meus sublinhados de O Reino levou-me ao livro do dessassossego: ... e tudo é uma doença incurável.  A ociosidade de sentir o desgosto de ter de não saber fazer nada, a incapacidade de agir.

domingo, 22 de setembro de 2024

PrimaveraS...

    Uma história que se centra em três mulheres: Natsu, de trinta anos; a sua irmã mais velha, Makiko, de trinta e nove; e a filha desta, Midoriko, com 12 anos.
     O que significa ser mulher? O que implica trazer um filho ao mundo? E porquê trazer um filho ao mundo? Que opções têm as mulheres depois de serem mães? A mulher tem o direito de recusar ser mãe? Será a mulher prisioneira de expectativas inalcançáveis em relação ao seu corpo? 

  Estas são algumas das perguntas deste romance protagonizado por três mulheres pertencentes a gerações diferentes…
 
Na primeira parte, a narradora, Natsuko, que tenta ser escritora, recebe na sua casa de Tóquio a irmã, Makiko, e a filha desta, Midoriko. Makiko trabalha num bar em Osaka, onde todas viviam inicialmente. Midoriko está zangada com a mãe e não lhe fala e responde às suas perguntas escrevendo num caderno. As duas irmãs veem televisão e bebem cerveja até cair para o lado. Makiko está obcecada com a ideia de operar os seios. As duas irmãs viveram com a mãe e com a avó, que já faleceram. O pai era um preguiçoso e alcoólico, que abandonou o lar. 

  Na segunda parte, Natsuko já publicou um livro, que teve um sucesso relativo, mas está bloqueada na escrita do segundo romance. A partir de certa altura, nunca mais se fala nisso porque a sua obsessão é ter um filho, através de um dador de esperma. Em tempos, teve uma relação com um homem, mas não gostou de ter relações sexuais e nunca mais quer experimentar, daí, ter de recorrer a um dador. No Japão, é possível conhecer um dador num qualquer blogue, encontrar-se com ele num café e ficar com o seu esperma, que ele vai obter na casa de banho do café... 

  Sinopse: “Seios e Óvulos traça um retrato da feminilidade e maternidade contemporâneas no Japão, contando as viagens íntimas de mulheres que enfrentam os costumes opressivos e as suas próprias incertezas no percurso para encontrar a paz e um futuro a que possam chamar verdadeiramente seu. Makiko viaja para Tóquio em busca de uma operação de preço acessível para aumentar os seios. É acompanhada por Midoriko, uma adolescente cada vez mais calada por se sentir incapaz de expressar as pressões vagas, mas esmagadoras, associadas ao crescimento. O seu silêncio revela-se um catalisador para que cada mulher enfrente os seus medos e frustrações. Num dia quente de verão, dez anos mais tarde, Natsu, numa viagem de regresso à sua cidade natal, debate-se com a sua própria identidade indeterminada, enquanto enfrenta ansiedades sobre envelhecer sozinha e sem filhos.” 

 “Natsuko, a personagem principal, nunca deixa de nos interpelar, de nos fazer equacionar... Da pobreza estigmatizante à ditadura da solidão, do papel que esperam da mulher ao papel que a mulher quer ser, do medo à coragem, este é um livro que amplia horizontes e que, sem oferecer certezas, nos obriga a questionar. Num país onde se apregoa que as mulheres se tornam inúteis a partir da menopausa, Kawakami sesmitica a ordem estabelecida “- Rock&Rolla Ago/23

Se quiserem saber quão pobre alguém foi enquanto crescia, perguntem-lhe quantas janelas tinha. Não perguntem o que tinham no frigorífico ou no armário. O número de janelas diz tudo. Mesmo tudo. Se não tinham nenhuma ou se talvez tivessem uma ou duas, não precisam de saber mais nada.
 

 Midoriko tinha um apetite saudável, ia à escola e falava normalmente com os amigos e os professores. Só não falava com a mãe. Parecia não haver mais nada fora do normal. Apenas se recusava a falar em casa. De propósito.

 No outro dia, na escola, entre aulas, alguém, não me lembro quem, dizia: «Nasci rapariga e, por isso, sem dúvida que quero ter um bebé meu, um dia.» Mas de onde vem isso? O sangue que sai do nosso corpo transforma-nos em mulheres? Em potenciais mães? E o que torna isso assim tão fantástico? Alguém acredita realmente nisso?


para uma mulher se tornar um Buda, primeiro tem de renascer como homem.

O sexo , "a insanidade temporária das nossas vidas.

 Compreendia o desejo de ter alguém a meu lado, de querer dar a mão a alguém. Tinha sentido essas explosões de paixão depois de dizer alguma coisa importate ou quando me apercebia da intensidade dos meus sentimentos. Queria partilhar aquela sensação, mas, quando as coisas começavam a tornar-se físicas, os meus ombros ficavam tensos e o resto do corpo também. A paixão e o sexo eram incompatíveis para mim. Não tinham qualquer relação

… um homem nunca pode perceber o que realmente importa para uma mulher, nunca. Quando se diz este tipo de coisas, as pessoas dizem logo que somos tacanhas ou que nunca conhecemos o verdadeiro amor ou qualquer coisa desse género. Dizem que não se podem enfiar todos os homens no mesmo saco assim, mas, infelizmente, é a verdade. Nenhum homem alguma vez compreenderá as coisas que são realmente importantes para uma mulher.


 Se conseguires escrever sobre ti assim, sobre a tua sexualidade, as tuas finanças, as tuas emoções… se conseguires engravidar sozinha e ser mãe (ou mesmo que não consigas), se escreveres sobre tudo o que acontece no processo, fazes ideia do que significaria para tantas mulheres?

 No primeiro dia de outono, pela mão de Kawabata, estou a sentir a primavera no coração...

Midoriko Tinha um apetite saudável, ia à escola e falava normalmente com os amigos e os professores. Só não falava com a mãe. Parecia não haver mais nada fora do normal. Apenas se recusava a falar em casa. De propósito.


    É esta a verdadeira Primavera.Tudo, tudo...são flores escarlates. Os ramos das árvores florescentes pareciam não ter mais que uma função: suster as flores. Um visão não se pode nem tocar, não tem forma... 

Uma visão pode estar na mente, no coração de um homem, ou manifestar-se de qualquer outro modo. A visão de Chienko, aos 60 anos, continua jovem como agora e nunca nos cansamos das visões belas...Estas visões existem para sempre no coração: pode-se esquecer e deixar de amar alguém, emconcreto, que existiu na nossa vida, mas a nossa visão de alguém que amámos nunca deixa de estar presente, nunca.

"
Kyoto é um grande livro, quer pela forma como aborda a história de Chieko, quer pela paz com que nos transmite cada descrição e diálogo, mesmo quando a dor está presente.

 A escrita é poética e marcada pela contemplação típica do Japão e do mundo oriental. Por isso, ler este livro é contemplar esta sociedade tão diferente e esperar também pela flor das cerejeiras. A narrativa aberta é igualmente um caminho que nos permite percorrer a nossa imaginação, levando-nos numa viagem individual e de busca do Outro." Vanda Balão

terça-feira, 3 de setembro de 2024

TristezaS...


“livro do desassossego de Almeida Prado” 

Deixamos algo de nós para trás ao deixarmos um lugar, permanecemos lá apesar de termos partido.

 E há coisas em nós que só reencontramos lá voltando. 

Viajamos ao encontro de nós ao irmos a um lugar onde vivemos uma parte da vida, por muito breve que tenha ela sido.

Agora o único homem que estava no bar além dele pagava a conta e saía. Com uma pressa súbita que nem ele próprio compreendeu, Gregorius também pagou e seguiu o homem. Era um homem idoso que puxava de uma perna e parava de vez em quando para descansar. Gregorius seguiu -o mantendo uma grande distância até o Bairro Alto, até ele desaparecer atrás da porta de uma casa estreita e sórdida. Uma luz acendeu-se no primeiro andar, a cortina se abriu-se e o homem estava na janela aberta, um cigarro na boca. A partir da escuridão protetora de uma porta, Gregorius olhou para dentro do apartamento iluminado. Um sofá com estofados de um tecido de ‘gobelin’ gasto. Duas poltronas que não combinavam. Uma cristaleira com louça e pequenas figuras de porcelana. Um crucifixo na parede. Nem um único livro. Como era ser esse homem? Depois que o homem fechou a janela e puxou a cortina, Gregorius saiu do recuo. Ele perdera o rumo e entrou na primeira viela que descia. Nunca seguira ninguém daquela maneira, pensando em como seria viver aquela vida estranha em vez da própria. Era uma forma totalmente nova de curiosidade que despertara dentro dele, ela combinava com aquela nova forma de lucidez que ele experimentara na viagem de comboio e com a qual desembarcara na Gare de Lyon em Paris, ontem, ou quando quer que tivesse acontecido. De vez em quando, ele parava e olhava para a frente. 

Os textos antigos, os seus textos antigos eles também estavam plenos de personagens que viviam uma vida. Ler os textos e compreendê-los também sempre significara ler aquelas vidas e compreendê-las. Porquê, então, agora tudo era tão novo quando ele lidava com o português nobre e aquele homem aleijado? Inseguro, ele caminhou pelos paralelepípedos húmidos da rua íngreme e respirou aliviado ao reconhecer a avenida da Liberdade.

"Há um tipo de tristeza que vem de saber demais, de ver o mundo como ele realmente é. É a tristeza de entender que a vida não é uma grande aventura, mas uma série de pequenos momentos insignificantes, que o amor não é um conto de fadas, mas uma emoção frágil e passageira, que a felicidade não é um estado permanente, mas um vislumbre raro e fugaz de algo que nunca poderemos segurar em cima. E nesse entendimento, há uma profunda solidão, um sentimento de ser separado do mundo, das outras pessoas, de si mesmo. " 
Virgínia Woolf

segunda-feira, 5 de agosto de 2024

Agosto...



    Voltou à ilha na sexta-feira 16 de agosto no ferry das três da tarde.

     Tinha repetido aquela viagem todos os dias 16 de agosto à mesma hora, com o mesmo táxi e a mesma florista... 

    Tinha sonhado hora por hora com aquele novo 16 de agosto, e a lição não admitiu dúvidas: era absurdo esperar um ano inteiro para submeter o resto da vida ao acaso de uma noite.


     A noite de 16 de agosto seguinte estava já prevista pelo seu destino...

    Ana Magdalena lançou um olhar de compaixão ao seu próprio passado e disse adeus para sempre aos seus desconhecidos de uma noite e às tantas e tantas horas de incertezas que ficavam dela própria dispersas na ilha.
Mon bel amour, mon cher amour, ma déchirure / Je te porte dans moi comme un oiseau blessé...

domingo, 28 de julho de 2024


    "Reflexões sobre a vida, o mundo e sobre temas marcantes, como as diferenças sociais, a ausência / negligência dos pais "modernos" ou a morte / o suicídio. 

     
    Desde o início que sabemos que "A menina morre", mas a narradora / protagonista vai desenrolando a ação de uma forma diferente e, como dissemos, nada banal. Será ela a culpada de alguma coisa? Carregará ela uma culpa pela sua negligência com a mãe e com ela mesma, continuando a aceitar aquela "escravidão" consentida? Haverá alguma humanidade naqueles pais e naquela sociedade ritualizada e hierarquizada? Afinal, houve homicídio ou suicídio de Júlia? 

    Há muitas respostas em suspenso, mas a certeza de que valeu a pena cada página lida." 

Opinião de Vanda Balão

Sinopse

 "Em 2004, com a morte da mulher, Iván, um aspirante a escritor, relembra um episódio que lhe aconteceu em 1977, quando conheceu um homem enigmático que passeava pela praia, acompanhado de dois galgos russos. Após vários encontros, «o homem que gostava de cães» começou a confidenciar-lhe relatos singulares sobre o assassino de Trótski, Ramón Mercader, de quem conhecia pormenores muito íntimos. Graças a essas confidências, Iván irá reconstituir a trajetória de Liev Davídovitch Bronstein, mais conhecido por Trótski, e de Ramón Mercader, e de como se tornaram em vítima e verdugo de um dos crimes mais reveladores do século XX. Através de uma escrita poderosa sobre duas testemunhas ambíguas e convincentes, Leonardo Padura traça um retrato histórico das consequências da mentira ideológica e do seu poder destrutivo sobre a utopia mais importante do século XX."

quarta-feira, 17 de julho de 2024

Portas...


Como conciliar uma perceção purificada com uma atenção apropriada às relações humanas, às tarefas e aos deveres necessários, já para não falar de caridade e compaixão efetivas?

Debate imemorial entre contemplativos e ativos... 


É pouco provável os contemplativos entregarem-se aos jogos de proxenetas, tornarem-se proxenetas ou bêbados; em regra, não pregam a intolerância nem fazem a guerra; não se veem na necessidade de roubar, de vigarizar o próximo ou de oprimir os pobres. 


A espécie mental a que Blake pertencia é relativamente abundante... o visionário desprovido de talento talvez apreenda uma realidade interior não menos tremenda, bela e significativa do que o mundo contemplado por Blake, mas falta-lhe a capacidade para exprimir aquilo que viu.

A mescalina é completamente inócua e os seus efeitos dissipam-se ao fim de oito ou dez horas 

  Toda a nossa educação é predominantemente verbal e, portanto, mostra-se incapaz de cumprir a missão que lhe deveria caber. Em vez de transformar crianças em adultos plenamente desenvolvidos, produz estudantes de ciências, completamente alhheios à natureza...lança no mundo estudantes de humanidades que nada sabem acerca da natureza humana , a deles próprios ou a dos outros.(...) Para as pessoas mais educadas é quase impossível dedicar uma atenção genuína a tudo o que não sejam palavras e conceitos.(...) As humanidades não verbais, as artes de tomar consciência direta dos factos adquiridos da nossa existência, são quase completamente ignorados.(...) Além disso, este tema da educação das humanidades não-verbais não se encaixa em nenhum dos compartimentos predefinidos.

Opinião de António Ribeiro:

"Ouço falar deste livro desde que me lembro. Mas nunca tinha posto mãos à obra. Tornou-se um clássico da contra-cultura norte americana da década de 1960, principalmente depois de Jim Morrison ter batizado os “The Doors” a partir do seu título. E isso é uma injustiça que se lhe faz (ao livro). A única coisa que liga este livro a esse imaginário do “Verão do amor” é apenas o facto de ter como episódio inicial uma experiência com mescalina, o princípio activo existente no “peyotl”, uma raiz consumida pelos indígenas do México. Aldous Huxley foi, desde muito jovem, um leitor atento dos místicos cristãos. As referências que ele vai citando não deixam dúvidas: o monge dominicano alemão Eckhart, o franciscano flamengo Ruysbroeck, e, finalmente, o carmelita S. João da Cruz, talvez a referência mais citada no livro. O homem que descreveu admiravelmente a angústia da “noite do espírito”. Todos estes autores se inscrevem na escola da mística designada por abstracta ou “apofática”, frequentemente perseguida pela Inquisição. Huxley afirma que, na sua juventude, não gostava destes autores, que considerava uma espécie de “budistas ocultos”. Mas acabou por compreender que entre a mística cristã, budista, sufi (o misticismo islâmico) e outras existem analogias formais que são inegáveis. A tese de base do livro é a de que o cérebro humano se destina unicamente a regular a nossa economia animal, e que o uso de ascese e meditação, ou em alternativa o uso de químicos, pode fazer descer as funções cerebrais a níveis mínimos, permitindo aos seus praticantes o acesso a um estado de consciência transcendente. Em face da experiência que ele descreve, comparando com outras nas obras dos autores que Huxley refere e que eu, em tempos, também li, existem de facto analogias formais muito sólidas. Ao contrário de Huxley, eu só li, nunca experimentei. É bom lembrar que estes autores deixam bem claro que a viagem ao universo interior pode ser uma experiência devastadora e irreversível.Até por isso é sempre bom deixar espaço à dúvida."

segunda-feira, 1 de julho de 2024

domingo, 9 de junho de 2024

Intimidades...Confidências

Une question sans réponse...
Je ne sais pas qui tu peux être Je ne sais pas qui tu espères Je cherche toujours à te connaître Et ton silence trouble mon silence (...) Tu es le sang de ma blessure Tu es le feu de ma brûlure Tu es ma question sans réponse Mon cri muet et mon silence...

 Sozinho na escuridão, revolvo o mundo na minha cabeça enquanto me debato com mais uma insónia, com mais uma noite em branco na imensidão da natureza selvagem da América.
É o que faço quando o sono se recusa a vir. Deixo-me ficar deitado na cama e conto-me histórias. 

História de Owen Brick - homem adormecido num buraco que vai ter a missão de matar o senhor da guerra civil que existe na América, afinal, o próprio narrador/ protagonista, August Brill...

Ele é o dono e senhor da guerra. Foi ele que a inventou, e tudo o que acontece ou vai acontecer está na cabeça dele. Eliminada essa cabeça, a guerra acaba.

Refugiar-se num filme é o mesmo que refugiar-se num livro. Os livros obrigam-nos a dar qualquer coisa em troca... mas podemos ver um filme num estado de negligente passividade. 


Nova sociedade - p. 59 

Virginia, sempre lá , oculta , emboscada, num recanto da sua mente, e Flora, Brick e Flora vão flutuando ao sabor da corrente do seu nada conjugal, da pequena vida a que ela o convenceu com o bom senso de uma mulher que não acredita noutros mundos - as duas mulheres da vida de Brick- p. 61 e 88 

 Brill inventou a guerra e inventou Brick para que ele mate Brill- p. 65
 Morte de Owen Brick- p. 106
 História de Brill e Sonia,contada à neta Katya- p 120 a 133
 Perdição diferente de queda, que tem uma dimensão mais espiritual - p. 135 
Traição de Brill e causas do fim do casamento de Brill com Sonia - p. 137
 Oona McNally- 138 a 140 
História de Katya e Titus - p.145 a 149/ 152 a 157 
Relação de Titus com Brill - p.151 

 Nunca minto acerca de livros

 o bizarro mundo continua a girar. - FIM

domingo, 7 de abril de 2024

Pertubações...

    Às vezes você fazia um pensamento e morava nele. Afastava-se. Construía uma casa assim. Longínqua. Dentro se si. Era esse o seu modo de lidar com as coisas.

    Que se encontra por trás da pele e do corpo, o que é ser pessoa? "Pois entre músculos, órgãos e veias existe um lugar só seu, isolado e único. E é nesse lugar que estão os afetos"

     É muito redutor dizer que é um livro sobre o racismo, já que a narrativa é sobre compreender o outro e olhar para além do que se vê.Talvez, como dizia Saramago, em Ensaio sobre a Cegueira, reparar, ver o que não se vê, o tal avesso apenas percetível para quem quer reparar. 

    Através da relato de Pedro, conseguimos ver verdadeiramente todos aqueles que fazem parte da sua vida de uma forma única, a do seu olhar capaz de entrar dentro da pele e descodificar o seu âmago.


     Tentamos, assim, compreender a sua mãe e, de forma mais particular, o seu pai, que sabemos que morreu logo no início da narrativa. Tentamos, afinal, compreender o Outro, seguindo a narrativa de um Eu. 

     As diferentes vozes e os vários relatos, as referências musicais e cinematográficas, mas sobretudo a forma como a literatura e os seus protagonistas se cruzam em todas estas vidas, levam-nos numa viagem até ao avesso da humanidade, evitando julgamentos, mas refletindo a cada página sobre o que é ser humano, o que existe "antes da pele". 

"Quem sou eu / Sou um morto que viveu / Corpo humano que venceu / Ninguém morreu / Ninguém morreu / Ninguém morreu"

" composição sinfónica sobre a mentira/ verdade que é a arte" 

  Quando encontramos aquele que é o Primeiro devemos renunciar, pensei. 

  O local propício rouba concentração ao artista...

Há professores que asfixiam os alunos com a sua mediocridade... Haverá professores que os asfixiam com a sua genialidade?? 

  eu odiei desde sempre o virtuosismo...Porque eu odiava o público mais do que tudo no mundo e odiava tudo aquilo que está ligado ao público, portanto odiava também os próprios virtuosos


 (…) contra todas as vozes que me confirmavam que eu era um dos melhores, mas ser dos melhores não me bastava, eu queria ser o melhor ou não ser nada ( …) Ser o melhor ou não ser nada, tinha eu sempre exigido, em todas as circunstâncias. Foi por isso também que acabei por ir parar à Calle del Prado num anonimato total, ocupado a escrever obras absurdas.

"À la manière de A. Caeiro" 

A mão invisível do vento roça por cima das ervas. 
Quando se solta, saltam nos intervalos do verde 
Papoilas rubras, amarelos malmequeres juntos, 
E outras pequenas flores azuis que se não veem logo. 

 Não tenho quem ame, ou vida que queira, ou morte que roube. 
Por mim, como pelas ervas um vento que só as dobra 
Para as deixar voltar àquilo que foram, passa. 
Também por mim um desejo inutilmente bafeja 
As hastes das intenções, as flores do que imagino, 
E tudo volta ao que era sem nada que acontecesse

Opiniões

Narrativa autobiográfica,  com intensidade emocional e linguística.

 «Tempo de leitura: quatro horas. Tempo de recordação: a vida inteira.»

 «mistura de frivolidade circunstancial e sabedoria autoritária.» 

 «[Uma escrita] de pequena escala, intensa, impecavelmente incisiva.» 

«Sublime, áspero, triste.» 

 «Uma narrativa simultaneamente apaziguadora e inquietante» 


 As protagonistas são a linguagem de uma amizade queer juvenil. 
 

 «Passaram tantos anos, e ainda torno a ver o seu rosto, um rosto que busquei noutras mulheres, que nunca encontrei. Era muito íntegra. Uma coisa perigosa. […] Nunca demos a mão e tê-lo-íamos achado ridículo. Viam-se pelos caminhos rapariguinhas de mão dada, a rirem-se, a fazerem de amigas, a fazerem de amantes,  em nós, havia uma espécie de fanatismo que impedia qualquer efusão física.»



Uma mulher culta, independente, divorciada e já com filhos adultos, apaixona-se por um homem casado, estrangeiro, mais jovem. Durante dois anos, esperar por ele torna-se um objetivo de vida...Um tema banal, mas que não se reduz ao sentimentalismo piegas de uma " paixão simples". 

Uma história autobiográfica, muito bem escrita. 





 They slither wildly as they slip away across the universe Pools of sorrow, waves of joy are drifting through my opened mind Possessing and caressing me

    Em 1963, Annie Ernaux,  uma estudante de 23 anos, engravida do namorado que acabara de conhecer. Sem poder contar com o apoio dele ou da própria família numa época em que o aborto era ilegal em França, ela vive praticamente sozinha o acontecimento que analisa neste livro quarenta anos depois, quando já é uma das principais escritoras de seu país. Com a ajuda de entradas do seu diário e de memórias há muito guardadas, Ernaux reconstrói seu périplo solitário para realizar um aborto clandestino. Quando por fim encontra uma “fazedora de anjos” disposta a realizar o serviço, a jovem acaba na ala de emergência de um hospital. Anos se passam sem que ela tenha coragem de revisitar o episódio. Ernaux encontra o caminho para falar publicamente do seu aborto e fazer da literatura uma profissão de fé, que comove pela honestidade cortante: “o verdadeiro objetivo da minha vida talvez seja apenas este: que meu corpo, as minhas sensações e os meus pensamentos se tornem escrita, isto é, algo inteligível e geral, a minha existência completamente dissolvida na cabeça e na vida dos outros”. 



 É comovente a admiração que o narrador tem pelo pai, um médico que dedica a vida aos doentes até ao dia em que é assassinado no centro de Medellín, com um poema de Borges no bolso...

 El olvido que seremos 

“Ya somos el olvido que seremos. 
  El polvo elemental que nos ignora 
y que fue el rojo Adán y que es ahora
 todos los hombres y que no veremos. 
Ya somos en la tumba las dos fechas 
del principio y del término, la caja, 
la obscena corrupción y la mortaja, 
los ritos de la muerte y las endechas. 
No soy el insensato que se aferra 
al mágico sonido de su nombre; 
pienso con esperanza en aquel hombre
 que no sabrá que fui sobre la tierra.
 Bajo el indiferente azul del cielo 
esta meditación es un consuelo.”

É um dos paradoxos mais tristes da minha vida: quase tudo o que escrevi foi escrito para alguém que não pode ler-me..." Héctor Abad Faciolince

 
 
Oslivros são um simulacro de recordação, uma prótese para recordar, uma tentativa desesperada de tornar um pouco mais perdurável o que é irremediavelmente finito.

 em casa viviam dez mulheres, um menino e um senhor. 

 Um dia tive de escolher entre Deus e o meu pai, e escolhi o meu pai. O meu pai deixava-me fazer tudo o que eu quisesse. / O meu pai nunca tinha dinheiro suficiente porque estava sempre a dar ou a emprestar... / Quando eu chegava a casa, o meu pai...abraçava-me, beijava-me, dizia-me um monte de frases carinhosas... / Sem esse amor exagerado que me deu o meu pai eu teria sido alguém muito menos feliz. / Alguns dos meus parentes diziam que o meu pai ia acabar por fazer de mim um maricas, com tanto mimo./ Para o meu pai era importante que os filhos soubessem que nem toda a gente era feliz e afortunada como nós.../

Se não sou antissocial e suportei atentados e tristezas e ainda continuo a ser pacífico, acho que foi porque o meu  pai gostava de mim , tal como eu era.

Quando fui para o infantário...senti-me abandonado e maltratado. 

A minha mãe dizia sempre "meninas", porque havia mais meninas e, nessa época, a regra gramatical(um homem entre mil mulheres converte tudo no género masculino) não contava para ela. / A minha mãe era filha do arcebispo de Medellín...

Para a minha mãe,  só havia um  sítio bom para vivr, a Colômbia, e apenas um bom parteiro...A segurança económica que ela proporcionava à família permitia ao meu pai ser profundamente consequente com a sua independência económica e mental.

Devido ao exemplo do pai e da mãe,  um casal feliz, as minhas irmãs e eu sabemos; que há apenas um motivo pelo qual vale a pena ter algum dinheiro :para poder conservar e defender a todo o custo a independência mental sem que ninguém nos posso submeter a uma chantagem laboral que nos impeça de ser quem somos.

 Se quiseresque o teu filho seja bom, fá-lo feliz; se quiseres que seja melhor, fá-lo ainda mais feliz. Fazemo-los felizes para que sejam bons e para que, depois, essa bondade aumente a sua felicidade. 

 É com base na felicidade e no amor queHéctor Abad Faciolince cresce numa casa dominada pelas mulheres – a sua mãe, as suas cinco irmãs, Maryluz, Clara, Eva, Marta e Sol, duas criadas, Emma e Teresa, a ama da sua avó Tatá e uma freira – e pela religiosidade, numa educação católica, com referências à Nossa Senhora de Fátima e aos Três Pastorinhos da Cova da Iria, apesar do ateísmo do seu pai, que lhe ia fornecendo alguns antídotos sobre os assuntos da religião e das crenças religiosas, revelando>no entanto que é fundamental e indispensável a crença espiritual e existencial, mas que todos os fundamentalismos são perniciosos.


Este esquecimento  que seremos poderá adiar-se por mais um instante , no fugaz reverberar dos seus neurónios , graças aos olhos, poucos ou muitos, que alguma vez se detiveram nestas letras. 

 FIM



















"A essência da condição humana está no caos, não na norma"


    Ninguém nasce de uma vez. Nascemos aos poucos, pelo tempo fora. Vamo-nos juntando à medida que nascemos. Vamo-nos desconjuntando à medida que vivemos. Nunca chegamos a estar inteiros. Eu, por exemplo, nasci um dia, estava então no primeiro ano do liceu.

quinta-feira, 21 de março de 2024

Dia mundial da poesia

Adília Lopes , uma poetisa que nasceu Maria José, mas quis ter o direito de escolher o nome.É assim que distingue as duas: a Adília é estado gasoso; a Maria josé é estado sólido...

 Desde que comecei a dansar escrevo dansar com s como a Sophia. Danso sozinha para os gatos.(...) Enquanto danso penso. Penso e giro. De girar e de gerir.(...)


Gosto das cebolas
 e das pessoas

 Mas as pessoas
 são como as cebolas 
fazem chorar 

Moro na prisão
entre grades
sou uma árvore

Uma médica psiquiatra disse-me nos anos 80: sempre que uma pessoa faz uma coisa bem feita é punida por isso.


terça-feira, 12 de março de 2024

Bibliotecas...


" Não há nenhuma diferença entre a leitura e a escrita. Quem lê é o autor daquilo que lê." Christian Bobin 


    
 "Na biblioteca do faraó Ramsés II estava escrito por cima da porta de entrada: «Casa para terapia da alma». É o mais antigo mote bibliotecário. De facto, os livros completam-nos e oferecem-nos múltiplas vidas. São seres pacientes e generosos. Imóveis nas suas prateleiras, com uma espantosa resignação, podem esperar décadas ou séculos por um leitor
.Somos histórias, e os livros são uma das nossas vozes possíveis (um leitor é, mal abre um livro, um autor: ler é uma maneira de nos escrevermos)"

    Livros perdidos nas estantes que se reencontram e a surpresa , perante as nossas anotações

    Cartas de kafka a um menina desconhecida, em nome da sua boneca desaparecida...


"Livros que nos casam"

Personagens de romances que invadem a nossa vida...

Poderes da poesia ...

"Ler 30 minutos por dia  fará viver, em média, mais dois anos."

"Para roubar como deve ser é preciso cultura.", mas a cultura é sempre uma ameaça....
Quando temos dois pães, devemos.

Ir para a escola pelo caminho com mais palavras...

Mulher árabe : " Comecei a ler e libertei-me"

"Um escritor que não tem uma ferida constantemente aberta não é um escritor.", disse  Elias Canetti; eu substituo escritor por ser humano...

sexta-feira, 1 de março de 2024

Menina de colégio...

Passaram tantos anos, e ainda torno a ver o seu rosto, um rosto que busquei noutras mulheres, que nunca encontrei. Era muito íntegra. Uma coisa perigosa. […] Nunca demos a mão. e tê-lo-íamos achado ridículo. Viam-se pelos caminhos rapariguinhas de mão dada, a rirem-se, a fazerem de amigas, a fazerem de amantes. em nós, havia uma espécie de fanatismo que impedia qualquer efusão física.

domingo, 25 de fevereiro de 2024

Fragmentos sonoros...


 Primeiro fragmento de uma história do mundo , elaborada a partir da análise de notícias atuais e de memórias de personagens/ factos históricos, com "saltos no tempo e na frase", numa "prosa sonoramente pensada e partida para ser lida em voz semialta", como afirma o autor que, entre muitas outras coisas lhe interessa isto:" o entendimento que vem do ritmo e do som da linguagem de frente para os acontecimentos" 

 1. Notícias no século XXI 

 Animais periódicos, diários, que têm apetite súbito 
quando a presa está fraca,
 fazem da fotografia de um fracasso banquete
 para a enorme pançarra dos muitos sujeitos de saliva na boca.
 Notícias com rostos apanhados em descalabro 
são vendidas no mundo a peso e a metro,
 régua que mede em dólares e não em centímetros.

segunda-feira, 12 de fevereiro de 2024

AmizadeS...

Um livrinho encantador que concilia simplicidade, leveza, com profundidade... Muitas perguntas , poucas certeza, como é característico das pessoas inteligentes... Uma sintonia perfeita entre texto e imagem.

 Este livro responde a perguntas que as crianças nos fazem ou que nunca chegaram a sair da suas (e até das nossas) cabeças: 

  Como é que os nossos amigos ficam nossos amigos? O que nos faz aproximar ou afastar uns dos outros? 

Uma história sobre como nascem os amigos e os vários níveis de amizade; como se explica que haja amigos mais próximos, amigos mais distantes, amigos que só estão alguns dias na nossa vida e amigos que estarão durante toda a vida, e que não o adivinhamos. Um texto sobre porque é que a nossa vida é bem melhor com eles do que sem eles. O narrador compara o universo físico (planetas, lua, estrelas) com o universo da amizade e dá pistas sobre como reconhecer os grandes amigos. 

  O universo é feito de muitos (muitos mesmo, tipo infinitos) planetas, estrelas, galáxias, eu sei lá... (muitos eu sei lás...)

A força que os atrai uns para os outros chama-se gravidade. Se se aproximam muito, chocam uns com os outros; se se afastam muito, separam-se para sempre. 

  E as pessoas? Qual é a força que as faz aproximar e afastar? Não há nenhuma teoria? Uma Lei da Gravitação Universal das Pessoas? Que leis da Física ou da Química - ou da Música - nos regulam?

domingo, 28 de janeiro de 2024

 

Narrativa sobre a solidão, a doença dos tempos modernos, e o confronto com o passado com que  nos tentamos reconciliar...

Tentarei que tudo seja muito simples, vorobusshek: como se esta fosse uma história para crianças.
 

  George B. nunca saía de casa e, portanto, o mundo tinha de ir até ele. 

  O mundo é o reino do preconceito, afirmou, mas o meu apartamento é o reino da liberdade. Pode parecer-te uma prisão. mas, aqui dentro, posso ser exactamente quem sou.

Não tinha necessidade de sair. Tinha o dinheiro da pensão. Os amigos lá fora tratavam de tudo por mim.Tornou a levar os dedos às têmporas. A imaginação, Natascha disse, como se su fosse muito burra. A imaginação é suficiente. 

  O falecido deixou-lhe ...e uma lista telefónica de 1992. 
Compreendo que tenha recusado tudo, exceto a lista telefónica...

"Acabámos agora o nosso encontro sobre o livro O nome que a cidade esqueceu, de João Tordo. De uma forma geral, todas gostámos do livro e sentimos que as personagens e a história central nos cativou e nos fez refletir acerca de um dos maiores flagelos da sociedade atual, a solidão dos centros urbanos. A cada página, o escritor consegue transportar-nos para aquele início da década de 90, pós queda da URSS e consequentes transformações, levando o leitor a caminhar pela cidade de Nova Iorque através dos passos de Natasha, revivendo o que era a ida à biblioteca quando não havia smartphones, as relações nascidas nas típicas lavandarias norte-americanas, as personagens caricatas de uma grande metrópole, a importância das cabines telefónicas; mas também absorvendo a história de George e o seu destino, pois, tal como o nome que ele procurava na lista telefónica, ele foi um "nome que a cidade esqueceu". George e Natasha são a prova de que as coincidências existem e que, entre milhões de pessoas, às vezes podemos encontrar alguém que revoluciona o nosso destino e nos faz acreditar num "Deus do impossível, aquele que desafia toda a lógica", mesmo que o final não seja tão belo quanto esperávamos, tal como a vida real." Vanda Balão

segunda-feira, 22 de janeiro de 2024

Luís Vaz de Camões

Nasceu faz hoje 499 anos? Nasceu faz hoje 500 anos? O que importa é que tem de ser recordado, porque devem ser assinalados "Aqueles que por obras valerosas / se vão da lei da morte libertando".

 Camões foi só um dos maiores poetas do Renascimento . Camões foi  só um génio do humanismo português...
 
 Recordemo -lo, então,  pelo lamento desencantado com que se despede na sua epopeia.  Tão magoadamente verdadeiro:  há 500 anos, tal como hoje...


 Não mais, Musa, não mais, que a Lira tenho
 Destemperada e a voz enrouquecida, 
 E não do canto, mas de ver que venho
 Cantar a gente surda e endurecida. 
 O favor com que mais se acende o engenho 
 Não no dá a pátria, não, que está metida 
 No gosto da cobiça e na rudeza 
 Duma austera, apagada e vil tristeza. 


 Os Lusíadas, Canto X,145

quinta-feira, 11 de janeiro de 2024

À espera...


Sinopse 

 "Babakar Traoré estudou no Canadá, é médico e vive sozinho em Guadalupe, onde estão as origens da sua família materna - mas também a sua solidão, os seus fantasmas, bem como a recordação de uma infância africana, de uma mãe de olhos azuis que vem visitá-lo em sonhos, de um antigo amor, Azélia, também desaparecida, e de outras ilusões juvenis antes do seu exílio e da idade adulta. Quando, a meio de uma noite de temporal, é chamado para assistir um parto, Babakar não sabe que a sua vida está prestes a mudar por causa dessa criança que vai nascer; a mãe, Reinette, uma refugiada haitiana, morre ao dar à luz - e a pequena Anaïs fica a seu cargo. O desejo de Reinette era que a filha fosse criada no Haiti, e Babakar muda-se para a ilha, à procura de quem pudesse ensinar a Anaïs de onde ela vem. Através da história dessa dupla improvável, Babakar e Anaïs, dos amigos Movar e Fouad, que os acompanham, e dos que foram encontrando naquela ilha martirizada por violência, governos corruptos e gangues rebeldes, mas tão bela e fascinante, irá reconstruir-se um novo mapa ligado pelos danos do colonialismo..."

segunda-feira, 1 de janeiro de 2024

terça-feira, 19 de dezembro de 2023

Natal...

Odi et amo. Quare id faciam fortasse requiris. Nescio, sed fieri sentio, et excrucior. 

  Natal
Leio o teu nome 
Na página da noite: Menino Deus... 
E fico a meditar 
No milagre dobrado
 De ser Deus e menino. 
Mas de ti como posso duvidar? 
Todos os dias nascem
 Meninos pobres em currais de gado.
 Crianças que são ânsias alargadas 
De horizontes pequenos. 
Humanas alvoradas... 
A divindade é o menos.


 1ª - Substituir o mês de dezembro por julho. 

2ª - Limpar o calendário, com especial afinco os dias 24 a 26 dezembro. 

3ª - Fazer um retiro em dezembro. 

4ª - Perder a memória com uma paulada na cabeça. 

5ª - Tornar-se budista ou muçulmano.

 6ª - Estragar o Natal dos outros. 

7ª - Ficar preso no elevador. 

8ª - Tornar-se monge. 

9ª - Organizar uma série de manifestações contra a guerra. 

10ª - Ter um acidente de automóvel. 

11ª - Suicidar-se.

 (Ainda tínhamos muitas ideias: prisão, LSD, Lua...Desistimos delas. Mas temos uma última:

 12ª - Fazer uma lista de propostas para escapar ao Natal.

 Nota do Autor: Feliz Natal!

sábado, 16 de dezembro de 2023

 

"Mais um ano está a findar, e Asle, um velho pintor viúvo e solitário, está parado defronte da sua última tela. Interroga-se se estará pronta, se gosta dela ou se a levará juntamente com as outras treze obras que preparou para a sua próxima exposição em Bjørgvin. É o início de uma longa meditação sobre o seu passado de jovem pintor sem dinheiro, a relação com Ales, a sua falecida mulher, e a conversão tardia ao catolicismo. Porém, existe um outro Asle, tão real quanto aquele, também ele pintor, também ele solitário, mas dependente do álcool. Duas histórias de vida que se cruzam. Luz e sombra. Fé e desespero." Serão duas histórias? 

  ...ou Deus é todo -poderoso e logo não existe livre arbítrio, ou Deus é não todo -poderoso e existe livre arbítrio...






     Asle é um "eu" que medita sobre os " uns outros" que o habitaram na infância e juventude.


    e então olho na escuridão e vejo o Asle sentado no baloiço do pátio de sua casa mas sem baloiçar

terça-feira, 28 de novembro de 2023

Pessoa revisitado...

Compararei algumas destas figuras, para mostrar, pelo exemplo, em que consistem essas diferenças. O ajudante de guarda-livros Bernardo Soares e o Barão de Teive — são ambas figuras minhamente alheias — escrevem com a mesma substância de estilo, a mesma gramática e o mesmo tipo e forma de propriedade: é que escrevem com o estilo que, bom ou mau, é o meu. Comparo as duas porque são casos de um mesmo fenómeno — a inadaptação à realidade da vida, e, o que é mais, a inadaptação pelos mesmos motivos e razões. Mas, ao passo que o português é igual no Barão de Teive [e] em Bernardo Soares, o estilo difere em que o do fidalgo é intelectual, despido de imagens, um pouco — como direi? — hirto e restrito; e o do burguês é fluido, participando da música e da pintura, pouco arquitectural. O fidalgo pensa claro, escreve claro, e domina as suas emoções, se bem que não os seus sentimentos; o guarda-livros nem emoções nem sentimentos domina, e quando pensa é subsidiariamente a sentir.


O único manuscrito de Álvaro Coelho de Athayde, décimo quarto  Barão de Teive.

Manuscrito encontrado numa gaveta. 
Para não deixar o livro em cima da mesa do meu quarto, sujeito assim ao exame de mãos suspeitamente limpas dos criados do hotel, abri, com certo esforço, a gaveta, e meti-o lá, empurrando-o para trás.

Esbarrou em qualquer coisa, pois a própria gaveta não era tão pouco funda. 

 Atingi a saciedade do nada, à plenitude de coisa nenhuma. O que me levará ao suicídio é um impulso como o que lava a deitar cedo. Tenho um sono íntimo de todas as intenções. Nada pode transformar a minha vida. Se...se...Sim, mas se é sempre uma cousa que não aconteceu; e se não aconteceu, parq que supor o que seria se ela fosse?

Estas páginas não são a minha confissão senão a minha definição.(...) Por ter duas virtudes, o sentimento intelectual e o sentimento mora) nunca pude fazer nada de mim.

Ainda me punge perder uma ideia, escapar-me da memória uma frase por escrever, não fixar um ponto de vista. Sei bem,  muitas vezes,  que não conseguiria dar corpo real a esses esboços dele. Mas há um ciúme de mim mesmo, uma avareza do abstracto, e tenho notado que a avareza e o espírito de vingança, talvez por serem duas formas de mesquinhez, têm parentesco e sangue comum.

Se tive certezas, lembro-me que todos os loucos as tiveram maiores.

Na construção de um sistema sobre os fenómenos sexuais próprios, não posso esquivar-me a ver qualquer coisa de implacavelmente grosseiro e vil. Todos os indivíduos grosseiros têm necessidade da nota sexual; é ela, até , que os distingue. Não podem contar anedotas fora da sexualidade; não sabem ter espírito fora da sexualidade. Vêem em todos os pares uma razão sexual de serem pares.

Nunca tive saudades , porque nunca tive de que as ter e fui sempre racional com os meus sentimentos. Como nada fiz da minha vida, não tenho de que recordar-me com saudade, pude ter esperanças, porque o que não existe pode ser tudo; hoje  nem tenho esperanças , porque não vejo razão porque o futuro seja diferente do passado.

Há páginas ...que me angustiam; parecem escritas, não diria  por mim, mas, que me seriam de um absurdo apropriado, por um irmão gémeo que não tive, algém que é diferentemente a mesma cousa que sou.

O prazer é para os cães, a queixa para as mulheres; o homem tem somente, de seu e próprio, a honra ou o silêncio.

Atingi, creio, a plenitude do emprego da razão. E é por isso que me vou matar.

Nota explicativa : Transferi para Teive a especulação sobre a certeza, que os loucos têm nais do que nós.

Nascemos sem saber falar e morremos sem ter sabido dizer. Passa-se nossa vida entre o selêncio de quem está calado e o silêncio de que não foi entendido, e em torno dist, como uma abelha em torno de onde não há flores, paira incógnito um inútil destino.

Páginas que recomendaria a um amigo escritor : 45,46,47; 50,51, 52.
Páginas que recomendaria a um amigo namoradeiro: 54,55.
Páginas que recomendaria a um amigo, admirador de Antero:  68 a 72.

Reflexão final de Richard Zenith:

Para além da curva da estrada
Talvez haja um poço, e talvez um castelo,
E talvez apenas a continuação da estrada.
Não sei nem pergunto.
Enquanto vou na estrada antes da curva
Só olho para a estrada antes da curva,
Porque não posso ver senão a estrada antes da curva.
De nada me serviria estar olhando para outro lado
E para aquilo que não vejo.
Importemo-nos apenas com o lugar onde estamos.


Há beleza bastante em estar aqui e não noutra parte qualquer.
Se há alguém para além da curva da estrada,
Esses que se preocupem com o que há para além da curva da estrada.
Essa é que é a estrada para eles.
Se nós tivermos que chegar lá, quando lá chegarmos saberemos.
Por ora só sabemos que lá não estamos.
Aqui há só a estrada antes da curva, e antes da curva
Há a estrada sem curva nenhuma.



Disse Amiel que uma paisagem é um estado de alma, mas a frase é uma felicidade frouxa de sonhador débil. Desde que a paisagem é paisagem, deixa de ser um estado de alma. Objectivar é criar, e ninguém diz que um poema feito é um estado de estar pensando em fazê-lo. Ver é talvez sonhar, mas se lhe chamamos ver em vez de lhe chamarmos sonhar, é que distinguimos sonhar de ver.(...)
O Tejo ao fundo é um lago azul, e os montes da Outra Banda são de uma Suíça achatada. Sai um navio pequeno - vapor de carga preto - dos lados do Poço do Bispo para a barra que não vejo. Que os Deuses todos me conservem, até à hora em que cesse este meu aspecto de mim, a noção clara e solar da realidade externa, o instinto da minha inimportância, o conforto de ser pequeno e de poder pensar em ser feliz.


O Chiado sabe-me a açorda.
Corro ao fluir do Tejo lá em baixo.
Mas nem ali há universo.
E o tédio persiste como uma mão regando no escuro.



Eterna verdade vazia e perfeita!
Ó macio Tejo ancestral e mudo,
Pequena verdade onde o céu se reflecte!
Ó mágoa revisitada, Lisboa de outrora de hoje!
Nada me dais, nada me tirais, nada sois que eu me sinta.

Deixem-me em paz! Não tardo, que eu nunca tardo...
E enquanto tarda o Abismo e o Silêncio quero estar sozinho!



Eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh eh-eh-eh!
EH-EH EH-EH-EH EH-EH EH-EH EH-EH-EH!
EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH EH EH-EH!
EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH!
EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH!

Parte-se em mim qualquer coisa. O vermelho anoiteceu.
Senti demais para poder continuar a sentir.
Esgotou-se-me a alma, ficou só um eco dentro de mim.
Decresce sensivelmente a velocidade do volante.
Tiram-me um pouco as mãos dos olhos os meus sonhos.
Dentro de mim há um só vácuo, um deserto, um mar nocturno.
E logo que sinto que, há um mar nocturno dentro de mim,
Sabe dos longes dele, nasce do seu silêncio,
Outra vez, outra vez o vasto grito antiquíssimo.
De repente, como um relâmpago de som, que não faz barulho mas ternura,

Subitamente abrangendo todo o horizonte marítimo
Húmido e sombrio marulho humano nocturno,
Voz de sereia longínqua chorando, chamando,
Vem do fundo do Longe, do fundo do Mar, da alma dos Abismos,
E à tona dele, como algas, bóiam meus sonhos desfeitos...
Ahó-ó-ó-ó-ó-ó-ó-ó-ó-ó-ó — yy...
Schooner ahó-ó-ó-ó-ó-ó-ó-ó-ó-ó-ó-ó-ó — yy......


O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia, / Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia / Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia,

De longe vejo passar no rio um navio...
Vai Tejo abaixo indiferentemente.
Mas não é indiferentemente por não se importar comigo
E eu não exprimir desolação com isto...
É indiferentemente por não ter sentido nenhum
Exterior ao facto isoladamente navio
De ir rio abaixo sem licença da metafísica...
Rio abaixo até à realidade do mar.

domingo, 26 de novembro de 2023

Normalidades...

Rauli, um rapazinho muito delicado, quase feminino, dado à contemplação,   ávido leitor dos clássicos, é um menino de dez anos que adivinha o futuro e se sente como uma mulher que nasceu no corpo de um homem. Como Cassandra (filha dos reis de Troia, irmã de Heitor e Páris, sacerdotisa de Apolo), Rauli tem o dom da profecia e a maldição de ninguém acreditar nele. Desde cedo sabe que irá combater em Angola e que morrerá trespassado por balas e pela homofobia. O romance testemunha também o colapso do sonho do «homem novo» e da utopia internacionalista. Lírico e histórico ao mesmo tempo, Chamem-me Cassandra reconstrói o quotidiano da Cuba dos anos 70, através da ligação do mito clássico e de figuras da guerra de Troia ao enredo da guerra de Angola. (Texto da contracapa, adaptado)

... quero passar muito tempo a olhar para o mar até o mar se gastar nos meus olhos e não ser mais do que uma linha branca que faz chorar. 

Gastei o dinheiro do transporte em livros e arrrasto os pés para levantar o pó e depois respirá-lo... 

Vejo mortos.(...) Também adivinho coisas. Eu sei como a russa vai morrer... 

Afundo-me nas ideias de Kierkegaard quando volto da escola. Afundo-me nas suas ideias  como quem regressa a um porto seguro onde já esteve...

A minha mãe penteia-me, põe-me um laço azul e chama-me Nancy.Queri ir para o quarto para continuar a ler Kierkegaard , ir assim, vestido de mulher.


A minha mãe também julga que eu sou maricas, que gosto de homens, mas eu não sinto nada.


Sinto-me à vontade vestida de Nancy e ninguém me reconhece e posso dizer que sou a Cassandra e ninguém olha para mim com estranheza. Sou uma rapariga que vai a uma festa...

OCAPITÃO.O capitão.capitão. O capitão.capitão.capitão.capitão.capitão.capitão.capitão.capitão.capitão olha para mim e é como se não me visse. O capitão olha para mim, mas não olha para mim. Ocapitão olha para a mulher amada  que jaz em Cuba e é parecida comigo. Não estou dentro dos olhos do capitão, ela é que está, a que já não está.

Dedicatória que a russa escreve, na edição cubana de Anna Karenina,  que oferece a Raulito: " Para o Raulito porque gosto mais dele do que dos filhos que terei no futuro."
Foi a Svetlana que te ofereceu esta merda- diz a minha mãe quando me vê chegar com o livro.

A minha mãe chama-me maricas num entardecer de setembro, olhando-me nos olhos.

Raulito usa a palavra "anjo" num poema e é acusado de " diversionismo ideológico"...Comove imaginar o sofrimento deste adolescente que não percebe quem é...Eu não tenho futuro , sou uma árvore de raízes  na areia...

A mãe quer que Raulito seja Nancy, a tia precocemente, desaparecida;  o capitão vê  no soldado Raul Iriarte a mulher que ficou em Cuba e morreu...Ele  torna-se Cassandra...

O capitão chama-me pelo nome dela e dá-me um  abraço que nos consome a ambos, o abraço mais longo do mundo deu-me o capitão enquanto as balas que me vão matar descansam dentro da espingarda automática.

Jogamos beisebol e o Anna Karénina ficou aberto em cima da cama e eu penso que algém pode roubar-mo para limpar o ânus e que então ficarei mais só, mais abandonado do que nunca, apenas com os deuses, apenas com Apolo...

José, irmão de Raulito: -   "  Se o velho descobrir, mata-te,e a ele expulsam-no do partido e, provavelmente, do trabalho, está proibido de ter um filho maricas."

A alternância Cuba/ Angola não me parece eficaz, como estratégia narrativa. Desagrada-me...Também não apreciei a veracidade dos dons divinatórios de Taulito como Cassandra: tudo deveria ter permanecido no reino da imaginação....

Lejos de un dilema de época, la literatura de Gala crece en esa representación de los inadaptados: aquellos que no encajan, que incomodan y quedan a la deriva en un sistema que prefiere invisibilizarlos. El tiempo y el espacio son relativos. ¿Angola? ¿Cuba? ¿La Grecia clásica? Lo que importa, más allá de eso, es el escenario de tragedia anticipada, cómo la condición humana sigue sujeta a mandatos que la arrastran hasta su propia perdición>Él siente que lo es, y que está viviendo en un cuerpo prestado, pero no por ser transgénero –que lo es– sino que es como una reencarnación.


 O que eu adoro este poema...



















Sempre soube que na minha cabeça alguma coisa não funcionava muito bem.