Não é neccessário vivermos ao lado de alguém para nos sentirmos ligados a esse alguém mais do que a qualquer outra pessoa...

segunda-feira, 23 de junho de 2025

quarta-feira, 4 de junho de 2025

Da depressão à loucura, seguida de ...


Sinopse - "Conto publicado no final do século XIX, retrata a história semiautobiográfica de uma jovem mulher deprimida, recentemente mãe. O marido, John, médico, demonstra grande incapacidade para entender o que se passa com ela... Com esperança de a ajudar, John muda-se temporariamente com a mulher para uma outra casa, bonita, campestre, onde a tentará recuperar com ar puro e repouso, muito repouso, demasiado repouso... A mulher, sentindo-se presa, sem opções para a sua imaginação e criatividade, vai ficando cada vez mais longe da cura, cada vez mais perto da loucura." 


  Um tema que poderia ter originado um romance excecional, dá origem a uma narrativa, demasiado breve, demasiado simplista, sem qualquer intensidade,  que pouco acrescenta à sinopse da contracapa.



"Este amor será 
real ou um sonho apenas?
 Como hei-de sabê-lo 
se a realidade e o sonho 
existem sem existir? " 

Komachi( 834- ?)



"Nos montes vazios
sem nada a oferecer,
domina o Outono"
Shiba Sonome (1664-1726)

"Toda a solidão
está dentro de quem ouve-
um cuco a chamar."
Chiyojo( 1703-1775)

"Em dias de solidão 
nem sequer um cuco chama
por esta viajante."
Tagami Kikusha( 1753-1826)

"Cheirando a suor,
aquele povo sem voz-
vou juntar-me a eles."
Takeshita Shizunojo ( 1887-1951)



"Entre uma pessoa e outra não há qualquer ponte."

"O mar agitado
e o carrinho do bebé,
lado a lado no Verão."
Hashimoto Takako( 1899- 1963)

"Folhas a cair,
folhas e folhas caindo
também na minha cama."
Mitsuhashi Takajo( 1899 -1972)

O haiku começou com Bashô e acabou com Hideno.

"Este bebé nu 
é tudo o que me foi dado
e por isso rezo."
Ishibaashi Hideno( 1909-1947)

"Dia de primavera-
um vento que vem do mar
sem que o mar se veja."
Katsura Nobuko( 1914-2016)

"Flor de cerejeira-
cada sítio onde se pára,
é só flores e flores."
Yoshino Yoshiko( 1915 -2011) 

"Perder-me no caminho
já faz parte da viagem-
contempla as papoilas."
Inahata Teiko( 1931 - 2020)

"Sinto-me tão só 
enquanto escrevo o meu bome - 
quente madrugada."
Uda Kiyojo(1935 )

"Alguém que ama outro,
com aquele que não ama 
a beber cerveja."
Kuroda Momoko( 1938 - 2023)

"Na teia de aranha
nada fica preso à noite-
brilha a lua cheia."
Katayama Yumiko( 1952)

"Apanhamos plantas
depois de termos chegado
num Porsche vermelho."
Mayuzumi Madoka(1962)

"Floresce a cerejeira / só para ensinar ao mundo /seu breve florir? " - Den Sutejo( 1633- 1698)




domingo, 1 de junho de 2025

Erros Meus...

        TUDO 


     Pela cidade
     num ou noutro 
    qualquer local 
    por acaso 
    nos encontramos 
    sem prévio aviso
    e trocamos
    olhares
    sem nada 
    para além disso
    sem nada
    para além de gostarmos 
    de nos encontrar




Balada do investigador particular( Arte poética)

A verdade é que não sei viver sem ser 
literariamente. 
Imaginando uma composição imaginária,
 que desconheço
 e me inclui. 
Sou um investigador particular, mas 
as provas não me interessam. 
Só as pistas. Porque as pistas fazem sonhar.

Nunca acreditei que fôssemos exclusivos, mas gostava de pensar que éramos singulares. 
Um par singular.

ECCO - A linguagem é a capacidade de lidarmos com a ausência...Mas , agora, quando aqui estamos os dois , a falar um com o outro, com que ausência estamos a lidar?


Vou esquecendo a nossa história, distraindo-me nas histórias dos dias dos outros, onde vamos ficando como personagens abandonadas de uma telenovela banal.
Escrevo este diário como uma história em que não acredito, mas nessa história acredito que um dia tu voltas para mim.

Depois de nós o que ficou 
foi a beleza do que não chegámos a ser 
o nosso perdido futuro 
que, ternamente, relembramos.

Depois do nosso encontro
 fica a saudade de tudo o que, 
por nos encontrarmos, 
 deixamos de ser:
 desconhecidos, cruzando-se 
nas ruas da cidade dos dias antes

  O destino é a inteligência secreta do acaso Paul Valéry 



  Estes "Erros" de Nuno Artur Silva leem-se com imenso prazer...Na sua maoria, não são poemas, apesar de muitos textos terem forma poética, são reflexões fragmentárias sobre o universo literário , sobre a realidade atual... Muito , muito interessante. A intertextualidade com obras que fazem parte de mim, que identifico sem recorrer a notas, permitiram-me uma viagem literária que me deu o estranho prazer de encontrar  amigos imaginários,  que não encontro há algum tempo, pois  ficaram esquecidos em estantes...Também encontrei muitos conhecidos reais perdidos no acaso do tempo...

segunda-feira, 26 de maio de 2025

Destino??

Pareceu-me interessante juntar estas duas mulheres que nunca se puderam conhecer, separadas pelo tempo e pelo espaço, mas com semelhanças profundas. Mereciam ter-se conhecido...
    

    Vivi sem te ver,quase sem te conhecer, e tu já eras tão meu como agora.Eu, que estou sempre a temer a desgraça, não tenho medo de te perder. Tu podes esquecer-me, abandonar-me, deixar-me, mas serás sempre meu e só meu. Eu inventei-te, meu amor. És muito mais do que o meu amante; és a minha criação. É por isso que me pertences, mesmo que não queiras.

sexta-feira, 4 de abril de 2025

Luto...

" Não é um livro, mas uma reflexão sobre o luto e sobretudo sobre o meu luto por Javier.(...) Trata-se de uma autoedição, cujas receitas irão para a fundação com o nome de Javier que os meus filhos e eu consituímos"

Nota prévia da autora, mulher de Javier Marías


Começo
- Primeiro chega a morte. Depois o luto. A desolação infinita. 
Dor - Não esperava que viesse a ser fácil, nisso não me enganei nem por um minuto, mas tão-pouco que a dor viesse a ser tão forte. Que viesse a embargar-me por completo a ponto de quase me impedir de pensar. 
Robótica - Li oi ouvi algures que é bom mover as mãos para que o cérebro não continue a alhear-se-
Identidade e fantasma -
Fases- Cérebro -
Protagonismo -
Desaparecimento
Mausoléus e múmias -
Noite Saudade -
Amonas -
Consolação -
Travessia-

Direito por linhas tortas...

“Na Faculdade de Direito de Lisboa,tive de aguentar um professor que insultou uma aluna dizendo-lhe para ir para casa tratar do marido e coser meias. Fugi, a seguir à Revolução, para Coimbra. Lisboa era uma arena de batalhas entre maoistas e comunistas e ninguém estudava, os exames foram abolidos e os professores demitidos. Em Coimbra, controlada pelo PCP, tive de aturar um professor homossexual, misógino, católico e comunista, que insultava as mulheres nas orais fazendo-as chorar. Enfrentei-o e insultei-o, ele jurou que nunca me passaria.Fiz Direitos Reais como última cadeira do curso, e passou-me com 14. Com este exemplar aprendi que ter medo é uma derrota. Por esse tempo, estava a emancipar-me, um processo de íntima violência"

 Clara Ferreira Alves, Expresso, 4 de abril de 2025

  Em Coimbra,controlada pelo PCP, tive de aturar um professor homossexual, misógino, católico e comunista, que insultava as mulheres nas orais fazendo-as chorar. Enfrentei-o... Abandonei a prova oral, porque me mandou sistematizar um problema de uma tal complexidade que o esquema dos sucessivos possuidores e propietários de uma bicicleta ocupava todo o quadro. Quando, depois de linhas e linhas esquemáticas, julgo que bem feitas, me arremessa, com ar irónico, a pergunta: " Quid iuris? ", diga, quem é , neste momento, o proprietário da bibcicleta!" Eu desci calmamente do estrado, dirigi-me para a porta e, com ar irónico, disse-lhe: " Vou à procura dele", e abandonei a sala. Claro que não esperei que o Bedel, com ar de catedrático, viesse dizer as notas. Estava no bar das Letras, quando um colega me diz: "passaste e tiveste 14" ...Com este exemplar aprendi que ter medo é uma derrota. Por esse tempo, estava a emancipar-me, um processo de íntima violência.

terça-feira, 4 de março de 2025

Quem somos?



Córidon, um pastor, pelo formoso Aléxis, 
delícias do seu dono, em desespero ardia.
A um denso faial, de vértices sombrios,
 vinha assíduo; aí, só, às selvas e montes 
lançava, num esforço inane, estes delírios:
 Não escutas, cruel Aléxis, os meus cantos:
 Nem tens pena de mim? forças-me a morrer. 

(...) 

“Córidon, que demência se apossou de ti, Córidon? 
Manténs a vide mal podada em olmo alto. 
Porque não te propões a fazer algo útil,
 trançando com o vime e o junco maleável? 
Se este te repele, acharás outro Aléxis”. 


  peço-vos perdão... não por vos deixar, mas por ter ficado tanto tempo.


O passado, por pouco que nele pensemos, é coisa infinitamente mais estável do que o presente
 

só nos vemos a nossa vida 
 
Sempre tivera medo, um medo indeterminado, incessante... 

  Toda a felicidade é inocência... 

  A primeira consequência das tendências interditas é fecharmo-nos em nós mesmos 

  Eu não era feliz. Claro que sentia uma certa decepção com esta falta de felicidade, mas acabei por resignar-me

  Pensava nele , como se ele fosse filho de outro

Advertência da autora aos possíveis leitores:
"Este livro é como um livro qualquer. Mas eu ficaria contente se fosse lido apenas por pessoas de alma já formada(...)Aquelas pessoas que, só elas, entenderão bem devagar que este livro nada tira de ninguém." CL


    Epígrafe de Bernard Berenson: "Uma vida plena pode ser aquela que alcance uma identificação tão completa com o não-eu que não haja mais um eu para morrer".


    Vida e morte foram minhas, e eu fui monstruosa. Minha coragem foi a de um sonâmbulo que simplesmente vai. Durante as horas de perdição tive a coragem de não compor nem organizar. E sobretudo a de não prever. Até então eu não tivera a coragem de me deixar guiar pelo que não conheço e em direção ao que não conheço: minhas previsões condicionavam de antemão o que eu veria. Não eram as antevisões da visão: já tinham o tamanho de meus cuidados. Minhas previsões me fechavam o mundo
.




Uma história simples de uma amizade talvez improvável em que até participa"A Brigitte Bardot em carne e osso!"que paga quarenta francos por uma garrafa de água.
 


Sinopse:
Em Paris, nos anos 60, Momo, um rapazinho judeu de onze anos, torna-se amigo do velho merceeiro árabe da rua Bleue. Mas as aparências iludem: o Senhor Ibrahim, o merceeiro, não é árabe, a rua Bleue não é azul e o rapazinho talvez não seja judeu.


    O que é ser judeu?

Ser judeu é simplesmente ter memória. Uma má memória. 

    O que é ser árabe? 

Para toda a gente sou o árabe da esquina. 
Árabe significa ter a mercearia aberta à noite e ao domingo 



 A década de 1980 na República da Irlanda foi um tempo de crise. Os governos de Charles Haughey e Garret FitzGerald agravaram a situação com empréstimos e impostos elevados. Depois de aderir ao ERM - Mecanismo Europeu de Taxas de Câmbio em 1979, a Irlanda também foi confrontada , durante grande parte da década de 1980, com uma moeda sobrevalorizada. Grande parte do capital emprestado, na década de 1980, foi destinado a sustentar esta moeda sobrevalorizada. O investimento estrangeiro, sob a forma de capital de risco, foi desencorajado. Esta foi também uma fase de instabilidade política e de extrema corrupção política, com alternância entre o Fianna Fáil e o Fine Gael, com alguns governos que nem sequer duraram um ano e, num caso, três eleições em dezoito meses. O

    Passa-se em 1985, mas há algo de medieval, nesta história simples, bem escrita, de leitura muito agradável que evidencia, de modo tranquilo e sereno, a maldade que pode estar escondida, num convento católico, muma Irlanda em crise.

    Sem reflexões filosóficas, a narrativa flui , marcada por acontecimentos que, eles sim, desencadeiam , inevitavelmente, a reflexão do leitor. Nunca o narrador nos impões a sua perspetiva, pois prefere  deixar que a ação e as personagens se encarregam de mostar a realidade. Julgar? Julgue quem lê... 
 

“Numa impossível manhã de Inverno, numa estação muito conhecida, um homem que não conheço-” Quando? Onde? Quem? É neste ambiente de indefinição e mistério que todos os contos se desenrolam… Uma combinação perfeita do real com o fantástico e reflexões filosóficas sobre a condição humana. E se o tempo parasse? Como seria o encontro com um “eu” passado? Morrer pode ser uma forma de viver? Já imaginou ser apenas o sonho de alguém? Quem sou eu? São alguma das perguntas... Será que encontramos as respostas? 

 "À semelhança de Poe, que foi sem dúvida um dos seus mestres, Giovanni Papini não pretende que os seus contos fantásticos pareçam reais." - Prefácio

E se o tempo parasse? Alguém desejaria ficar aprisionado daquele instante?

 Nós precisaremos da ilusão do futuro, para viver na realidade do presente de hoje e do de amanhã?

Um homem encontra o seu Eu do passado. Do convívio nasce a certeza do quão odiosos fomos, somos e seremos. Sem outra alternativa, matamo-nos.

 Viver é sonhar com o futuro e assassinar o passado. 

 Um “evento” culmina no esperado. Uma vida que não merece ser escrita, não merece ser vivida. 

 Uma ode à morte: uma forma diferente de viver morrendo.

 E se eu fosse apenas um sonho de alguém? A vida é um sonho? Uma alucinação? 

Ninguém se lembra de o ter conhecido… Ele acaba por fazer a questão que outros lhe têm colocado a ele mesmo, e compreende que ele nunca se conheceu a ele mesmo na vida, não na sua abstração, pelo menos. O mundo volta a lembrar-se dele, mas ele já não faz parte desse mundo. 

 Um escritor procura o “homem comum”, aquele que não teve nenhum evento digno de registo na sua vida, mas que, ainda assim, tem uma história que poderia dar um romance – como a de toda a gente,

sábado, 1 de março de 2025

EuropaS...Estilhaços europeus...

Durante a escola primária, europa foi mapa, continente, capitais, paris, madrid, londres...Foi uma realidade teórica, memorizada e papagueada, sem entusiasmo, apontada num mapa. Os continentes são...as capitais são...

A europa fica... Entre os 9 e os 14 anos, a europa foram viagens com os pais... todas as férias, natal, páscoa e agosto, não tinha escolha, não podia ficar. Eles gostavam de viajar, de fazer quilómetros por essa europa fora... Os fins de semana, com feriado a jeito, eram mais sagrados do que uma peregrinação por motivos religiosos: vigo, madrid e andorra ... Lá os seguia, entediada, com o mesmo desinteresse com que aprendeu a europa teórica...Levava sempre uma almofada, de que não se separava nunca, o que enfurecia a mãe e desgostava o pai. Um vez esqueceu-se da almofada algures num hotel na suíca, quando deu pela falta dela, nessa noite não dormiu, chorou, apanhou uns tabefes, fez a birra mais espalhafatosa de toda a vida ... A europa foi o continente da primeira perda, o que sofreu sem a " fofinha"...Sempre que pensa nessa história, não consegue explicar exatamente a ligação afetiva que tinha à almofada, mas talvez ela significasse o desprazer por tanta viagem, a tristeza que sentia por não ser como as outras meninas que ficavam em casa nas férias e, no mês de agosto , iam quinze dias para mira ou para a figueira da foz... 

 França foi também local de "perdição"... Numa rua de paris, cujo nome não recorda, mas que lhe ficou gravada na memória, perdeu-se dos pais. Teve tanto medo, mal sabia falar francês, deve ter tido um ataque de pânico, mas isso era coisa que na época ainda nem tinha nome.Sentou-se num muro a chorar baixinho...Talvez pareça uma cena de filme, mas o facto é que um professor da alliance francaise, que dava aulas em coimbra, a reconheceu e a levou ao hotel...Neste episódio ,registou o modo, algo romanesco, como foi salva e o abraço apertado do pai. Viu-o duas vezes chorar ou melhor com lágrimas pendentes nos olhos: quando a mãe morreu e nesse momento. Como o pai era homem de reconhecimentos à moda antiga, enquanto esteve em coimbra, todos os anos, no natal, o salvador recebeu uma garrafinha de vinho do porto... A europa foi,assim, uma inevitabilidade sazonal a que os pais a condenaram: sempre os sentiu como uma espécie de agentes turísticos perversos...Na europa, perdeu um afeto e perdeu-se. 

 Durante o tempo da faculdade, a europa foram viagens por opção, amigos, alguns excessos, um eu diferente que lhe surgiu, inesperado, mas que rapidamente se desvaneceu: munique e paris ficaram para sempre arquivadas, foram episódios à margem do seu eu essencial... 

 Europa foi CEE, aulas de introdução à política, alcobaça, uma vida diferente... 

 Anos mais tarde, europa foi a angústia de mãe quando um filho,provinciano, inexperiente, com 18 anos, parte um mês com amigos, antes dos telemóveis, dos chats, dessas coisas que anulam as distâncias. As dúvidas( terá sido sensato deixá-lo ir?) a espera de notícias, dias e dias sem saber nada, até que um telefonema de amesterdão lhe diz que ficam lá uma semana. O pavor do fácil acesso a drogas , mais dúvidas, em casa de quem estará, um mês bem mais terrível do que aquele em que a europa privou uma criança da sua almofada... 

 Europa foi concurso de tradução de cícero, roma e adriano...

 Europa foi espanha, mérida, santiago de compostela e salamanca, visitas de estudo, alunos, mas também férias, amigos, emoções desencontradas e sentimentos complexos...

 Europa foi fernando pessoa, mensagem...
A Europa é, agora, um espaço invadido, um espaço de refúgio que lentamente se vai descaracterizando e , tal como tudo, se globaliza numa mescla de culturas , de cores e de religiões: é o paraíso para os que vêm; um inferno para os que estão...

A Europa jaz, posta nos cotovelos:
De Oriente a Ocidente jaz, fitando,
E toldam-lhe românticos cabelos
Olhos gregos, lembrando.



O cotovelo esquerdo é recuado;
O direito é em ângulo disposto.
Aquele diz Itália onde é pousado;
Este diz Inglaterra onde, afastado,
A mão sustenta, em que se apoia o rosto.

Fita, com olhar esfíngico e fatal,
O Ocidente, futuro do passado.

O rosto com que fita é Portugal.



Confiei, ingenuamente, no meu velho continente, nos valores civilizacionais herdados dos gregos, sonhei uma república de Platão e acreditei nessa quimera. Confesso, mea culpa, mea maxima culpa, que integrei o grupo dos que se congratularam com a entrada de Portugal na comunidade europeia e não acreditei nos "velhos do restelo" que profetizavam desgraça...
Não tive a admirável lucidez de natália correia:

A nossa entrada (na CEE) vai provocar gravíssimos retrocessos no país, a Europa não é solidária com ninguém, explorar-nos-á miseravelmente como grande agiota que nunca deixou de ser. A sua vocação é ser colonialista. A sua influência (dos retornados) na sociedade portuguesa não vai sentir-se apenas agora, embora seja imensa. Vai dar-se sobretudo quando os seus filhos, hoje crianças, crescerem e tomarem o poder.Essa será uma geração bem preparada e determinada, sobretudo muito realista devido ao trauma da descolonização, que não compreendeu nem aceitou, nem esqueceu. Os genes de África estão nela para sempre, dando-lhe visões do país diferentes das nossas. Mais largas mas menos profundas. Isso levará os que desempenharem cargos de responsabilidade a cair na tentação de querer modificar-nos, por pulsões inconscientes de, sei lá, talvez vingança! Portugal vai entrar num tempo de subcultura, de retrocesso cultural, como toda a Europa, todo o Ocidente. Mais de oitenta por cento do que fazemos não serve para nada. E ainda querem que trabalhemos mais. Para quê? Além disso, a produtividade hoje não depende já do esforço humano, mas da sofisticação tecnológica. Os neoliberais vão tentar destruir os sistemas sociais existentes, sobretudo os dirigidos aos idosos. Só me espanta que perante esta realidade ainda haja pessoas a pôr gente neste desgraçado mundo e votos neste reaccionário centrão. Há a cultura, a fé, o amor, a solidariedade. Que será, porém, de Portugal quando deixar de ter dirigentes que acreditem nestes valores? As primeiras décadas do próximo milénio serão terríveis. Miséria, fome, corrupção, desemprego, violência, abater-se-ão aqui por muito tempo. A Comunidade Europeia vai ser um logro. O Serviço Nacional de Saúde, a maior conquista do 25 de Abril, o Estado Social e a independência nacional sofrerão gravíssimas rupturas. Abandonados, os idosos vão definhar, morrer, por falta de assistência e de comida. Espoliada, a classe média declinará, só haverá muito ricos e muito pobres. A indiferença que se observa ante, por exemplo, o desmoronar das cidades e o incêndio das florestas é uma antecipação disso, de outras derrocadas a vir.

nhe'#, em guarani, significa palavra e alma. Que coincidência bonita! Eis uma vontade súbita de aprender guarani...

  Todas as cabeças estão cheias de projetos..

Um livro inclassificável em que os "Espacialistas" são, mais uma vez, os artistas - arquitetos que transformam o pensamento e as palavras de Gonçalo M. Tavares em imagens...Tudo é perfeito neste livro visual que tem de ser percorrido com olhos de ver , de imaginar, de refletir: a qualidade do papel, o design, a sintonia forma - conteúdo, a arquitetura interna deste "Museu Imaginário da Europa"... 

Não foi a literatura que se aproximou da política, foi a política que  invadiu o campo da linguagem- invadiu e aí ficou.

                                    Alguns exemplo da riqueza das "Outras Ideias": 

     E a princípio era o traço, claro, não tanto o Verbo

    a  janela é a curiosidade em forma de vidro
    
     Habitar é uma forma de não esquecer

     
     "Toda a natureza é mensurável e a cultura é a parte da natureza que já foi medida

    "No fundo, o homem já não reza nem vira a cabeça para o céu a pedir justificações ou caridade; quando vira a cabeça para o céu é para perguntar....precisa de ajuda, meu Senhor?"

  "Somos uma espécie humana com tendência para a utopia, que preenche os espaços vazios com materiais concretos. Por isso, precisamos de céu"


Comecei a ler este livro pelo fim... Entrei neste Museu pela porta de saída, mas não deve ter importância porque todas as Romas vão dar a um caminho. É preciso não ficar na cidade.

O álcool é uma água que sonha.

As miniaturas são sínteses que cupam pouco espaço, mas muita atenção.

O arquiteto é um filósofo do efémero. / o homem que só olha para o útil não evita semelhanças com a galinha.

sábado, 15 de fevereiro de 2025

A poética do banal...

Esta terra cheia de mar...

 

“O que faço é conviver: pôr a minha vida em comum” 

 "Mas eu não morro nunca
 e eternamente busco 
e consigo a perfeição das coisas
 porque sou ateniense e grega."

 "Para escrever
 é preciso 
ter pouco
 que fazer 

 (tirando esta quadra
 não consegui hoje 
escrever mais nada)"


 Fedra está apaixonada por Hipólito
 Hipólito não está apaixonado por Fedra
 Fedra enforca-se 
Hipólito morre num acidente 

 Dido está apaixonada por Eneias 
Eneias não está apaixonado por Dido
 Dido oferece uma espada a Eneias 
Eneias esquece-se da espada
 quando se vai embora Dido suicida-se 
com a espada esquecida por Eneias 

 Um desgosto de amor atirou-me
 para um curso de dactilografia 
consolo-me a escrever automaticamente 
o pior são os tempos livres.

terça-feira, 21 de janeiro de 2025

PietàS...

 

Fiel à sua filosofia o homem atacou a pedra para libertar a forma que já lá se encontrava. E a mulher surgiu, de uma incrível beleza , debruçada sobre o filho, abandonado no seu colo num sono de morte.... A mais bela estátua de todos os tempos , e esta estava simplesmente escondida no fundo de uma pedra. Por mais que Michelangel Buonarroti procurasse, por mais que gritasse, nunca mais encontrou outra igual em nenhum bloco de mármore.

       
     A Pietà de Michelangelo perde um braço,o nariz, uma pálpebra, e fica salpicada de marcas...Muitos na multidão não tiveram a presença de espírito para reagir.Mas lembram-se de apanhar os fragmentos de mármore da vítima para os levarem para casa.Alguns, tomados de remorsos, devolvê-los-ão, mas não a maioria. 

    Amantini sugere uma explicação  que, para alguns, esclarecerá o gesto de Lazlo Toth quando este procurou a Pietà Vitaliani para a destruir, mas não a encontrou e recorreu à Pietà de Michelangelo: a obra  aproxima-mos do divino. Está possuída sim, mas pela presença divina.(...) o mistério pode residir na relaçãodo escultor com a sua modelo.

    La Pietà Vitaliani, de Michelangelo Vitaliani... Mimo Vitaliani desapareceu, sendo impossível uma resposta definitiva sobre a sua Pietà... 

      Uma escultura é uma anunciação (...) O importante não é o que esculpes. O importante é o motivo pelo qual o fazes.

    Esculpir é muito simples. Trata-se apenas de retirar camadas de histórias, de pequenos episódios, os que são desbnecessários, até chegar à história que nos diz respeito a todos, ... a história que já não pode ser reduzida sem a danificar. É nessa altura que se tem de parar de bater.

    Mas a cerdade é esta : se Cristo é sofrimento, então, quer vos agrade quer não, Cristo é uma mulher.

  Notas dispersas 
Todas as fronteiras são invenções. /  Só nos contos de fadas o ódio se transforma numa grande amizade.

Ontem dei um beijo ao meu irmão ....um belo homem que partia para a guerra.Esta noite, o meu irmão é um esqueleto...Ontem foi há vinte e cinco anos. O tempo não corre à mesma velocidade em todo o lado. Einstein tinha razão.


«Julião fez desenhos inéditos a partir dos meus escritos, incluindo quase sempre, nesses desenhos, frases retiradas desses textos. É esse livro que aqui está, com o título e a organização que os dois acertámos em conjunto: A Pedra e o Desenho.» 

      O que é o historiador? Isto. Ver o que fica da velocidade que já passou. 

      Todas são as inscrições de voz são inscrições no tempo e não no espaço. As inscrições no espaço podem ser re-lidas, re-vistas; as inscrições no tempo podem ser escutadas. Poderás dizer , por isso, que o tempo é essencialmente sonoro, não se vê , não se toca,não se cheira...

    O que tens aì gravado? Tempo... Tempo com uma certa , digamos, personalidade

terça-feira, 14 de janeiro de 2025

Amigos...


"A Imprensa da Universidade de Coimbra decidiu publicar um livro de minha autoria intitulado “O “Tien” feito carne. Os Jesuítas e a formação de um cristianismo chinês”. O livro foi sujeito a avaliação por parte de um painel internacional de especialistas, os quais se dividiram de forma radical na avaliação. Quem gostou, gostou mesmo muito. Quem não gostou, não gostou mesmo nada. Considero isso um sinal positivo. As meias tintas não interessam a ninguém. Felizmente os que gostaram estavam em maioria e foi por isso que se deu a publicação. Uma das inovações do livro diz respeito ao último imperador da dinastia Ming, Chongzhen, e à sua relação com o cristianismo. Chongzhen é um herói trágico. Em criança e jovem cresceu fora do palácio imperial, anónimo, junto do povo, circunstância absolutamente excepcional para um imperador chinês. Fora afastado pela facção dos eunucos, que se contavam por milhares no interior do palácio, e que praticamente tinham transformado o seu irmão, o imperador Tianqi, num recluso. Por morte de Tianqi, Chongzhen foi chamado a ocupar o trono. O período final dos Ming distingue-se por uma profunda crise intelectual e espiritual, com um interesse muito grande pela introspecção. Chongzhen era um produto desse ambiente, mas era também um homem muito marcado pelas ideias de culpa e expiação. Isso tornava-o permeável à teologia cristã. Quando subiu ao trono, o imperador proibiu o budismo, que era muito popular entre os eunucos. Chamou os jesuítas para o interior do palácio, deu-lhes poder e influência e tomou como secretário um poderoso mandarim cristão, protector dos jesuítas, chamado Xu Guangqi. Com a proximidade dos jesuítas deu-se inevitavelmente a proximidade aos portugueses. Todos os jesuítas do Oriente estavam, até ao final do século XVII, sujeitos ao rei português. A maior parte deles eram portugueses, mas havia flamengos, franceses, alemães, espanhóis, italianos, polacos e até lituanos. Todos, porém, deveriam passar pelo colégio de Coimbra, aprender o português (a língua franca dos jesuítas do Oriente) e embarcar em Lisboa. O temperamento melancólico de Chongzhen, e a sua marcada noção de culpa, levavam-no a que passasse horas no Templo do Céu a sacrificar ao “Tien” (O Céu). Com o tempo, porém, foi sendo doutrinado subtilmente pelos jesuítas e instruído em algumas ideias básicas do cristianismo. Certo dia pediu que lhe mandassem uma imagem de Cristo e outra da Virgem, e começou a adorá-los à maneira chinesa, batendo com a cabeça no chão, numa sala interior do palácio. O “Li” confuciano, uma energia cósmica indiferenciada e despersonalizada, começava a ganhar a forma de uma força volitiva e personalizada, que castigava o mal e premiava o bem. No espírito do imperador, o “Li” ganhava o contorno do rosto do Deus judaico-cristão. Por outro lado, os chineses precisavam de uma coisa que os portugueses tinham. Artilharia pesada, um poder de fogo como a China nunca tinha visto. As fronteiras a norte estavam ameaçadas pelos manchus, um povo de raça mongólica, semi-nómada, oriundo da Manchúria, perto da Península da Coreia. Um grupo de artilheiros portugueses seguiu para norte, desde Macau, com os preciosos canhões. Era uma luta desigual. Os manchus eram ferozes, mas andavam a cavalo com arcos e flechas. A marcha dos manchus para sul, para a China, foi travada logo ali. Pensava-se que os canhões portugueses tinham salvo os Ming. Mas era demasiado tarde. Para além da desgovernação provocada pelos eunucos e pelas lutas entre mandarins, que se tinham verificado no tempo de Tianqi e desgastado o império, o reino de Chongzhen ficou conhecido por ter sofrido uma das maiores secas de que há registos, que ficaria amargamente conhecida por “seca de Chongzhen”. Durante dezassete anos quase não choveu. Assim, em 1644 um gigantesco exército de renegados e desesperados entrou em Pequim entregando-se a todo o género de atrocidades. O imperador Chongzhen, ao ver tudo perdido, bebeu quantidades generosas de vinho, mandou chamar a sua filha e cravou-lhe um punhal no coração. Depois, desatou os cabelos e enforcou-se. Terminava assim uma das mais célebres dinastias da China, os Ming. Os manchus aproveitaram a situação de anarquia para invadir o país. Primeiro a norte, e nas duas décadas que se seguiram, o centro e o sul. Contudo, aconteceu aos manchus o mesmo que aconteceu aos bárbaros que invadiram o império romano. Ao contactar com uma cultura mais sofisticada, viram-se conquistados por ela. Os líderes manchus tornavam-se assim respeitáveis monarcas confucianos, zelosos cultores das letras e filosofia chinesa. Nascia a dinastian Qing. Com os Qing regressaram os jesuítas, que tinham construído uma notável reputação no final da dinastia anterior. Em 1692, o imperador Kangxi, segundo da dinastia Qing, querendo agradar ao seu grande amigo, o padre Tomás Pereira, lançou um “édito de tolerância”, reconhecendo o cristianismo como uma filosofia (a noção de “religião” não existe na China) em igualdade com confucianismo, budismo e taoísmo. Foi o “momentum” do cristianismo na China. A íntima e profunda relação de Tomás Pereira e Kangxi é um dos momentos tocantes dos documentos do arquivo jesuítico. Kangxi terá dito, certa vez, que Pereira era o único que “lhe conseguia penetrar o espírito”. O monarca era conhecido por ser uma alma insondável. Tomás Pereira era, para além de bom matemático, tocador de cravo. Kangxi chamava-o frequentemente para o ouvir tocar, após o que conversavam longamente sobre assuntos de política e religião da Europa. Nessas conversas, Tomás Pereira introduzia frequentememte os mistérios do cristianismo, a Trindade, a Encarnação. Passavam horas a debater. Tomás Pereira era estrangeiro. Mas Kangxi, pela sua ascendência manchu, era-o também, de alguma forma. Duas gerações antes e um homem como ele não seria considerado digno de ser sequer chinês, muito menos imperador. Todo aquele mundo que lhe era desconhecido o parecia fascinar. Porém, nunca esteve sequer perto de se converter, ao contrário do que se passou com Chongzhen. Kangxi era um perfeito confuciano e a ideia de mistério e transcendência era difícil para uma larga camada de letrados confucianos (essa é outra das teses do livro). Tomás Pereira escrevia maravilhosamente e tinha grande densidade psicológica. Os seus registos têm uma beleza quase cinematográfica. Anotou os mais pequenos gestos, manifestações corporais e faciais de Kangxi. Os seus silêncios, as meias palavras. Dir-se-ia que, a partir de determinado momento, a comunicação entre estes dois homens terá começado a dispensar as palavras. A confiança de Kangxi em Tomás Pereira levou-o a escolher o jesuíta português para chefiar a comitiva chinesa que foi à Sibéria, a Nerchinsk, para negociar a delimitação das fronteiras sino-russas. O enviado russo, Golovin, conhecedor da lendária desconfiança dos chineses relativamente aos estrangeiros, anotou no seu caderno a estupefacção que lhe provocou ver chegar a delegação chefiada por um europeu. Anotou também a viva impressão que a figura de Tomás Pereia lhe provocou. É difícil descrever o prazer que me deu investigar e escrever este livro. Este é o meu penúltimo acto como historiador, actividade que já não exerço há ano e meio. Brevemente sairá a minha “História da Espiritualidade e da Mística em Portugal. Séculos XVIII e XIX”, um volume de mais de mil páginas onde disserto longamente sobre religião, política, catolicismo, heresia, protestantismo, maçonaria e espiritismo. Esta será a minha “magnum opus”. Virá à luz do dia durante o próximo ano. E será sob a luz desse dia, a luz desse exacto dia, que o historiador que em tempos fui poderá finalmente morrer com o coração em paz."

segunda-feira, 30 de dezembro de 2024

Dia inesquecível...

 Hoje, 30 de dezembro de 2024, será para nim  um dia inesquecível. Porquê? Porque me senti existir.



quarta-feira, 11 de dezembro de 2024

Memórias...

Há memórias que nunca saram. Em vez de se esbaterem com a passagem do tempo, essas recordações tornam-se a única coisa que sobra quando tudo o resto se corrói. Luto sozinho, dia após dia.Luto contra o inferno a que sobrevivi.Luto contra a realidade da minha própria humanidade. Luto contra a ideia de que a morte é a única maneira de escapar a essa realidade. Desde que a revolta começara. eu sentia uma coisa qualquer a correr-me nas veias, uma coisa tão avassaladora como um exército... Consciência , a coisa mais avassaladora que existe no mundo.

   Como se as gotas de chuva,suspensas no ar,a prenderem a respiração antes do mergulho, estivessem prestes a vir por ali abaixo, tremeluzindo como joias.

    A morte dela foi tão silenciosa e sóbria como ela sempre fora.

    Em que parte do corpoestará aquele pássaro esvoaçante quando as pessoas ainda estão vivas.
    Quanto tempo fucarão as almas juntas dos seus corpos? Será  que esvoaçam mesmo , como se fossem pássaros? Será isso que faz estremecer a chama da vela?

    Queria ser livre para poder voar até onde  essas pessoas  estivessem e perguntar-lhes: porque me mataram?

    As almas cujos corpos já tinham sido reduzidos a nada voaram para longe...

    Ter medo, por vezes, é só querer viver...
    A barbárie nunca está no indivíduo isolado, mas nas multidões...

Sem dar por isso, tinha-me ajoelhado sobre um monte de neve que cobria a campa de Dong-ho. ..Fiquei a olhar fixamente e em silêncio para o contorno titubeante da chama, esvoaçante como a asa trnslúcida de um pássaro...

Comecei a minha vida como provavelmente a irei terminar: no meio dos livros.

    Não há bom pai, é a regra; que não se faça disso agravo aos homens e sim ao laço de paternidade que apodreceu. Fazer filhos, não há coisa melhor, tê-los, que iniquidade! Houvesse vivido, meu pai ter-se-ia deitado sobre mim com todo o seu comprimento e ter-me-ia esmagado.


    Foi nos livros que encontrei o universo: assimilado, classificado, rotulado, pensado e ainda temível; confundi a desordem de minhas experiências livrescas com o cunso aventuroso dos acontecimentos reais. Daí veio esse idealismo de que gastei trinta anos para me desfazer. 

      Os nossos visitantes despediam-se, eu ficava só, evadia-me deste cemitério banal, ia juntar-me à vida, à loucura nos livros. Bastava-me abrir um deles para redescobrir esse pensamento inumano, inquieto, cujas pompas e trevas ultrapassavam o meu entendimento, que saltava de uma ideia à outra, tão depressa que eu largava a presa cem vezes por página, deixando-a escapulir, aturdido, perdido. Eu assistia a acontecimentos que o meu avô julgaria certamente inverosímeis e que, não obstante, possuíam a deslumbrante verdade das coisas escritas. 

     Regressei à minha juventude, através de inúmeras referências literárias que terão chegado a Portugal com muitos, muitos, anos de atraso. Regressei, imaginariamente, a uma infância que não foi a minha, mas poderia ter sido. Regressei, também, a uma infância alheia que eu reconstruí, hipoteticamente, a partir de um passado - presente...

     «Nenhum livro restitui, melhor do que este, a verdade nua e brutal do colonialismo português em Moçambique. Até porque, como a autora refere, ele aparece envolvido pelo mito da sua mansuetude - sobretudo quando comparado, como era sempre, com o apartheid sul-africano. Mito tão interiorizado pelos próprios colonos que através dele, como por uma lente, percecionavam a realidade de que constituíam um elemento decisivo - como considerar-se a si mesmos violentos e prepotentes no tratamento que davam aos negros? 


     A verdade escondia-se sob a boa consciência necessária à regularidade quotidiana da vida «paradisíaca» dos brancos. Para a desenterrar era preciso ir procurá-la nas sensações infinitamente vibráteis e virgens de uma menina, filha de colonos, que vivia à flor da pele o sentido mais profundo de tudo o que acontecia.» José Gil

     «O Caderno de Memórias Coloniais relata a história de uma menina a caminho da adolescência, que viveu essa fase da vida no período tumultuoso do final do Império colonial português.  O cenário é a cidade de Lourenço Marques, hoje Maputo, espaço no qual se movem as duas personagens em luta: pai e filha.» «Palavras prévias»

segunda-feira, 28 de outubro de 2024

Um título enganador?

O tempo e a memória são a matéria de reflexão de um autor, que nos alerta para algo fundamental: não se pode enterrar o passado


Pelo caráter ininterrupto da narrativa, os diálogos contínuos, não assinalados por aspas ou travessão, reproduzem o fluir do pensamento e o ritmo da rememoração… 

As falas do narrador, as de Austerlitz e das outras personagens entrelaçam -se, como no fluxo de uma narrativa oral, que se assemelha ao fluxo de consciência... O que acontece entre eles não é um diálogo, mas um desabafo autobiográfico recheado de informações históricas. E as aparições acontecem quase sempre em bares em que o narrador entra sem nenhuma intenção pré-concebida, ou seja, são reencontros ao acaso:

  Nesse primeiro reencontro, tal como em todas as ocasiões seguintes, retomamos a nossa conversa sem desperdiçar uma única palavra sobre a improbabilidade de nosso reencontro num local como aquele, que nenhuma pessoa sensata teria procurado. (...) Foi muitos meses após esse encontro em Liége que me encontrei com Austerlitz, de novo , por puro acaso, na antiga colina do patíbulo em Bruxelas... Nos seus estudos sobre a arquitetura das estações de comboio, disse ele quando nos achávamos sentados na frente de um bistrô no Mercado de Luvas no final da tarde, cansados de tanta caminhada, ele nunca conseguia tirar da cabeça os pensamentos da aflição da despedida e do medo de lugares estranhos, embora tais emoções obviamente não façam parte da história da arquitetura. Mas talvez justamente os nossos projetos mais ambiciosos traíam da forma mais patente o grau da nossa insegurança ...


Nos seus estudos sobre a arquitetura das estações de comboio, disse ele quando nos achávamos sentados na frente de um bistrô no Mercado de Luvas no final da tarde, cansados de tanta caminhada, ele nunca conseguia tirar da cabeça os pensamentos da aflição da despedida e do medo de lugares estranhos, embora tais emoções obviamente não façam parte da história da arquitetura. Mas talvez justamente os nossos projetos mais ambiciosos traíam da forma mais patente o grau da nossa insegurança

segunda-feira, 14 de outubro de 2024

ReleituraS

Há um tipo de tristeza que vem de saber demais, de ver o mundo como ele realmente é. É a tristeza de entender que a vida não é uma grande aventura, mas uma série de pequenos momentos insignificantes, que o amor não é um conto de fadas, mas uma emoção frágil e passageira, que a felicidade não é um estado permanente, mas um vislumbre raro e fugaz de algo que nunca poderemos conservar. E nesse entendimento, há uma profunda solidão, um sentimento de ser separado do mundo, das outras pessoas, de si mesmo. 


 O verdadeiro horror da existência não é o medo da morte, mas o medo da vida. É o medo de acordar todos os dias para enfrentar as mesmas lutas, as mesmas decepções, a mesma dor. É o medo de que nada mude, de estar preso num ciclo de sofrimento do qual não consegue escapar. E nesse medo há um desespero, um anseio por alguma coisa, qualquer coisa, para quebrar a monotonia, para dar sentido à interminável repetição dos dias.


 
A vida é para nós o que concebemos nela.

 Isto não vem a propósito de nada. 

 Tenho sonhado muito. Estou cansado de ter sonhado, porém não cansado de sonhar. De sonhar ninguém se cansa, porque sonhar é esquecer, e esquecer não pesa e é um sono sem sonhos em que estamos despertos. Em sonhos consegui tudo. Também tenho despertado, mas que importa?  

Quantos César fui!


A releitura dos meus sublinhados de O Reino levou-me ao livro do dessassossego: ... e tudo é uma doença incurável.  A ociosidade de sentir o desgosto de ter de não saber fazer nada, a incapacidade de agir.

domingo, 22 de setembro de 2024

PrimaveraS...

    Uma história que se centra em três mulheres: Natsu, de trinta anos; a sua irmã mais velha, Makiko, de trinta e nove; e a filha desta, Midoriko, com 12 anos.
     O que significa ser mulher? O que implica trazer um filho ao mundo? E porquê trazer um filho ao mundo? Que opções têm as mulheres depois de serem mães? A mulher tem o direito de recusar ser mãe? Será a mulher prisioneira de expectativas inalcançáveis em relação ao seu corpo? 

  Estas são algumas das perguntas deste romance protagonizado por três mulheres pertencentes a gerações diferentes…
 
Na primeira parte, a narradora, Natsuko, que tenta ser escritora, recebe na sua casa de Tóquio a irmã, Makiko, e a filha desta, Midoriko. Makiko trabalha num bar em Osaka, onde todas viviam inicialmente. Midoriko está zangada com a mãe e não lhe fala e responde às suas perguntas escrevendo num caderno. As duas irmãs veem televisão e bebem cerveja até cair para o lado. Makiko está obcecada com a ideia de operar os seios. As duas irmãs viveram com a mãe e com a avó, que já faleceram. O pai era um preguiçoso e alcoólico, que abandonou o lar. 

  Na segunda parte, Natsuko já publicou um livro, que teve um sucesso relativo, mas está bloqueada na escrita do segundo romance. A partir de certa altura, nunca mais se fala nisso porque a sua obsessão é ter um filho, através de um dador de esperma. Em tempos, teve uma relação com um homem, mas não gostou de ter relações sexuais e nunca mais quer experimentar, daí, ter de recorrer a um dador. No Japão, é possível conhecer um dador num qualquer blogue, encontrar-se com ele num café e ficar com o seu esperma, que ele vai obter na casa de banho do café... 

  Sinopse: “Seios e Óvulos traça um retrato da feminilidade e maternidade contemporâneas no Japão, contando as viagens íntimas de mulheres que enfrentam os costumes opressivos e as suas próprias incertezas no percurso para encontrar a paz e um futuro a que possam chamar verdadeiramente seu. Makiko viaja para Tóquio em busca de uma operação de preço acessível para aumentar os seios. É acompanhada por Midoriko, uma adolescente cada vez mais calada por se sentir incapaz de expressar as pressões vagas, mas esmagadoras, associadas ao crescimento. O seu silêncio revela-se um catalisador para que cada mulher enfrente os seus medos e frustrações. Num dia quente de verão, dez anos mais tarde, Natsu, numa viagem de regresso à sua cidade natal, debate-se com a sua própria identidade indeterminada, enquanto enfrenta ansiedades sobre envelhecer sozinha e sem filhos.” 

 “Natsuko, a personagem principal, nunca deixa de nos interpelar, de nos fazer equacionar... Da pobreza estigmatizante à ditadura da solidão, do papel que esperam da mulher ao papel que a mulher quer ser, do medo à coragem, este é um livro que amplia horizontes e que, sem oferecer certezas, nos obriga a questionar. Num país onde se apregoa que as mulheres se tornam inúteis a partir da menopausa, Kawakami sesmitica a ordem estabelecida “- Rock&Rolla Ago/23

Se quiserem saber quão pobre alguém foi enquanto crescia, perguntem-lhe quantas janelas tinha. Não perguntem o que tinham no frigorífico ou no armário. O número de janelas diz tudo. Mesmo tudo. Se não tinham nenhuma ou se talvez tivessem uma ou duas, não precisam de saber mais nada.
 

 Midoriko tinha um apetite saudável, ia à escola e falava normalmente com os amigos e os professores. Só não falava com a mãe. Parecia não haver mais nada fora do normal. Apenas se recusava a falar em casa. De propósito.

 No outro dia, na escola, entre aulas, alguém, não me lembro quem, dizia: «Nasci rapariga e, por isso, sem dúvida que quero ter um bebé meu, um dia.» Mas de onde vem isso? O sangue que sai do nosso corpo transforma-nos em mulheres? Em potenciais mães? E o que torna isso assim tão fantástico? Alguém acredita realmente nisso?


para uma mulher se tornar um Buda, primeiro tem de renascer como homem.

O sexo , "a insanidade temporária das nossas vidas.

 Compreendia o desejo de ter alguém a meu lado, de querer dar a mão a alguém. Tinha sentido essas explosões de paixão depois de dizer alguma coisa importate ou quando me apercebia da intensidade dos meus sentimentos. Queria partilhar aquela sensação, mas, quando as coisas começavam a tornar-se físicas, os meus ombros ficavam tensos e o resto do corpo também. A paixão e o sexo eram incompatíveis para mim. Não tinham qualquer relação

… um homem nunca pode perceber o que realmente importa para uma mulher, nunca. Quando se diz este tipo de coisas, as pessoas dizem logo que somos tacanhas ou que nunca conhecemos o verdadeiro amor ou qualquer coisa desse género. Dizem que não se podem enfiar todos os homens no mesmo saco assim, mas, infelizmente, é a verdade. Nenhum homem alguma vez compreenderá as coisas que são realmente importantes para uma mulher.


 Se conseguires escrever sobre ti assim, sobre a tua sexualidade, as tuas finanças, as tuas emoções… se conseguires engravidar sozinha e ser mãe (ou mesmo que não consigas), se escreveres sobre tudo o que acontece no processo, fazes ideia do que significaria para tantas mulheres?

 No primeiro dia de outono, pela mão de Kawabata, estou a sentir a primavera no coração...

Midoriko Tinha um apetite saudável, ia à escola e falava normalmente com os amigos e os professores. Só não falava com a mãe. Parecia não haver mais nada fora do normal. Apenas se recusava a falar em casa. De propósito.


    É esta a verdadeira Primavera.Tudo, tudo...são flores escarlates. Os ramos das árvores florescentes pareciam não ter mais que uma função: suster as flores. Um visão não se pode nem tocar, não tem forma... 

Uma visão pode estar na mente, no coração de um homem, ou manifestar-se de qualquer outro modo. A visão de Chienko, aos 60 anos, continua jovem como agora e nunca nos cansamos das visões belas...Estas visões existem para sempre no coração: pode-se esquecer e deixar de amar alguém, emconcreto, que existiu na nossa vida, mas a nossa visão de alguém que amámos nunca deixa de estar presente, nunca.

"
Kyoto é um grande livro, quer pela forma como aborda a história de Chieko, quer pela paz com que nos transmite cada descrição e diálogo, mesmo quando a dor está presente.

 A escrita é poética e marcada pela contemplação típica do Japão e do mundo oriental. Por isso, ler este livro é contemplar esta sociedade tão diferente e esperar também pela flor das cerejeiras. A narrativa aberta é igualmente um caminho que nos permite percorrer a nossa imaginação, levando-nos numa viagem individual e de busca do Outro." Vanda Balão

terça-feira, 3 de setembro de 2024

TristezaS...


“livro do desassossego de Almeida Prado” 

Deixamos algo de nós para trás ao deixarmos um lugar, permanecemos lá apesar de termos partido.

 E há coisas em nós que só reencontramos lá voltando. 

Viajamos ao encontro de nós ao irmos a um lugar onde vivemos uma parte da vida, por muito breve que tenha ela sido.

Agora o único homem que estava no bar além dele pagava a conta e saía. Com uma pressa súbita que nem ele próprio compreendeu, Gregorius também pagou e seguiu o homem. Era um homem idoso que puxava de uma perna e parava de vez em quando para descansar. Gregorius seguiu -o mantendo uma grande distância até o Bairro Alto, até ele desaparecer atrás da porta de uma casa estreita e sórdida. Uma luz acendeu-se no primeiro andar, a cortina se abriu-se e o homem estava na janela aberta, um cigarro na boca. A partir da escuridão protetora de uma porta, Gregorius olhou para dentro do apartamento iluminado. Um sofá com estofados de um tecido de ‘gobelin’ gasto. Duas poltronas que não combinavam. Uma cristaleira com louça e pequenas figuras de porcelana. Um crucifixo na parede. Nem um único livro. Como era ser esse homem? Depois que o homem fechou a janela e puxou a cortina, Gregorius saiu do recuo. Ele perdera o rumo e entrou na primeira viela que descia. Nunca seguira ninguém daquela maneira, pensando em como seria viver aquela vida estranha em vez da própria. Era uma forma totalmente nova de curiosidade que despertara dentro dele, ela combinava com aquela nova forma de lucidez que ele experimentara na viagem de comboio e com a qual desembarcara na Gare de Lyon em Paris, ontem, ou quando quer que tivesse acontecido. De vez em quando, ele parava e olhava para a frente. 

Os textos antigos, os seus textos antigos eles também estavam plenos de personagens que viviam uma vida. Ler os textos e compreendê-los também sempre significara ler aquelas vidas e compreendê-las. Porquê, então, agora tudo era tão novo quando ele lidava com o português nobre e aquele homem aleijado? Inseguro, ele caminhou pelos paralelepípedos húmidos da rua íngreme e respirou aliviado ao reconhecer a avenida da Liberdade.

"Há um tipo de tristeza que vem de saber demais, de ver o mundo como ele realmente é. É a tristeza de entender que a vida não é uma grande aventura, mas uma série de pequenos momentos insignificantes, que o amor não é um conto de fadas, mas uma emoção frágil e passageira, que a felicidade não é um estado permanente, mas um vislumbre raro e fugaz de algo que nunca poderemos segurar em cima. E nesse entendimento, há uma profunda solidão, um sentimento de ser separado do mundo, das outras pessoas, de si mesmo. " 
Virgínia Woolf

segunda-feira, 5 de agosto de 2024

Agosto...



    Voltou à ilha na sexta-feira 16 de agosto no ferry das três da tarde.

     Tinha repetido aquela viagem todos os dias 16 de agosto à mesma hora, com o mesmo táxi e a mesma florista... 

    Tinha sonhado hora por hora com aquele novo 16 de agosto, e a lição não admitiu dúvidas: era absurdo esperar um ano inteiro para submeter o resto da vida ao acaso de uma noite.


     A noite de 16 de agosto seguinte estava já prevista pelo seu destino...

    Ana Magdalena lançou um olhar de compaixão ao seu próprio passado e disse adeus para sempre aos seus desconhecidos de uma noite e às tantas e tantas horas de incertezas que ficavam dela própria dispersas na ilha.
Mon bel amour, mon cher amour, ma déchirure / Je te porte dans moi comme un oiseau blessé...

domingo, 28 de julho de 2024


    "Reflexões sobre a vida, o mundo e sobre temas marcantes, como as diferenças sociais, a ausência / negligência dos pais "modernos" ou a morte / o suicídio. 

     
    Desde o início que sabemos que "A menina morre", mas a narradora / protagonista vai desenrolando a ação de uma forma diferente e, como dissemos, nada banal. Será ela a culpada de alguma coisa? Carregará ela uma culpa pela sua negligência com a mãe e com ela mesma, continuando a aceitar aquela "escravidão" consentida? Haverá alguma humanidade naqueles pais e naquela sociedade ritualizada e hierarquizada? Afinal, houve homicídio ou suicídio de Júlia? 

    Há muitas respostas em suspenso, mas a certeza de que valeu a pena cada página lida." 

Opinião de Vanda Balão

Sinopse

 "Em 2004, com a morte da mulher, Iván, um aspirante a escritor, relembra um episódio que lhe aconteceu em 1977, quando conheceu um homem enigmático que passeava pela praia, acompanhado de dois galgos russos. Após vários encontros, «o homem que gostava de cães» começou a confidenciar-lhe relatos singulares sobre o assassino de Trótski, Ramón Mercader, de quem conhecia pormenores muito íntimos. Graças a essas confidências, Iván irá reconstituir a trajetória de Liev Davídovitch Bronstein, mais conhecido por Trótski, e de Ramón Mercader, e de como se tornaram em vítima e verdugo de um dos crimes mais reveladores do século XX. Através de uma escrita poderosa sobre duas testemunhas ambíguas e convincentes, Leonardo Padura traça um retrato histórico das consequências da mentira ideológica e do seu poder destrutivo sobre a utopia mais importante do século XX."